Gutemberg Medeiros: Besteiras ainda assolam o país

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Besteiras continuam jorrando todos os dias na grande imprensa, é impossível ignorá-los. Apenas dois recentes envolvendo o atual ocupante da cadeira da presidência da República assim o comprova. Na agenda oficial, a supracitada autoridade constava uma visita à “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome do antigo do principal componente da ex-URSS finda em 1991. Em discurso de 26 de junho, o mesmo chefe do Poder Executivo afirmou que despertou o vívido interesse de “empresários soviéticos” investirem no Brasil. Na mesma viagem, declarou que iria almoçar com o “rei da Suécia”, quando estava na Noruega sob o reinado de Harald V.

Provavelmente este senhor não saiba, mas está inserido em rica e extensa tradição que viceja no Brasil e um de seus maiores historiadores da realidade emergente foi Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista e escritor Sérgio Porto – em seu impagável “Festival de Besteiras que assolam o País”. Originalmente coluna do jornal Última Hora, rendeu três ótimos volumes publicados nos anos de 1960 e recentemente enfeixados em apenas um pela Companhia das Letras. Fonte inesgotável para os mais diversos perfis de leitores – de leitores a escritores até aos que desejam tentar entender onde vivemos. 

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Falando em besteira, uma das mais interessantes foi proclamada por Mário de Andrade em determinada resenha ao afirmar que “Conto será sempre aquilo que seu autor batizou de conto”. Ironia desregrada ao referir-se a determinada coletânea publicada em França paga pela Academia Brasileira de Letras onde havia de tudo, até pedaço de romance. Pois ao folhear o RelevO de maio e junho foi com prazer que me deparei com alguns dos vencedores do Concurso de Conto de Curitiba e constatar que esse gênero não apenas continua vivo, mas com bons representantes surgindo neste cenário. O tema da competição não poderia ser mais próximo ao gênero, “Um olhar sobre a Cidade”, pois o que são fundamentais os andarilhos da urbe nas tradições próximas de conto e crônica. Como atesta Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Drummond, João Antônio e tantos outros. Tanto os jovens autores quanto os tradicionais comprovam que bater perna na rua pode gerar boa literatura.

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O novo é uma construção eventualmente inacessível ao olhar de seus contemporâneos. O novo também é derivado se suportes recém-surgidos, como a literatura emergente do meio digital em redes sociais. Pois experimentação do tipo também constou do exemplar de junho de RelevO. Importante veiculá-la, não há dúvida, mas ainda não vejo consistência estética pelo que foi publicado. Provavelmente, miopia minha como a de Anatoli Lunatcharski, o ministro da Educação e Cultura de Lênin, ao nada ver de importante nas vanguardas russas. Apesar disso, ele deu todo o apoio material para que fossem veiculadas e garantiu um dos mais preciosos tesouros que ainda nos alimenta. 

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RelevO de maio trouxe em sua quarta capa trechos de ensaios de Otto Maria Carpeaux derivados do trabalho de pesquisa de Eduardo Zomkowski e em publicação no seu site Projeto Carpeaux. O pesquisador informa que já peneirou mais de 50 textos inéditos em 20 periódicos. Retomar a produção desse austríaco radicado no Brasil é fundamental, pois ele teve vasta atividade não apenas na imprensa, mas também no mercado editorial. Para citar um exemplo: a coletânea em nove volumes de contos russos pela Editora Luz, no início dos anos 60, todos organizados e com lúcidas introduções de Carpeaux – que conhecia as obras de lê-las em russo. 

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Para quem estiver em São Paulo em 28 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade às 19 horas farei a palestra “Tolstói e o novo homem russo do século XX” sobre a prosa “A morte de Ivan Ilitch”. Além de analisar esta obra fundamental, vou expor como o autor russo está presente ainda hoje na literatura brasileira – especialmente em Lima Barreto e Hilda Hilst. O evento está inserido no inédito ciclo “Literatura, teatro, antiteatralidade e performance” a reunir dez montagens de companhias paulistas e seis conferências de pesquisadores ligados aos autores e peças programadas, sob a refinada curadoria do jornalista e doutorando da ECA/USP Álvaro Machado. As palestras e encenações ocorrem até novembro.