Fra Angelico

Extraído da edição 47 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Fra Angelico e sua Anunciação – a transição perfeita entre o Gótico e o Renascimento

O Renascimento, se é que isso realmente existiu, pode ser visto, ainda que de maneira bastante simplista, como a transição entre a representação artística rudimentar do período Gótico e as inovações que culminaram nas formas e proporções perfeitas do David de Michelangelo. Na realidade, esse trajeto foi muito mais tortuoso do que os almanaques de história da arte fazem parecer, e não foram poucas as ramificações, bem como idas e vindas dos artistas.

É fato, porém, que nesse espaço de mais de 200 anos as artes visuais passaram por uma transformação profunda: os motivos representados deixaram de ser estritamente religiosos e rigidamente ditados pela tradição bizantina para incorporar símbolos pagãos e métodos sistemáticos de representação de luz e espaço. E não houve nenhum artista que expressasse melhor o equilíbrio entre esses dois mundos do que Fra Angelico.

Fra Angelico, muito antes de ser um licor, era Guido di Pietro, um pintor que começou seus estudos como iluminador (fazedor de iluminuras) e mais tarde tornou-se frade. Seus trabalhos sempre tiveram motivos religiosos, tanto pelo século em que vivia quanto pela sua intensa fé pessoal: pintava peças de altar para igrejas e objetos de devoção pessoal para patronos mais abastados. Apesar de estar envolvido direta e profundamente com a Igreja, não se limitava a reproduzir a pintura religiosa tradicional. Ao contrário, estava completamente consciente das mudanças que aconteciam ao seu redor.

O estilo em voga para a pintura religiosa na época era o Gótico Internacional, em que figuras esbeltas com rostos angelicais idealizados contracenam num espaço celestial austero e normalmente folheado a ouro. O que se pretendia era representar o mundo espiritual e a mensagem trazida do evangelho. Um dos exemplos mais simbólicos dessa escola é a Anunciação de Simone Martini, realizada praticamente 100 anos antes de Fra Angelico começar a pintar.

Contemporâneo de Fra Angelico, Masaccio era um expoente de sua geração. Sua pintura O Pagamento do Tributo, entre as mais influentes desse início de Renascença, foi uma das primeiras a empregar a perspectiva linear, que acabara de ser desenvolvida por Brunelleschi, para criar a ilusão de um espaço realista. Com isso, veio a preocupação com o peso e o volume dos personagens, além de sua disposição nesse espaço, algo que não acontecia anteriormente.

Anunciação de Fra Angelico, um afresco de 1446,  é uma síntese dessas vertentes. Seus personagens – o Anjo Gabriel e a Virgem Maria – seguem a estética gótica com seus corpos leves, auréolas bidimensionais e a gravidade da troca silenciosa de olhares. Mas ao contrário da pintura de Martini, nessa cena as figuras habitam um espaço realista, uma varanda cuidadosamente composta respeitando a perspectiva de um ponto. Além disso, nota-se o capricho com o qual os detalhes arquitetônicos foram executados. Arcos ogivais, marca inconfundível do Gótico, dividem o espaço com capitéis jônicos e coríntios que só poderiam ser desenhados por alguém que estudou os textos antigos de Vitrúvio e estava em contato com o retorno da arquitetura clássica.

Ao mesmo tempo, alguns detalhes impedem o balanço perfeito da obra: a grama do lado esquerdo da imagem é representada sem profundidade alguma, como um papel de parede estendido entre o piso da varanda e a cerca de madeira. E mais: o teto, apesar de ser muito lindo, parece estar muito baixo, de modo que se a Virgem se levantasse, provavelmente bateria a cabeça. Mas engana-se quem pensar que isso aconteceu por inaptidão ou incapacidade técnica.

São escolhas conscientes que o autor fez para contrastar a santidade dos protagonistas com um ambiente mundano. Inclusive as colunas e arcos da Anunciação lembram muito o pátio do Convento de São Marco em Florença, onde está a pintura em questão e onde Fra Angelico pintou a porção mais célebre de sua obra. A intenção era auxiliar os monges e frades que habitavam o local em sua meditação, aproximando-os das figuras e ensinamentos transcendentais expressos nesse afresco.

Em suma, Fra Angelico foi o artista que melhor balanceou tradição e inovação no século 15 na Europa. Dominava igualmente a estética gótica e a renascentista e com total consciência se utilizava de diferentes  recursos para atingir seu público de maneiras diversas, sem nunca deixar de ter uma aura de santidade em volta de seu trabalho. Não à toa foi beatificado em 1982 pelo Papa João Paulo II e elevado ao status de padroeiro universal dos artistas.

Bônus: não deixe de conferir neste link uma galeria de fotos do Convento de São Marco, hoje um museu, mostrando como as pinturas de Fra estão dispostas nas paredes das celas individuais, os dormitórios dos monges, e como elas conversam com o espaço que ocupam. E falando em ocupar espaço, agradecemos formalmente ao sr. Ivan Gambus, que foi a Florença, visitou o museu de San Marco e nos trouxe lindas fotos, estórias e o livro-guia oficial. Obrigado, sr. Ivan Gambus.

Deposição de Cristo, Pontormo

Extraído da edição 18 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A Deposição de Cristo, de Pontormo, sem dúvida figura entre as pinturas mais importantes do Cinquecento Italiano. Finalizada em 1528, ela apresenta basicamente tudo que uma pintura maneirista deve ter:

  • Corpos flutuantes. As leis da física não interessam aos maneiristas. A Renascença teve seu pico na virada do século com Da Vinci — a natureza já havia sido domada, estudada, reproduzida e o celestial volta a ter seu lugar. Poses e cenas impossíveis são o charme da obra. O que dizer do moço segurando Jesus enquanto se apoia em três dedos do pé?
  • Emoção, intensidade. Após a serenidade da Alta Renascença, há um movimento em direção a cenas mais dramáticas. Os rostos são altamente detalhados e os olhares de cada personagem encaminham a visão para uma foco distinto.
  • Cores. A liberdade artística também se traduz em cores mais experimentais. Tons de rosa, verde e azul são usados quase como uma segunda pele, com um objetivo mais decorativo que descritivo. Mesmo em quadros mais formais, pode-se observar um protagonismo de cores fortes, ou simplesmente fora do padrão.
  • Corpos retorcidos (e distorcidos). Mesmo caso do primeiro item. A beleza é mais importante que a precisão. Com isso vêm os pescoços e dedos compridos, as colunas tortas, os corpos alongados e a confusão de mãos da Deposição.
  • Organização. Apesar de o Maneirismo ser um movimento de quebra, algo da formalidade das composições foi mantido. Analisando a Deposição, é fácil se perder em meio a tanto movimento e tantos personagens, mas ainda assim é possível identificar um triângulo, formado pelos rostos da Virgem e dos dois seres que levantam Jesus. Além de enquadrar o personagem principal, essa disposição traz equilíbrio e rigor à tela. Outro exemplo – do mesmo Pontormo – é a Ceia em Emmaus.
  • Por último, mas não menos importante: um Jesus ruivo.