Marrom-múmia

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Vendedor de múmias no Egito (1875).

O uso de múmias pelo Ocidente teve seu início na Idade Média, por volta do século 13, pela crença (errada, diga-se de passagem) de que os corpos embalsamados continham altas concentrações de betume, substância utilizada desde a Grécia Antiga para tratar uma variedade de problemas de saúde, desde dores de dente até disenterias.

No século 16, o comércio internacional de múmias estava bem estabelecido. A demanda de ingleses, espanhóis, franceses e alemães por restos mortais milenares de egípcios fez florescer um mercado insólito. Tanto viajantes quanto locais passaram a saquear tumbas e revender seus conteúdos – por preços baixíssimos, inclusive – na cidade do Cairo, para que fossem triturados e enviados para toda a Europa.

O consumo do extrato de múmia pelas propriedades medicinais estava em descenso por volta dos anos 1800, e não por acaso: diversos médicos alertavam para a associação do uso do extrato a diarreias, vômitos e infecções (quem diria que aplicar pedaços de cadáveres em decomposição em feridas poderia fazer mal, não é mesmo?), e seu uso passou a ser malvisto.

Com as expedições napoleônicas de conquista do Egito, no entanto, o interesse pela cultura faraônica atingiu um novo ápice, abrindo portas para pesquisas científicas, arqueológicas e para o turismo.

Sabendo que os europeus usavam múmia em pó para comer, beber e esfregá-lo em si mesmos, não será surpresa aprender que eles também o utilizavam para pintar. “Marrom-múmia“, ou Caput Mortuum, era um pigmento feito com extrato de múmia misturado a terra e mirra fabricado desde o século 16 e vendido aos pintores das belas artes.

Como tinha boa transparência, esse marrom era usado para sombreamento e tons de pele. Entretanto, sua composição fazia com que a tinta quebrasse facilmente, além de afetar as cores ao seu redor por conter amônia e partículas de gordura.

Alguns artistas renomados a ter o marrom-múmia em suas paletas incluem Delacroix, Sir Lawrence Alma-Tadema e Edward Burne-Jones. Este último, ao descobrir a origem do seu marrom favorito, realizou um enterro cerimonial à moda egípcia do frasco de pigmento, que pôde enfim descansar em paz.

Ao final do século 19, o método exótico de fabricação do marrom-múmia tornou-se mais conhecido pelos artistas. Além disso, o respeito pelo valor científico e arqueológico das múmias passou a ser regra. O resultado foi a crescente rejeição dessa tinta, que só foi “extinta” em 1964, quando a firma inglesa Roberson descontinuou sua produção por falta de matéria-prima.