Nuno Rau: Poet_s vagam atônit_s pelos vãos de um século incendiário (ou: o mundo é um holograma ou essa parada do real é concreta mesmo?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O Acaso é um deus estranho, e sua maior diversão parece ser pregar peças nas pessoas distraídas e desavisadas, às vezes empurrando grandes feitos da História, em outras se satisfazendo com o milimétrico tropeção existencial. O que posso dizer é que foi uma surpresa abrir o RelevO de abril e ver, algumas páginas adentro — meus ímpetos retrô dão saltos mortais triplos de contentamento — as colunas Hi-Fi Braziliance e Enclave. A primeira nos trouxe Dolores Duran com sua “Ternura Antiga”, passeando por diversas versões dessa canção tão delicada, e a segunda estampa a imagem de um cinema, o Fox Bruin Theatre, um palácio de cinema com 670 lugares, localizado no bairro Westwood de Los Angeles, Califórnia, cenário do filme Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino… Fosse por aqui não estaria mais de pé, já que os cinemas andam sendo demolidos, as livrarias fechando, os bares tradicionais da boemia sendo transformados em points de playboys, a cidade derretendo e refundindo seus metais em direções que não podemos supor com precisão, sob o influxo do capital volátil e agora também cripto-alado.

Futuros distópicos à parte, algumas coisas postas na edição de abril me jogaram num campo de reflexão: a paixão de Tarantino por uma Hollywood que não existe mais, o poema da pesada de André Giusti (“Talking ‘bout our generation”), as angústias do poeta Felipe Mamone expostas nas cartas d_s leitor_s, a menção a Edmund Burke no conto de Luciana Merley (“Lendo jornal no Mercado Central”), e a própria imagem de um mercado central, que nos grandes centros do Brasil ocupa, em geral, edifícios do século 19, com estruturas em ferro importadas de Manchester, tudo isso junto me levou a pensar sobre a complicada relação com a tradição, o que implica, por complementaridade, na relação com o presente. Observo com agudo interesse o arco tenso da poesia brasileira há bastante tempo, e nesse percurso observei que, a partir dos anos 1980, o interesse de jovens poetas — com raras exceções — parecia, em paralelo a uma insistente ancoragem à dicção cabralina, se descolar do tecido de nossa tradição e buscar referências exógenas: Cristophe Tarkos, Sylvia Plath, William Carlos Williams estão entre _s preferid_s daquela primeira década pós-marginal, quando a maioria se regozijava em conversar com Oswald, Mário, Bandeira, Drummond, e — por que não? — o invasivo Cabral. Ou seja, parece que um corte foi desferido sobre o tecido que vinha sendo trançado desde, ao menos, Gregório de Matos Guerra.

Um ombudsman às vezes percebe que não consegue se afastar de suas obsessões, e mesmo se esforçando para não sair dos trilhos do que se vincula aos materiais do jornal a que se dedica, acaba trocando as pernas em suas ideias fixas: eis que, como confessei acima, poemas, contos, textos e matérias do periódico me jogaram na cara o precioso tema de nossa relação com a tradição, e suas não poucas contradições (que, por sua vez, se trança com a questão de março (para o que olhamos quando estamos escrevendo?) junto com a de abril (que é escrever poesia nesse começo de terceira década do século 21?). No ensaio Sobre tradição, que integra o volume Sem diretriz: Parva aesthetica, Adorno pontua que “o que parece não ter história, ser um puro começo, é antes de tudo uma vítima da história, e tão mais funesta por não ter consciência disto”, e complementa: “O escritor que resiste aos momentos de aparência da tradição, encontra-se contudo enredado nela, sobretudo por meio da linguagem”; como também: “Assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do parecer.”

Para pensadores como Adorno e Lukács, a tradição é incompatível com as sociedades burguesas, está sempre em contradição com elas, empenhadas em sua necessidade de fabricar novos produtos (que na arte se caracteriza pela “crescente e incessante obrigação da recusa, segundo Adorno, pela aceleração na troca de movimentos e programas estéticos), autofagocitando tudo com sua força centrípeta. Com a aceleração do empuxo neoliberal, o descarte do passado é motor da produção do novo, cada vez mais, já que seus processos de produção e reprodução são vinculados tão somente à razão instrumental, prática, e não a uma razão integral, totalizante. Ocorre que este passado permanece como fantasma: convertido em forma vazia, sem relação com as formas sociais que lhes deram origem (e igualmente sem a pesquisa de possibilidades de novas relações dessas formas com as formas sociais), vemos o verso livre, as formas fixas, a experiência do poema concreto, a poesia visual serem empregados acriticamente.

É nesse cenário que a recusa da passada de bastão de poetas como Drummond, Murilo, Mário, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta, entre outr_s, repelidos em face de uma tradição exógena, soa deslocada. Alguém pode argumentar que é visível o diálogo com poetas como Ana Cristina César, Torquato Neto, Hilda Hilst, Paulo Leminski e Roberto Piva, mas desconfio que, nestes casos, a aura romântica que paira sobre a imagem de cada um, como um adensamento de matéria simbólica gerado pelo destino trágico que os irmana, se sobrepõe aos aspectos realmente significativos da obra de cada um, refletindo apenas apreensão superficial, porque sem conversar com a concepção de mundo dest_s poetas, com a História, com suas estéticas. Em lugar disso, a forma pura, o gesto esvaziado de conteúdo.

É nesse contexto, de quem apercebeu-se que o verso não morreu, e que temos que lidar com a falência das utopias (junto com elas, em direção aos mesmos ralos, foram as vanguardas), é que podemos ir conversando criticamente com vozes que vieram antes de nós: a tradição é algo que a gente ama, mas é também, e sempre, o indício de uma tragédia, muitas aliás, que nos trouxeram até aqui – nosso tempo espelha conflitos e contradições que eram ainda mais intensos no século anterior: machismo, racismo, sexismo, a exploração do trabalho, tudo enfim que representa um rol de bandeiras pra gente, agora, e cada vez mais. Não há território pacífico. Quem me conhece sabe que gosto de brincar com sonetos, por exemplo, e isso tem dois lados. Um lado é não afastar uma forma que foi criada e desenvolvida por pessoas como nós, e que tem um teor de atualidade que pode ser recuperado, desde que bem feita a abordagem, desde que não sejamos neoparnasianos, ou tentemos apenas emular a intensidade com que Drummond, Murilo e Jorge de Lima se aplicaram nessa forma, munidos das potências simbólicas de seu tempo. O outro lado é: nenhuma forma nos chega pura, as formas vêm sujas de História, e toda História humana é barbárie (cf. Benjamin).

Não pensar nisso é ser inocente, seja para negar o já feito, seja para abraçá-lo. Isso vale também, e muito, para a apropriação dos ganhos do concretismo. Os textos e manifestos do concretismo e da poesia práxis do período heroico chegam a ser ridículos pela sua fé absoluta no progresso da técnica, o que significava uma adesão a um modelo que politicamente, na prática, estava em contradição com as crenças dos poetas, porque os irmãos Campos, Décio e os demais se opuseram, tanto quanto a turma do Chamie, ao regime do golpe civil-militar de 1964. Resumindo: vivemos sobre um chão de brasas, está ardendo, e a gente se mover é difícil, há gases estupefacientes no ar nublando a visão e toldando a compreensão. Estar no presente de corpo inteiro (e é só isso que temos, todos) é sempre uma aventura complexa em qualquer época.

E para não dizer que não falei da prosa, achei muito interessante que os contos “Emprendedores”, de Cid Brasil, “Lendo jornal no Mercado Central”, de Luciana Merley, o hilário “Celsinho Kaizen”, dos editores, “Estranhos na noite”, do uruguaio Rodolfo Caravia, em tradução de Johann Heyss, bem como o ensaio “Abrace o caos,” de Otávio de Moura Brandão, todos dialogam com fragmentos de nosso mundo atomizado e fetichizado.

Fato é que gostaria de investir uns poucos cobres em ações da cerveja BuZazen, do Celsinho Kaizen (leiam o conto, não vou dar spoiler), deve arrebentar nas vendas, e quem sabe mesmo acionistas mini-mini-minoritários consigam desconto na compra… Tem que ser divertida — apesar dos aspectos distópicos — a aventura: isso é o que nos salva em meio a um século incendiário.