666, o número do… Vangelis

Extraído da edição 52 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

“QUALQUER UM COM INTELIGÊNCIA PODE INTERPRETAR O NÚMERO DA BESTA. É O NÚMERO DE UM HOMEM. ESTE NÚMERO É 666.” (RecordMecca)

O grego Vangelis (leia-se vanguélis, não vângelis) é um músico consagrado, consagrado demais. Ele é responsável pelas trilhas sonoras de Carruagens de Fogo (1981) e Blade Runner (1982), por exemplo.

Prolífico, onipresente e longevo, é natural que Vangelis tenha assinado inúmeros materiais para contextos diversos. Dessa forma, seu catálogo contempla desde música oficial de Copa do Mundo (2002) até a série Cosmos (1980), de Carl Sagan, que utilizou algumas de suas composições antes da popularização extrema do artista.

Dependendo da boa vontade, este grego pode ser visto como um mago do sintetizador e engenheiro da música eletrônica; também pode ser visto como um chato de new age ou sinônimo de composições datadas – ou tudo isso junto. (Estamos mais inclinados à primeira interpretação.)

E quem é jovem – como todo o corpo maciço da Enclave, composta de millennials que não coexistiram com a Iugoslávia – não teve acesso ao que Vangelis fez antes de ser o Vangelis, isto é, quando Evángelos Odysséas Papathanassíou era apenas um compositor/tecladista grego com um nome tipicamente grego tocando em uma banda grega.

A banda atendia por Aphrodite’s Child, e seu último disco é uma obra-prima.

Essa informação pode soar quase ofensiva aos mais velhos, pois a Aphrodite’s Child atingiu um sucesso notável na década de 1960, e seu vocalista, Demis Roussos (1946-2015), tornou-se uma estrela mundial. Roussos se apresentou diversas vezes no Brasil e, reza a lenda, lotou um Maracanã com capacidade para 150 mil pessoas – informação que não conseguimos confirmar em nenhuma fonte confiável.

(O fato é que Demis Roussos, notabilizado pelo figurino criativo e pela obesidade gradativa, foi um fenômeno setentista; se você, colega millennial, não o conhecia, é possível que seus pais ou avós o conheçam. Por sua vez, se você viveu o ápice da Aphrodite’s Child, muito obrigado por ler a Enclave e contorcer nossa demografia limitada – compartilhe sua memória conosco.)

Os dois primeiros discos, aos quais não nos atentaremos, são leves, agradáveis, certinhos. ‘Rain and tears‘, do primeiro, e ‘It’s five o’clock‘, do segundo, representam bem a combinação de arranjos limpos e voz angelical que caracterizava os filhos de Afrodite.

Mas o terceiro, meu amigo, o terceiro é obra do próprio Satã.

Gravado em 1970-71 e lançado em 1972 – quando a banda já havia acabado –, 666 (The Apocalypse of John, 13/18) é uma obra épica e intensa cuja qualidade se sobressai tranquilamente a seu nicho. Isto é, não é necessário apreciar discos conceituais de rock progressivo ou ataques de megalomania da contracultura para compreender por que 666 é tão… bestial.

Todas as músicas foram compostas por Vangelis; e todas as letras, pelo diretor Costas Ferris. Juntos, eles elaboraram o conceito do disco, e as aspas a seguir derivam deste texto robusto de Mairon Machado, cuja leitura recomendo aos interessados.

“Costas [Ferris] escreveu um livro conceitual para o álbum, 666 (The Apocalypse of John, 13/18), e a ideia era simples: um grande circo com acrobatas, dançarinos, elefantes, tigres e cavalos mostrando um espetáculo referente ao fim do mundo. Enquanto o show ocorre com diversos efeitos de luz e som, algo estranho começa a acontecer fora do circo, que é a revelação da destruição do planeta Terra. O público acredita que o que acontece fora do picadeiro faz parte do show, mas o narrador começa a alertar a plateia que aquilo é real. Então, uma imensa e densa batalha entre o bem e o mal passa a ser travada, até que um deles vença!”

666 contou com o retorno do guitarrista Silver Koulouris, que havia deixado a Aphrodite’s Child em razão do alistamento obrigatório. E guitarra era justamente o que faltava para o Pandemônio ser tão expressivo. Com metais, flautas e outras adições variadas, a proposta da banda ficou completa: a melhor maneira de degustar essa empreitada ocorre com ‘All the seats were occupied‘, penúltima faixa do disco, uma porrada de quase 20 minutos que basicamente repassa o álbum inteiro.

Ao contrário de tantas iniciativas de rock progressivo, que às vezes se perdem dentro da própria bunda, 666 não deixa a peteca cair em momento algum. As composições de Vangelis conseguem transitar por gêneros, arranjos e ideias. Basta ouvir ‘Babylon‘, ‘The four horsemen‘, ‘The beast‘, ‘The wedding of the lamb‘ e ‘‘ para testemunhar tamanho alcance – esta última consiste basicamente na obtenção de um orgasmo, o que não poderia ser menos Carruagens de Fogo.

Quem associa Vangelis à tranquilidade da new age ou Demis Roussos à candura de suas canções pode se surpreender ao deparar com uma combinação tão expressiva de fim de mundo, blasfêmia e orgia. Não pela surpresa, mas pela execução, 666 é um discaço e, como o próprio Apocalipse, não envelheceu nada.

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  • 666 inteiro no YouTube e no Spotify.
  • Vangelis é o diminutivo de Evángelos. Por sua vez, o nome completo de Demis era Artemios Ventouris-Roussos.
  • Por onde começar com Vangelis? See You Later (1980). A faixa ‘Memories of green’ seria (muito bem) reaproveitada na trilha sonora de Blade Runner.
  • Aliás, fãs de Blade Runner devem ter percebido (ou estranhado) ao longo do texto: o Aphrodite’s Child lançou ‘Rain and tears‘ em 1968; Vangelis, ‘Tears in rain‘ com o filme. A música acompanha o monólogo final e foi reutilizada por Hans Zimmer em Blade Runner 2049 (2017).
  • Demis Roussos no Jô Soares; Demis Roussos com Hebe Camargo.
  • ‘The friends of Mr. Cairo’, de Vangelis e Jon (Anderson, do Yes) contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura. Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa (12 minutos).
  • Demis Roussos já foi refém do Hezbollah após sequestro do voo TWA 847 em Atenas. Ao longo dos cinco dias de sequestro, o cantor completou 39 anos. “Eles me deram um bolo de aniversário e um violão para cantar. Foram bastante educados conosco”.

Baú: Frank Herbert

Extraído da edição 52 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Passado um ponto crítico no interior de um espaço finito, a liberdade diminui à proporção que os números aumentam. Isso vale tanto para os seres humanos no espaço finito de um ecossistema planetário quanto para as moléculas de gás num recipiente hermeticamente fechado. A pergunta, no caso dos seres humanos, não é quantos conseguirão sobreviver dentro do sistema, e sim que tipo de vida levarão aqueles que sobreviverem.
Frank Herbert, Duna, 1965 [Apêndice I, personagem Pardot Kynes].