Sobre a deprimência de tantos anúncios

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Bring us the day they switch off the machines

‘Cos men in yellow jackets, putting adverts inside my dreams

An automated song and the whole world gone

Fallen under the spell of the

Distance between us when we communicate

Quem dera.

Se você pensar cuidadosamente, criteriosamente, reconhecerá poucas verdadeiras motivações do ser humano antes de qualquer ação concreta. Para se mexer, um indivíduo muito provavelmente busca (1) conquistar alguém, (2) impedir o sono de um sem-teto ou (3) inserir um anúncio em algum lugar. Quase todo o desenvolvimento do planeta na Idade Contemporânea pode ser explicado a partir dessas três fontes de motivação.

  • Se ou quando o ser humano morar em Marte, será para impedir mendigos de dormir de graça lá. [Ou para inserir anúncios.]

Aqueles com pouco mais ou pouco menos de 30 anos tendem a se lembrar da internet com nostalgia. Usávamos essa ferramenta para nos distrair do mundo real, enquanto hoje precisamos do mundo real para escapar da internet. Nesse aspecto, as limitações ajudavam: o fato de você estar obrigatoriamente fechado em algum espaço – isto é, sem internet móvel – configurava uma mudança clara de estado. Ou você estava conectado (e preso a algum espaço físico para, afinal, conseguir estar conectado) ou estava desconectado e, portanto, na vala comum daquilo que chamamos de vida real.

E então esses dois universos começaram a se misturar, para a alegria do nerdão ex-hippie de jeans e gola rolê preta.

Como já é sabido, nascemos tarde demais para explorar o planeta e cedo demais para explorar a galáxia. A única janela mágica de exploração a que tivemos acesso foi a virtualidade, a internet como uma passagem lúdica de vivenciar o outro (lugar, personalidade, comportamento) e vislumbrar o desconhecido. Acreditávamos – filosófica ou intuitivamente – que criaríamos [ou estávamos criando] novas estruturas. Enquanto isso, no contrafluxo, as velhas estruturas de mídia acordaram, aprenderam e tomaram conta do nosso espaço mágico.

Ademais, envelhecemos e, pasmem, gente ainda mais velha passou a ocupar (mas, principalmente, estragar) nossos espaços. Hoje, já somos os intrusos de novos espaços, estragando-os para nativos mais jovens que nós.

Ah, sim, os anúncios.

Arthur T. Merrick, 1917. Fonte.

Sem grandes soluções para o velho problema da rentabilização – e uma vez ocupada a terra de ninguém, quando não havia estruturas para combater pirataria e/ou fazer valer qualquer copywright –, a internet se encheu de anúncios.

Hoje, abrir qualquer página nova na internet sem um bloqueador de anúncios é uma tarefa estressante. Um pop-up, uma caixa de cadastro (nosso site também tem!), um anúncio rolando para cima, um banner embaixo. Vídeo, autoplay, mais pop-up. E os aplicativos em geral não são tão diferentes.

Talvez não haja exemplo mais simbólico desse senso de derrota que o da Netflix. Estamos falando de um sucesso da virada digital que desestabilizou até hoje toda a sua indústria. Um ícone de sua era e a vanguarda entre seus concorrentes. A imaterialidade em pleno funcionamento (mesmo que a empresa tenha começado com DVDs). A companhia que arrotou por anos sua superioridade por não depender de anúncios.

E a Netflix adotou os anúncios. Ou seja, copiou o que há de mais tradicional e menos imaginativo na televisão mais arcaica. E, obviamente, deu certo. Obviamente (de novo), seus concorrentes vão todos correr atrás. Então… é isso. Essa é a solução. Essa é a disrupção entrando na própria bunda. A grande ideia consiste em… anúncios. Eis a deprimência.

  • Modismos de mercado sempre impressionam, embora nunca surpreendam. Já reparou em novos cartões ou máquinas de pagamento atendendo por “rosinha” ou “laranjinha”? Caramba, de onde será que isso saiu?

O problema em questão é muito mais estético que ético, ao menos no que tange aos meus incômodos. Não me perturba a tentativa de me empurrarem um produto ou serviço (e se deveria fazê-lo, mas meu cérebro já definhou na configuração mercadológica da sociedade, é outra discussão). Há propagandas e propagandas; anúncios e anúncios. Já me emocionei com propagandas: de imediato me lembro de uma da Mastercard (!) que envolve Pelé e álbum de figurinhas. É (ou pode ser) uma arte — não adentraremos essa discussão, porque, mais que inútil (nada contra), não é divertida.

  • Nota inserida após a publicação: infelizmente, só assistimos a isso aqui depois de dispararmos o texto. A sensação de refrescância (mesmo diante de uma propaganda de banco) deriva da tentativa genuína de pensar e executar algo realmente criativo, não “meme-da-semana” criativo. Óbvio que estamos falando de uma produção, mas esse é um problema de quem controla o orçamento. Enquanto espectador e possível cliente, é um acerto claro. Tardiamente, também nos lembramos deste ótimo exemplo aqui. Quando forma e conteúdo se conectam com um propósito claro, magia acontece — em qualquer contexto.

E não há nada novo em expor produtos. Tomemos como exemplo a “Anunciação” (~1564) de Ticiano. De acordo com [Sir] John Hegarty, ali já temos uma notória publicidade indireta: o vaso de vidro no canto inferior direito da tela – discreto, sutil, desnecessário – indica aos rivais romanos e florentinos que o vidro veneziano era o melhor entre os produtos.

Outro caso: “Um Bar em Folies-Bergère”, de Édouard Manet (1882), com as garrafas da cerveja Bass (também referenciada por Picasso). Puta product placement, mêo.

“Un bar aux Folies-Bergère”, Édouard Manet, 1882.

Inclusive, a suposta pureza de intenções é uma das balelas mais superestimadas na história de qualquer arte. Se alguém produziu beleza porque se encantou com o por do sol ou porque vendeu sua visão ao dono de uma franquia da Cacau Show, o Universo é indiferente.

É sabido o quanto Dostoiévski escreveu essencialmente por dinheiro, isto é, por precisar dele (até passamos por isso em nosso texto sobre apostas). Crime e Castigo não seria necessariamente um romance melhor em outras condições – é até mais fácil argumentar o oposto. Toulouse-Lautrec foi contratado pelo Moulin Rouge (permuta!) para desenhar seus tão copiados cartazes, que se tornaram icônicos do mesmo jeito. Um dos mais belos discos de Tom Jobim foi encomendado pela Odebrecht. É menor por isso? Não. Tanto faz.

  • Apenas um grande artista é funcional o suficiente para não depender de motivações puras ou algo assim… O capricho absoluto é o desapego. No frigir dos ovos, o que fica é o que foi feito, e não sua motriz.

Enfim, os anúncios.

Telas favorecem anúncios, e hoje tudo é tela (o que aconteceu com os táteis, ágeis e intuitivos botões?). Temos telas nas ruas, nos ônibus, nos aviões, nos elevadores. Portanto, temos anúncios em todos esses espaços. Não existe AdBlock pessoal, ao menos por enquanto. Fechar-se em qualquer espaço público praticamente presume a companhia de alguma subcelebridade gritando sobre um fundo colorido. Fechar-se em seu próprio mundo, com fones de ouvido, também – ao menos enquanto você não paga. Eficaz ou não, trata-se de um desfecho deprimente.

  • E por que tudo é tela? Bom, vale lembrar da regra 3 do início do texto (e, claro, do fato de a tecnologia das telas ter avançado drasticamente em 20 anos – lembra como monitores e TVs eram tenebrosos, pesados e cansativos aos olhos? [Não somos luditas!] –, além de ter ficado muito mais barata). Aqui preferimos a explicação pelo viés da sociologia de boteco e, portanto, afirmamos, sem qualquer base, que se a tecnologia das telas avançou e se elas ficaram mais baratas é tão somente porque houve um esforço maior em fazê-lo justamente pelo fato de telas comportarem anúncios.

Um problema essencialmente estético. A distopia não é uma placa de néon, a oferta cansativa de produtos ou a solidão em meio às cores vivas de um arranha-céu reluzente. É tudo isso somado e deformado em seu grau mais pobre: o som constante do celular alheio num ambiente apertado; marcas dialogando entre si como adolescentes; o eterno fluxo de interrupções visuais; a confirmação de que o novo envelheceu mal e, na garupa dele, você também.

Baú: Charles Portis

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Depois do jantar entrei no saguão às escuras. Ainda era o “happy hour” e o lugar estava apinhado de moradores locais. Não vi socialite alguma. Tive dificuldade pra conseguir um dos banquinhos sem encosto no bar porque toda vez que algum deles vagava eu esperava um ou dois minutos deixando-o esfriar, pra que o carlo do corpo se dissipasse da almofada de plástico, mas aí outra pessoa se sentava. A multidão escasseou quando os preços ficaram mais caros e aí eu meio que tive o bar inteiro só pra mim. Vi um homem de pé na ponta do balcão escrevendo uma carta com um lápis. Ele estava rindo do seu próprio trabalho, um bandido solitário escrevendo insultos cruéis pro chefe da polícia.

Pedi uma caneca de cerveja e dispus minhas moedas sobre o balcão, em colunas divididas de acordo com o valor. Quando a cerveja chegou, mergulhei o dedo nela e umedeci cada uma das pontas do guardanapo de papel pra ancorá-lo, de modo que não subisse junto com a caneca toda vez e eu parecesse um pateta. Bebi do lado da caneca que uma pessoa canhota usaria, na crença de que menos bocas tinham estado desse lado. Essa também é a minha política com xícaras, qualquer recipiente com alça, mas geralmente é de se esperar que as xícaras sejam lavadas com mais esmero do que canecas de bar. Uma rápida chapinhada na água aqui e ali e essas belezinhas estão de volta na prateleira!

À minha frente do outro lado do balcão havia um espelho escuro e acima dele uma cabeça de veado com um cigarro na boca. Na área das mesas uma mulher tocava um órgão elétrico. Ninguém estava berrando pedidos pra ela. Eu era a única pessoa do lugar que aplaudia sua música — uma bravata de viajante. E depois de algum tempo eu também parei de aplaudir. Eu não tinha a menor personalidade. Se os outros fregueses de repente decidissem atacar a pobre mulher com garrafadas, com aquelas garrafas quadradas de gim, creio que eu teria me juntado a eles. Isso era uma coisa nova. Todos nós sabemos do aristocrata que entra em derrocada, mas ali estava algo que Jefferson não havia antevisto: um serviçal decadente.

Charles Portis, O Cão do Sul, 1979 (ed. Alfaguara, 2015, trad. Renato Marques).