Baú: Claudio Bojunga

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Segundo Renato Archer, com poucas exceções, nenhuma chefia tradicional da época falava em desenvolvimento, planejamento, quilometragens. De repente, a população começou a ouvir expressões como quilowatt per capita que assustavam os políticos tradicionais de todas as correntes. É conhecida a frase do coronel maranhense Vitorino Freira: “Quero lá saber de quilowatt, quero saber é de meus amigos”. Juscelino usava outra linguagem. Queria quilowatts, luz, força, estradas. Queria tirar o bolor de Minas. Os rotineiros o chamavam de leviano, mas o povo gostava que estivesse de bem com a vida, da sua gargalhada franca e ruidosa, do seu desassombro em face da inveja, de como saboreava as viagens e serestas.

Em Poços de Caldas, Juscelino entrava nas serestas do prefeito Agostinho Junqueira. Em campanha, era capaz de fazer cem quilômetros para garimpar um voto no distrito de Capim. Gostava de desarmar os espíritos, não perseguia, fazia visitas a ex-adversários da UDN, gostava de flores e de mulher bonita, mas graduava sua sensualidade e galanteria, aquém da concupiscência, pela prudência política, pelo background religioso, pela crença de que “quem escolhia era a mulher”. Mais importante ainda: não atendia políticos só interessados em nomear inspetores de quarteirão e transferir delegados e professoras. Seu clientelismo era de resultados.

Claudio Bojunga, JK: o artista do impossível, 2001 (ed. Objetiva).

Brasília, poema sinfônico

Extraído da edição 73 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Ainda encantado com a música brasileira, deparei com um evento até então desconhecido para meu limitado repertório. Diante de minha surpresa, consultei alguns amigos para averiguar se fui o último no planeta a conhecer Brasília: Sinfonia da Alvorada (1959). Concluí que a descoberta, mesmo longe de obscura, é suficientemente esquecida para justificar meu espanto.

A obra, pois, consiste em um poema sinfônico escrito por Vinicius de Moraes e composto por Tom Jobim. A criação foi incentivada (mas, tecnicamente, não encomendada) por Juscelino Kubitschek – em razão da inauguração de Brasília (DF), em 1960. Ela é dividida em cinco movimentos: I. O planalto deserto; II. O homem; III. A chegada dos candangos; IV. O trabalho e a construção; V. Coral.

O LP, gravado em 1960 e lançado em 1961, teve encarte de Oscar Niemeyer, que já havia trabalhado no cenário da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius (a mesma que virou filme, teve trilha sonora de Jobim e cujo longa-metragem inspirou Bong Joon-ho). Na gravação, a voz que declama é do próprio Vinicius.

Curiosamente, a sinfonia só foi apresentada ao público em 1966, na TV Excelsior. Em Brasília, isso aconteceu apenas em 1986 – seis anos após a morte do Poetinha. Para contextualizar a criação, passo a palavra ao próprio Vinicius de Moraes, em relato disposto no encarte da obra. (Quem quiser ir mais a fundo pode ler esta dissertação).

Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília a fim de estruturar temas e poemas em contato humano  com  a  cidade.  Hóspedes  do  “Catetinho”,  hoje  tombado  como  monumento  histórico,  olhávamos  de  nossa  sala-de-trabalho  –  a  mesma  em  que  o  Presidente  Kubitschek  assinou  seus  primeiros  atos  na  nova  capital  –  a  silhueta  quase  sobrenatural  da  cidade  na  linha  extrema  do  horizonte,  recortada  contra  auroras  e  poentes  de  indizível  beleza.  De  madrugada,  enquanto  víamos congelar-se no ar frio o jato ascencional do Boeing-707, escutávamos também o piar das perdizes  e  dos  jaós,  entre  as  surdas  rajadas  intermitentes  do  vento  do  altiplano.Havia  em  nós  essa  tristeza  que  nasce  da  beleza,  e  pavilhávamos  os  capões  de  mato  com  a  sensação  do  irremediável do tempo. Jobim, caçador experimentado e velho piador de pássaros, arremetia mais longe  do  que  eu.  Eu  voltava,  a  partir  do  lindo  ôlho  dágua  do  pequeno  bosque,  para  os  meus  intermináveis passeios na alpendrada do “Catetinho”, onde ficava a pensar o texto da Sinfonia e a esperar a comida simples e gostosa que nos dava “a patrôa” de Luciano, o caseiro: o mais antigo funcionário  de  Brasília.  Apraz-me  dizer  nunca  ouvi,  ao  longo  das  horas  em  que  Antonio  Carlos  Jobim mergulhava no mato, um só tiro perturbar o silêncio das velhas planuras. É minha impressão que o músico perdeu a coragem de chumbar seus coleguinhas alados, mesmo quando constituam ótimo comestível, como é o caso das perdizes.
(…)
Dez  dias  ficamos  assim  no  “Catetinho”,  nesse  dolce  far  niente  de  fazer  uma  Sinfonia,  com  sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar  como  íamos  de  trabalho. (…)
Falei em piano. É fato. João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o “Catetinho”, com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o “Catetinho” é hoje um monumento histórico, e a estátua do Fundador de Brasília parecia apreensiva, sôbre o seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação.

O assunto ressurgiu em entrevista de Tom Jobim a Jô Soares, em 1993 (um ano antes de o músico morrer). Jobim respondeu sobre Brasília: Sinfonia da Alvorada:

“Eu nunca escuto. Mas quando escuto, parece uma piada. Diante do que está lá… Aquele sonho do Vinicius [de Moraes], Juscelino [Kubitschek], Oscar Niemeyer; a gente acreditando, querendo o Brasil e coisa e tal… A gente fez aquilo tudo com um amor danado. Fala no planalto deserto, na chegada do homem, naqueles campos bonitos do senhor; a gente brincando nos campos do senhor. E era muito bonito. Hoje em dia, quando vejo Brasília, fico um pouco nostálgico, entristecido.”

Brasília: Sinfonia da Alvorada está disponível no Spotify e no YouTube: I, II, III, IV e V.

Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Lila Bôscoli e Tom Jobim nos bastidores da peça Orfeu da Conceição.