Sandro Moser: Saidera

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


“É tudo pretexto para beber”, dizia a sabedoria de minha mãe a respeito de grande parte das atividades humanas. Mesmo assumindo objetivos aparentes outros, no fundo, quase tudo serve apenas a este oculto e nobre propósito. Frequentar clubes, campanhas eleitorais, viagens à Europa, tertúlias literárias se trata tão somente de desculpa para encher o caneco. 

Serve também para as malditas festas de fim de ano, época odiosa. Como Natal se anunciava na base do “mais pra fimose do que para peru”, decidi transformar a leitura do RelevO em justificativa para sangrar uma garrafa de conhaque que até então só tinha sido usada em receitas que deram errado.

Para completar o clichê, acionei uma lista de velhos sambas-canções no streaming e passei, enfim, à leitura deste suplemento. E, amigos, penso que achei a chave certa. 

Tudo ficou incrivelmente melhor. Percebi nuances, entendi as piadas e ponderei os argumentos e me cortei com os poemas. 

Recomendo vividamente aos amigos que também o façam, nesta que é minha derradeira coluna de meu breve e já saudoso ombudsmanato.

A edição de dezembro, aliás, é o RelevO em estado puro até a última gota de alcatrão com os colaboradores mais frequentes, belos poemas de nomes desconhecidos, duas páginas de cartas de leitores e uma ilustra de Maradona que, se eu ficar bêbado o suficiente, vou tatuar nas minhas costas. 

“Yo me equivoqué y pagué. Pero, la pelota no se mancha.”

Maradona falando era um poeta. Eis a maior diferença. 

Adios. 

Sandro Moser: Cartas na rua

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


No começo da carreira convivi com um jornalista da antiga que tinha fama (exagerada) de polemista e vivia em guerra aos leitores que escreviam cartas à redação. “Escrever para um jornal é a pior forma de solidão”, repetia. Sua rotina sadomasoquista começava com desaforos matinais aos críticos até o dia em que desafinou com a pessoa errada (“vá chupar o pau do Felipão”), o que lhe custou o emprego.

Em geral, os leitores são odiados pelas publicações. Em especial, quando cobram erros e posições. Não acontece neste RelevO, que, se pudesse, levava cada um de seus leitores para jantar fora. Aqui, não há a figura do editor que responde as reprimendas com ironia arrogante. A maioria das publicações que precisam de assinantes mantém um.

Em revistas como Mad, Placar e Piauí — para falar de tempos e públicos diferentes —, a voz que confrontava os leitores era uma das mais lidas. No Pasquim, Henfil e Jaguar, estrelas da companhia, faziam este trabalho.

O RelevO terceiriza a função ao seu ombudsman, órgão impessoal e transitório, que deveria fazer a defesa dos interesses dos leitores expressos principalmente em suas cartas, mas hoje falha por inépcia e preguiça. 

Na edição de novembro, porém, uma carta se destaca. A leitora Rosilene Gomes, com a gravidade de sua prosódia lusófona, faz a pergunta fatal: “Boa tarde !! podes me dizer o que é o Relevo ?”

Que grande questão. Existencialismo no Estácio. Não pode ficar sem resposta. 

Em parte, o editorial se ocupa de respondê-la: um jornal literário sem mecenas e que não encosta em dinheiro púbico. E que, portanto, não precisa lamber botas e puxar sacos. Nem se fazer de descolado para agradar ninguém. E que às vezes (pode, por que não?) é paneleiro, desagradável, pornochanchável. Abre páginas para quem não escreveria em nenhum outro lugar e fecha para quem mais queria aparecer. 

É uma amálgama desigual que mistura textos de hierarquia como os de Ranieri Carli, Racuel de Queiroz e do grande Rodrigo Madeira a outras prosas mais juvenis. Assim é que deve ser à “moda do lobo, sem amigos, sem mulher e filhos”. Termino destacando as páginas das duas poetas Julia Raiz e Maria Luiza Artese, que me foram apresentadas aqui e torcendo para que este ano de merda termine sem matar mais amigos meus.

Sandro Moser: Só dói quando eu rio

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma das prerrogativas da minha função neste RelevO é ler todas as letras publicadas em suas 24 páginas de papel-jornal. Uma espécie de tara, manifesta na infância, me faz começar sempre pela última. A edição de outubro, portanto, “abre” com o lindo rondó de Paulo Cesar Pinheiro, musicado por Breno Ruiz. Já vale o ingresso. E me lembrou de um episódio com o poeta há algumas encarnações. 

No fervor dos vinte anos, esperando a hora de embarcar em algum dos grandes aeroportos do país, avistei o PCP. Na época, sua música fazia a minha cabeça — e confesso que ainda hoje faz. Com a coragem do tigre moço (e bêbado), anunciei-lhe, grave: “Poeta, estou indo a Cuba me integrar à revolução”. Ele entrou na brincadeira e respondeu: “Vá, mas volte. Pois o Brasil ainda está por fazer”. 

Desde então, este sentimento me persegue. De que tudo ainda está por fazer e a gente nem começou. Como quando a mudança desce da Kombi. Seria a hora de descansar, mas ainda é o momento do trabalho pesado. Enfim, só o jornal de papel proporciona estes momentos proustianos. O fato de o RelevO seguir de pé, depois do tiroteio de agosto e setembro, é sinal que algo está sendo feito. Mas vamos lá!  

Um leitor (Luiz Cláudio Lins) reclama da qualidade do projeto gráfico, demasiado amadora para seu gosto. Concordo em partes. Em algumas momentos, a diagramação é brilhante. Em outros, claramente apressada e desleixada. Imagino que colaboradores amorais como eu, que retardam o fechamento da edição até o último segundo, sejam uma das causas. De resto, o caos não me incomoda, mas entendo o desconforto do leitor. 

Na página 6, há um oportuno perfil do grande Adão Iturrusgaray ilustrado por seu genial material. Ótimo gancho com a questão do Abaporu. Texto bem feito, nas regras da arte. Faz sentido a presença de um humorista de escol, pois notei que o periódico está cada vez mais aberto ao humor. Vocês também flagraram esta “pasquinização”? Ou sempre foi assim e eu que ando meio desatento? 

Mesmo que na última linha do editorial o jornal diga que “está difícil rir de 2020”, com a paciência do corno contei quase 30% da edição ocupada com textos satíricos. Não é pouca coisa em um jornal que, até onde me lembro, se orgulhava de seus ensaios literários e de publicar ficção e poesia. 

Quem sabe, nosso editores estejam usando a lógica invertida do grande Nelson Sargento que diz que o “samba é triste para que a gente não seja”. De resto, são merecidos os elogios dos leitores à Enclave, que está redondíssima. Me despeço dizendo que vale a pena procurar o material do Algum Lucas na internet e que queria ler mais poemas lúbricos de Jess Carvalho.

Sandro Moser: Língua de sogra

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Antes de tudo, meu apoio à greve dos trabalhadores dos Correios. Ódio e nojo à política de aviltamento e desmanche deste serviço público. Falo por mim, não pelo RelevO

Otimistas com a agora inevitável venda dos Correios — como, aliás, quaisquer otimistas — não perdem por esperar. Sei, contudo, que, em razão dessa circunstância, muita gente não recebeu a edição de setembro. 

Foram privados de uma das mais desbragadas publicações do jornal, que começa se oferecendo em editorial como uma bola na boca à tacada da multinacional do xarope de taurina gaseificada.

Pensem comigo: que uma parcela da população que mistura esta desgraça na bebida seja grande o suficiente a ponto de gerar lucros torrados com patrocínio a equipes idiotas de futebol e Fórmula 1 é sinal de que a civilização ocidental é apenas luz de uma estrela morta. E já vai mesmo tarde a civilização ocidental. 

Voltando ao RelevO de setembro, há uma seleção poética alta, com destaque aos textos de Júlia Raiz e Nathália Fernandes que ficam mais belos com a fina diagramação de motivos urbanos. 

A boa reflexão filosófico-literária de Lucas Sanches Lima, daquelas que eu sempre gostei de ler no RelevO (e quem mais publicaria?), só perde o posto de melhor texto do mês para a entrevista imaginária com o tenista ilhéu. 

Sou devoto antigo deste gênero renegado. Na página central, as melhores qualidades de uma boa “imaginária” brilham a arcada dentária da cabra vadia no terreno baldio: vileza, blasfêmia, grosseria e despropósito. Muito bom. Que se repita. 

pita. O Jornal teve a fineza de dar grande espaço aos leitores e agradecer a cada um de seus colaboradores da década passada. Como em qualquer rol longo de nomes, abre-se a chance para uma divertida busca de antigos parceiros e parceiras sexuais, credores e desafetos literários em ordem alfabética. 

Este é o caldo da edição de setembro: a mais cara e invisível da história do RelevO. Poética e autolaudatória. Efusiva e vazia. Como uma festa de aniversário nas férias na qual os coleguinhas convidados não apareceram. 

Sandro Moser: Uma dieta para perder assinantes

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Convido-os a deambular em retrospectiva nos três últimos meses deste RelevO. Neste setembro, na contramão de grande parte das publicações lítero-culturais do país, o jornal celebra uma década de circulação mostrando improvável vitalidade. A carteira de assinantes está em ascensão e, a partir desta edição, o jornal passará a remunerar seus colaboradores. 

Espertamente divulgado no final da edição de agosto, o jeton representa 10% do valor de uma bolsa emergencial da pandemia e terá como efeito imediato a melhora na qualidade dos textos, pois minha experiência mostra que um trabalho pago é pelo menos três vezes mais revisado do que um gratuito. Na edição de agosto, o ponto alto foi a reprodução, na página 6, da ótima HQ de Arnaldo Branco que escracha o papel infame da imprensa em nosso tempo, além de um bom conjunto de poemas e textos de reflexão sobre teoria literária, videogames e miséria existencial.

Ouvi críticas à página de humor. Alguns leitores a consideraram de “mau gosto adolescente” e “preconceituosa”. O texto não assinado, mas pleno das impressões digitais do autor, está mesmo situado antes da sobreloja na torre do humor, mas confesso, abestalhado, que gostei, justamente pelo tom velhaco e absurdo. 

Chegamos, pois, ao mês de julho quando um dos textos fez o RelevO perder um assinante. Para um jornal literário que destaca o nome dos apoiadores na página 1, é tão triste quanto ver fechar um bar centenário ou ver morrer um amigo. O agora ex-assinante pediu anonimato, mas explicou que desistiu do jornal em razão de um texto de “direita-fascista” da autora Greicy Bellin. Antes da despedida, ele declinou da oferta de uma possível réplica. 

Para quem não lembra, o texto de alguma forma exalta a capacidade de comunicação popular de um modelo de pensamento ideológico que não é nem o liberalismo juspositivista, nem o marxismo e suas derivações. 

Os editores reconhecem que o texto em questão está “fora da curva do jornal”, mas que a consequência de sua publicação parece sintoma da cosmovisão das redes sociais, onde há uma luta em andamento “entre o exercício de dissenso e o exercício de apagamento do diferente entre os iguais” e que, enfim, o RelevO é a “favor da dieta intelectual variada, mesmo quando não gosta de alguns alimentos”.

Em princípio, eu também sou. E acho que o texto em questão até faz boas reflexões sobre o “continente perdido” da filosofia contemporânea, mas entendo a aflição do leitor — que foi também a minha —, pois é uma chocante inversão de expectativa ler escrito a sério o nome de um autor nacional cuja a simples menção conspurca o apanágio que o RelevO construiu nesta década. 

Entendo que a casa tenha a coragem de servir conteúdo variado. Entre os leitores, quem tem estômago mais forte, come com farinha. Quem não tem, pode separar no canto do prato. Se vier sempre, os clientes podem não vir mais. É o preço de se estar em movimento neste tempo estranho e perigoso. E que venham dez anos mais. 

Sandro Moser: Cachoeira de aguardente

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Há coisas boas e coisas novas para contar. Nosso problema é que as coisas boas não são novas e as coisas novas não são boas, como na anedota. Deste último grupo de notícias, cabe dizer que a partir de hoje me cabe ocupar este excelso espaço. Uma responsabilidade mais pesada do que meus joelhos podem aguentar. 

Há apenas dois outros colegas na mesma função no país e, diante da contramarcha dos acontecimentos, não será surpresa se um ou dois de nós formos extintos em breve. Aquele que escapar será guardião de uma língua morta, o “papagaio de Humboldt” dos suplementos literários. 

A parte em que a coisa melhora — e aposto uma garrafa — é que o sobrevivente será o titular deste espaço, visto que a crise não nos alcança, pois estamos duas jogadas à sua frente, e meu ombudsmanato dura o tempo máximo de uma gestação humana saudável. 

Meu publisher pede que me apresente, me fazendo encarar, aos calafrios, minha medíocre pusilanimidade. Hoje quando me acusam da minha antiga profissão, devolvo o insulto: “Jornalista é você!” e como não quero que minha outra ocupação indefensável se espalhe por aí, me calo.

Me parece mais importante contar que nasci numa minúscula cidade no extremo-sul do Paraná, Porto Vitória, local mágico onde a principal atividade é beber aguardente de Juniperus admirando a cachoeira. Este torpor contemplativo é o sentimento de plenitude utópica que busco em todas as coisas desde que fui arrancado daquele paraíso pelas forças do capitalismo tardio e que, às vezes, a leitura poética me devolve. 

Neste sentido, apenas, talvez reúna as condições objetivas para representar os leitores invulgares deste RelevO que se espalham pelo país todo como uma mancha epidemiológica, mas que, na verdade, são zés-pilintras usando as frestas de luz desta treva hirsuta para tentar seus dribles. 

Gastei tanto espaço falando de meu medos e quase não sobrou tempo para dizer que me emocionou ver na página central do nosso caderno a marquise derrubada do velho Maracanã e, como bom argentinófilo, afirmo que toda poesia platense ou patagónia me comove como o diabo. 

Hoje vou assoprar e assim dizer que morte, izakayas e alucinações são temas que pedem mesmo grave reflexão. Prometo também morder e, afinal, a montanha dará à luz uma ninhada de ratos albinos.