Os hiperlinks de Nabokov

Extraído da edição 74 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Fogo Pálido (1962), de Vladimir Nabokov, é um dos livros favoritos desta newsletter. Sua estrutura pode parecer pouco convidativa, mas sua leitura é proporcionalmente encantadora. Trata-se de um romance dividido em quatro partes: prefácio; poema (“Fogo pálido”) de 999 versos; comentário ao poema e índice remissivo.

O personagem John Francis Shade assina a obra poética; o personagem Charles Kinbote, as outras. Acontece que Shade foi assassinado logo antes de completar o milésimo e derradeiro verso de “Fogo Pálido”. Kinbote, seu autointitulado “amigo íntimo, consultor, editor e comentador literário”, responsabiliza-se por analisar a obra.

A partir disso, testemunhamos a epítome do narrador pouco confiável, uma constante carta na manga de Nabokov (vide O olho e A verdadeira vida de Sebastian Knight).

Afinal, Kinbote é um comentador histriônico. Oriundo da fictícia Zembla, ele enxerga no poema – apesar de “deliberadamente e drasticamente escoimado de minhas contribuições” – referências claras à sua terra natal, convicto de ter convencido um entediado Shade a incluí-las.

Esses elementos compõem as dores e delícias de Fogo Pálido, livro capaz de fornecer mais dúvidas do que certezas. Engraçado, trágico e cheio de detalhes (o índice remissivo não deve ser ignorado), o romance nos lega outra dúvida: como lê-lo? Afinal, versos levam a notas, que levam a outros versos ou notas, que etc. Dispomos de vários caminhos!

Fogo Pálido não é simplesmente “não linear” – o curso tradicional de leitura não é necessariamente menor que qualquer outra abordagem. Como bem definiu Espen Aarseth, o livro é muito mais multicursal – a exemplo da (hipertextual) navegação na internet.

Não por acaso, Ted Nelson, criador do termo “hipertexto”, tentou adaptar Fogo Pálido a um formato de hiperlinks em 1969, na busca por fornecer uma demonstração do fenômeno que ele havia registrado em 1965: “permita-me apresentar a palavra ‘hipertexto’ para significar um corpo de materiais escritos ou pictóricos interconectado em uma maneira tão complexa que não poderia ser convenientemente apresentada ou representada em papel”.

Hoje, existem pelo menos seis versões hipertextuais de Fogo Pálido, de acordo com Simon Rowberry, professor da Universidade de Stirling. Páginas na internet permitem navegar por meio de cliques entre as notas fornecidas por Nabokov (aqui um exemplo).

Rowberry também é responsável pelo gráfico na abertura deste texto (em alta resolução aqui), que salienta as conexões internas do romance. Segundo ele, há 504 referências explícitas na obra: 37% delas levam ao poema; 63%, a outras notas.

Nabokov costurou Fogo Pálido com engenhosidade abismal. Isso por si só não transformaria o romance em uma obra-prima: é necessário conteúdo para corresponder a essa forma. Mas este lado – que malemal pincelamos – ficará para outro dia. Adiantamos que, sem dúvidas, trata-se de uma obra-prima.

David Toschi

Extraído da edição 42 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

David Toschi

No cinema, uma mesma pessoa viva serviu como base para três personagens diferentes, em três filmes diferentes, com três atores diferentes, em três décadas diferentes. Trata-se de David Toschi, tido como inspiração direta e indireta para Steve McQueen, em Bullitt (1968), Clint Eastwood, em Dirty Harry (1971), e Mark Ruffalo, emZodíaco (2007). Nada mal.

Toschi, hoje com 85 anos, foi policial em São Francisco entre 1952 e 1983. Nesse meio tempo, recebeu McQueen para ver imortalizada, mais do que qualquer outra coisa, a posição de seus coldres, iconicamente apoiados no ombro – vide a fotografia acima. Frank Bullitt, protagonista interpretado pelo descoladíssimo Steve McQueen, logo ganharia notoriedade pelas cenas de perseguição automobilística que fazem de Velozes e Furiosos uma Via Calma. A trilha sonora que Lalo Schifrin compôs para o longa-metragem de Peter Yates também é de se admirar.

O que nos leva a Dirty Harry, ou Perseguidor Implacável, de Don Siegel e com Clint Eastwood, cujo protagonista Harry Calahan parte de Dave Toschi, àquela época já ocupado com o caso do Zodíaco. O assassino, até hoje alvo de discussões, também serviu como base para o vilão Scorpio. A trilha sonora, coincidentemente também assinada por Lalo Schifrin, não coincidentemente é também extraordinária.

Zodíaco, de David Fincher, por sua vez, foi o primeiro deles a retratar o próprio Dave Toschi, justamente durante o caso que dá título à película. No filme, um Mark Ruffalo menos rústico que McQueen e Eastwood não só se utiliza dos coldres nos ombros, como também assiste a Dirty Harry no cinema, em uma cena que faz referência direta às extrapolações de representação na ficção. O policial chegou a auxiliar a produção da obra: ele foi oficialmente listado como consultor técnico.

[Obrigado, Cassio Oliveira!]