Não creio em mais nada

Extraído da edição 65 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Minha mãe provavelmente se envergonharia, mas apenas no último fim de semana conheci quem foi Paulo Sérgio (1944-1980) – o músico, não o atacante. (O atacante jogou com o Totti.)

A Enclave, como já reconhecemos, não escapa à sua natureza millennial. Há vantagens, como saber desinstalar tudo o que desacelera um Windows praticamente por instinto. E há desvantagens, como a falta de contato direto com elementos culturais renegados pela crítica.

Volta e meia, elementos assim – como o cantor Paulo Sérgio – são redescobertos pela internet, e então novas gerações se surpreendem, resgatam e reinterpretam o adormecido. Tratamos de algo parecido quando escrevemos sobre o city pop.

Em uma dessas mixtapes difíceis de mapear por que exatamente surgem nas recomendações do YouTube, conheci Paulo Sérgio, o cantor. Brega, romântico, popular. Morreu precocemente, aos 36, vítima de um derrame cerebral – há exatos 40 anos e 10 dias de quando escrevemos este texto. Tinha lá suas polêmicas.

Inegavelmente parecido com Roberto Carlos, foi comparado com o rei e tachado de imitador. Quando finalmente se conheceram, em 1973, deram-se muito bem – ao menos na frente das câmeras.

Mas o que impactou foi ‘Não creio em mais nada‘, do disco Paulo Sérgio Vol. 4 (1970, Spotify). Arranjos, batida, letra, melodia e até um certo groove: esse manifesto de fatalismo, aparentemente composto por Totó, é uma bomba da mais atemporal resignação.

Não sei o que faço
Se volto agora ou continuo a seguir
Eu sinto cansaço
E já não sei se vale a pena insistir
(…)

Não creio em mais nada
Já me perdi na estrada
Já não procuro carinho
Me acostumei na caminhada sozinho
A vida toda só pisei em espinho
Já descobri que o meu destino é sofrer

Os remixes contemporâneos já começaram a pipocar – aqui e aqui, por exemplo –, e Fernanda Takai, pescando o zeitgeist, lançou uma versão da música em junho.

Para você que está desanimado, soque o play e complemente seu drama existencial com esses 140 segundos de cinismo: hoje não será melhor do que ontem, e sigamos em frente! Boa segunda-feira e uma grande semana para todos nós.

Baú: Richard Yates

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E ela jamais conseguira explicar, nem mesmo compreender, que o que adorava não era o emprego – qualquer emprego serviria –, nem mesmo a independência que o emprego lhe propiciava (embora isso fosse importante para uma mulher sempre à beira do divórcio). No fundo, o que ela adorava e precisava era do trabalho em si. “Trabalho duro”, seu pai sempre dissera, “é o melhor remédio para todos os males do homem… e da mulher”, e ela sempre acreditara nisso. A pressão, a agitação e as luzes do escritório, o almoço rápido entregue numa bandeja, o despacho de papeis, e o atendimento de chamadas telefônicas, o cansaço das horas extras e o grande alívio de tirar os sapatos à noite, num cansaço que sempre a deixava inerte, com força apenas para tomar duas aspirinas, um banho quente, comer um jantar leve e cair na cama – eis a essência do que ela adorava; era isso que a fortificava contra as pressões do casamento e da maternidade. Sem isso, conforme costumava dizer, teria enlouquecido.

Richard Yates, Foi Apenas um Sonho (Rua da Revolução), 1961. Edição brasileira da Alfaguara, 2009.