Gutemberg Medeiros: Memórias de todo mundo, distopias e algo mais

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Assim como acontece a mais de quatro décadas nos EUA e na Europa, no Brasil está instaurada uma realidade corporativa no mercado editorial, onde se formam grandes grupos a fagocitar selos já existentes. Disso decorre uma consequência das mais negativas: publica-se apenas o que dá retorno em curto prazo. É o fim dos long sellers ou dos autores novos ou mesmo já com quilometragem que apostam no novo. Ou seja, dificilmente um Guimarães Rosa teria lugar nas gôndolas. 

Quem está provendo o mercado de bons títulos fora desse horizonte contábil são as pequenas editoras. Entre elas, destaca-se uma segmentada em literatura russa, Kalinka, que já trouxe em cuidadas traduções diretas de autores como Daniil Kharms e Sologub. Em seu site há também uma revista, com poemas de Anna Akhmatova vertidos pela professora do Curso de Russo da USP Aurora Bernardini.

Pois a editora vai lançar em 2018 uma obra de fundamental importância, as memórias de Nina Nikolaievna Berberova, também traduzidas por Aurora. Boris Schnaiderman considerava esta obra uma das mais importantes da chamada literatura de exílio russo. Memórias de Nina e de todo mundo que interessava na literatura russa da primeira metade do século passado.

Nascida a 1901, em São Petersburgo, emigrou da ex-URSS em 1922 com o poeta Vladislav Khodasevich e viveu em Berlim até 1924 e, depois, em Paris – os maiores bolsões de emigrados russos no mundo. Na capital francesa, atuou como jornalista em jornais russos onde publicou sua prosa e poemas, histórias curtas, poemas, crítica de filmes e resenhas sobre a nascente literatura soviética. Ainda em Paris, escreveu uma das primeiras biografias sobre Tchaikovski, em 1936, onde aborda a homossexualidade do compositor.

O grande valor de suas memórias – além da apurada e deliciosa carpintaria literária – está em falar sobre a vida dos exilados russos e sobre bastidores valiosos do mundo literário. Em suas páginas, encontramos Anna Akhmatova, Vladimir Nabokov, Boris Pasternak, Marina Tsvetaeva, Vladimir Maiakovski, Ievgueni Zamiatin, entre tantos outros. 

A autora emigrou aos EUA em 1950 onde se tornou destacada professora em universidades como Yale e Princeton. Justamente em Princeton, o escritor argentino a conheceu pessoalmente e ficou tão impressionado com ela a ponto de basear um personagem na prosa “O caminho de Ida”, uma das últimas do escritor argentino. Certamente, o livro das memórias de Berberova deve ser um dos mais importantes lançamentos de 2018, forte concorrente aos principais prêmios editoriais, como o Jabuti. 

 

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Outro lançamento que deve chegar até o fim do ano pela Editora 34 é a primeira tradução competente e direta do russo publicada no Brasil do clássico Nós, de Zamiatin, vertido por Francisco Araújo. Outra direta foi publicada recentemente, mas infelizmente não deu conta da complexidade da obra. O texto original exige a noção de Transcriação pensada por Haroldo de Campos e não apenas tradução, priorizando mais os sentidos e a musicalidade interna do texto do que propriamente versão literal.

Muitos viram Nós como exemplo de ficção científica, um equívoco. É, acima de tudo, uma grande reflexão sobre a condição humana na modernidade, independente do regime político em que o sujeito está inserido. Assim, representa o pensamento distópico, avesso ao da utopia, em torno do controle opressivo da sociedade sobre o indivíduo. A sua importância pode ser medida por ter inspirado outros clássicos contemporâneos a exemplo de 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Leitura indispensável, especialmente para os tempos que correm. Aviso ao leitor: fique de olho nas próximas versões do russo de Francisco Araújo – certamente um dos mais capacitados da nova geração de tradutores que emergiu nos últimos dez anos no Brasil.

 

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Impressionam manifestações nas redes sociais contra Lima Barreto ser tema da FLIP de 2017 por ser este um evento de mercado e completamente avesso à obra do escritor. Equívoco. Há anos não se fala tanto de Lima na imprensa, em blogs e em outras mídias. Tudo bem, fala-se muita besteira. Mas essa exposição, de uma forma ou de outra, vai trazer leitores a esse escritor tão importante. O que já compensa. Afinal, Lima escreveu para ser lido e as reedições de suas obras são fundamentais para isso – autor bom é autor na gôndola das livrarias analógicas ou virtuais. O resto é especulação vazia.

 

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Outra coisa que me impressionou foi a edição, certamente, não proposital do último RelevO em que foi publicado um texto sobre encontro com Mia Couto e a minha coluna alusiva às besteiras que assolam o país.

 

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Também na edição anterior do periódico a feliz escolha das traduções dos poemas de Nizar Oabbani, Nazik Al-Malaika e Ezequiel Zaidenwerg. Deste, fica no ar de que revolução o poeta fala. No mesmo exemplar, é bom saber que ensaísmo dos bons continua sendo feito, como o trecho de prefácio de Guardião de Datas. No texto, Ben-Hur Demeneck consegue exercer a difícil arte da síntese sem reducionismo. Não à toa, este cronista dá o valor devido à poesia “encalacrada no cotidiano” sob a égide do tempo. Agora é esperar mais da produção deste remador digno de ser personagem de Nelson Rodrigues.

Gutemberg Medeiros: Besteiras ainda assolam o país

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Besteiras continuam jorrando todos os dias na grande imprensa, é impossível ignorá-los. Apenas dois recentes envolvendo o atual ocupante da cadeira da presidência da República assim o comprova. Na agenda oficial, a supracitada autoridade constava uma visita à “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome do antigo do principal componente da ex-URSS finda em 1991. Em discurso de 26 de junho, o mesmo chefe do Poder Executivo afirmou que despertou o vívido interesse de “empresários soviéticos” investirem no Brasil. Na mesma viagem, declarou que iria almoçar com o “rei da Suécia”, quando estava na Noruega sob o reinado de Harald V.

Provavelmente este senhor não saiba, mas está inserido em rica e extensa tradição que viceja no Brasil e um de seus maiores historiadores da realidade emergente foi Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista e escritor Sérgio Porto – em seu impagável “Festival de Besteiras que assolam o País”. Originalmente coluna do jornal Última Hora, rendeu três ótimos volumes publicados nos anos de 1960 e recentemente enfeixados em apenas um pela Companhia das Letras. Fonte inesgotável para os mais diversos perfis de leitores – de leitores a escritores até aos que desejam tentar entender onde vivemos. 

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Falando em besteira, uma das mais interessantes foi proclamada por Mário de Andrade em determinada resenha ao afirmar que “Conto será sempre aquilo que seu autor batizou de conto”. Ironia desregrada ao referir-se a determinada coletânea publicada em França paga pela Academia Brasileira de Letras onde havia de tudo, até pedaço de romance. Pois ao folhear o RelevO de maio e junho foi com prazer que me deparei com alguns dos vencedores do Concurso de Conto de Curitiba e constatar que esse gênero não apenas continua vivo, mas com bons representantes surgindo neste cenário. O tema da competição não poderia ser mais próximo ao gênero, “Um olhar sobre a Cidade”, pois o que são fundamentais os andarilhos da urbe nas tradições próximas de conto e crônica. Como atesta Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Drummond, João Antônio e tantos outros. Tanto os jovens autores quanto os tradicionais comprovam que bater perna na rua pode gerar boa literatura.

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O novo é uma construção eventualmente inacessível ao olhar de seus contemporâneos. O novo também é derivado se suportes recém-surgidos, como a literatura emergente do meio digital em redes sociais. Pois experimentação do tipo também constou do exemplar de junho de RelevO. Importante veiculá-la, não há dúvida, mas ainda não vejo consistência estética pelo que foi publicado. Provavelmente, miopia minha como a de Anatoli Lunatcharski, o ministro da Educação e Cultura de Lênin, ao nada ver de importante nas vanguardas russas. Apesar disso, ele deu todo o apoio material para que fossem veiculadas e garantiu um dos mais preciosos tesouros que ainda nos alimenta. 

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RelevO de maio trouxe em sua quarta capa trechos de ensaios de Otto Maria Carpeaux derivados do trabalho de pesquisa de Eduardo Zomkowski e em publicação no seu site Projeto Carpeaux. O pesquisador informa que já peneirou mais de 50 textos inéditos em 20 periódicos. Retomar a produção desse austríaco radicado no Brasil é fundamental, pois ele teve vasta atividade não apenas na imprensa, mas também no mercado editorial. Para citar um exemplo: a coletânea em nove volumes de contos russos pela Editora Luz, no início dos anos 60, todos organizados e com lúcidas introduções de Carpeaux – que conhecia as obras de lê-las em russo. 

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Para quem estiver em São Paulo em 28 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade às 19 horas farei a palestra “Tolstói e o novo homem russo do século XX” sobre a prosa “A morte de Ivan Ilitch”. Além de analisar esta obra fundamental, vou expor como o autor russo está presente ainda hoje na literatura brasileira – especialmente em Lima Barreto e Hilda Hilst. O evento está inserido no inédito ciclo “Literatura, teatro, antiteatralidade e performance” a reunir dez montagens de companhias paulistas e seis conferências de pesquisadores ligados aos autores e peças programadas, sob a refinada curadoria do jornalista e doutorando da ECA/USP Álvaro Machado. As palestras e encenações ocorrem até novembro.

Gutemberg Medeiros: Nelson Rodrigues em Som e Fúria

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A mais longeva crítica teatral no Brasil, Barbara Heliodora, desde 1957 em jornais diários, não hesitava em comparar Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam suas obras. Ambos tinham talento especial para o teatro, vendo o mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”, enfatizava.

A amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com papos tranquilos e simpáticos”.

Barbara acreditava que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto. Já seu maior tino estaria nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é…, alterando definitivamente o teatro brasileiro”. 

Por outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara contava uma que ouviu pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para esse verde e me dá uma tranquilidade…” ou “Se carrocinha apanha cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em seu cotidiano.

Lembrar Nelson Rodrigues hoje parece ser fundamental, especialmente ao ver como a grande imprensa reprocessa os acontecimentos. O dramaturgo era nietzschiano ao defender que não existem fatos, mas a interpretação dos mesmos.

Nelson provavelmente elaborou os dois momentos mais intensos de metajornalismo no Brasil nas peças Boca de ouro (1960) e O beijo no asfalto (1961). Após a estreia desta última peça, declarou: todos estamos afetados por esta peça e ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso: somos modelados, condicionados pela imprensa. Em O beijo no asfalto é dramatizado e tratado como se fosse uma personagem da peça. Cria-se então uma mútua dependência: os leitores tornam-se vítimas do que leem nos jornais e estes tornam-se vítimas dos caprichos, das atitudes e reações de seus leitores.

O beijo no asfalto mereceria ser lida com atenção por todos os que querem tecer uma leitura crítica do que os cerca. Literalmente, mostra como os fatos são reprocessados conforme a conveniência do veículo em que são expostos.

A histórica montagem se deu em 1961, com o grupo de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Mário Lago e grande elenco no Teatro Municipal, na Cinelândia carioca. Era comum no teatro rodrigueano o jornalismo ser representado por profissionais de ética, no mínimo, discutível. Em O beijo no asfalto, o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca.

Um repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse jornalista, personagem chave do espetáculo – praticamente seu protagonista –, receba o nome verdadeiro do maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora: Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o mesmo no qual Nelson era sucesso há dez anos com sua coluna “A vida como ela é…” – também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte trágica.

Luiz Fernando Mercadante – que atuou por grandes veículos como Jornal do Brasil e a revista Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça”, lembrava o jornalista. Mas, fora o Amado e Wainer, todos viraram a cara para Nelson, o que o fez sair do jornal.

A última coisa que o autor de O beijo no asfalto – e de outras 16 peças, além de romances e contos – deseja fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, dizia ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão, notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa russa da segunda metade do século 19, com debates políticos, morais e metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura.

Nelson morreu afirmando que o grande autor de sua vida foi Dostoievski, tudo estava lá. E certamente se valeu de O duplo e Crime e castigo, entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de Dostoievski, mas legou uma ou outra observação, como “a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” e “Dostoievski é o meu único professor de drama”. Não à toa, Nietzsche foi atento leitor do russo, a partir do qual elaborou a sua concepção de Super-Homem.

Para melhor ler os tempos que correm, falta-nos alguém como Nelson no Jornalismo. Para melhor traduzir esses trás dos fatos, tão plenos de som e fúria.

Gutemberg Medeiros: Boris Schnaiderman, jornalista

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Algumas editoras lembram o centenário da Revolução Russa com lançamentos de obras literárias e de cunho histórico. Mas há outro centenário a lembrar em relação à cultura russa no Brasil, o de nascimento de Boris Schnaiderman, em 17 de maio de 1917. Nascido em Úman, mas criado na cidade portuária de Odessa, dedicou 74 anos à tradução e divulgação da literatura e cultura russas no Brasil.

A lista de autores que Boris trouxe até nós é extensa. Como Isaac Bábel, Aleksander Blok, Ivan Bunin, Fiódor Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Máximo Górki, Daniil Kharms, Vladimir Maiakóvski, Ossip Mandelstam, Iuri Oliecha, Leon Tolstói, Anton Tchékhov, entre tantos outros. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos por este que é uma das mais originais personalidades da cultura brasileira.

O que pouco se fala sobre Boris é a sua trajetória de jornalista cultural. São mais de 300 artigos publicados na imprensa desde 1956. Ele inicia no antigo suplemento literário de O Estado de São Paulo editado por Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido. Foi-lhe oferecido espaço intitulado “Letras Russas”, em paralelo à coluna “Letras Germânicas” de seu amigo e um dos principais críticos de teatro, o berlinense Anatol Rosenfeld.

Formou gerações de leitores, não exclusivamente sobre literatura russa. O seu ensaísmo chega ao tom de diálogo dos mais abertos. Por vezes, vislumbra aspectos da sua memória, desde que relevantes para o fluxo de entendimento. Ele lembra que logo depois que assumiu a coluna no Estadão, fez confidência a Décio. Sentia-se muito mal como comunista em colaborar em um dos principais jornais da direita. O editor sorriu e pediu para olhar para a redação. Assim como em toda a grande imprensa, a maioria dos jornalistas era de esquerda. Logo, tinham de sobreviver de uma forma ou de outra naquele ofício e buscar espaços para veicular algo na contracorrente do jornal.

Em termos de jornalismo cultural, Boris é um exemplo dos mais bem acabados da transição que ocorreu desde os anos de 1950. Como historiografou Russel Jacoby, professor da Universidade da Califórnia, em Os últimos intelectuais (Edusp, 1990), o intelectual que pensava questões emergentes da sociedade na crítica literária ou ensaio sociológico falava ao público o mais amplo possível a partir do jornal diário. Gradativamente, esse segmento migrou para as universidades e fala para determinado leitor iniciado em sua área de pesquisa.

Ele fez a transição para a universidade, ao fundar o Curso de Russo, na USP, em 1960, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da atividade de tradutor no Brasil. Manteve a qualidade de colaborar com jornais e revistas, mesmo com periodicidade variável, mantendo um texto dos mais inclusivos para todo o perfil de leitor, bastasse ser interessado em literatura e cultura russas. Este não foi o primeiro curso do gênero do país de terceiro grau, mas foi o único que sobreviveu à ditadura civil-militar instaurada em 1964. Sob o comando de Boris e com o apoio de colegas e alunos – entre eles Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes – manteve essa trincheira livre de pensamento e prática cotidianas.

Para o leitor ter noção da rica produção jornalística de Boris, há duas coletâneas de textos. A primeira, em catálogo pela Editora Perspectiva intitulada Projeções Rússia/Brasil/Itália (1978), traz textos publicados em jornais e revistas das décadas de 1960 e 1970. Um dos destaques é a revelação de que o poeta Alexander Púchkin foi tradutor para o russo de uma lira do árcade Tomás Antonio Gonzaga a partir de uma edição francesa.

Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (1983, esgotado) é um todo coeso de textos jornalísticos publicados, entre outros, no “Caderno de Sábado”, suplemento semanal de cultura do extinto Jornal da Tarde (do mesmo grupo do Estadão). Livro pioneiro onde se descortina o gradativo descobrimento do pensador russo Mikhail Bakhtin – hoje presente em pesquisas muito além dos campos da linguística e literatura –, cujo introdutor no Brasil foi o próprio Boris. Mais uma vez, em cada texto ele introduz o leitor não especializado ao universo de reflexões de Bakhtin, revelando a sua riqueza e pertinência.

Na construção de uma memória coletiva, igualmente função do bom jornalismo, uma das obras em que Boris melhor soube abordar importantes passagens de sua vida está em seu volume de ensaios Tradução: ato desmedido (Perspectiva, 2011), onde narra como se deu o envolvimento com a língua russa em situações diferentes ao de tradutor. Como todos, nem sempre tem dimensão exata do que viveu. Isso se torna evidente quando narra os meses em que foi “secretário” do correspondente da Agência Telegráfica da URSS (Tass), Iúri Kalúguin, entre 1945 e 1947.

Ao ler a descrição, como jornalista, não pude concordar que Boris fosse apenas secretário e fui eliminar essa dúvida. Ele manteve a versão reiteradamente. Então, pedi para descrever seu cotidiano. Boris chegava à casa do russo e lia jornais, revistas e escolhia as notícias que poderiam interessar aos leitores da Tass. Feita essa triagem, lia em russo o que estava em português para Kalúguin. O jornalista escrevia a matéria e Boris revisava os dados. Eventualmente, o “secretário” somava ao texto aspectos que estivessem em pressuposição ao leitor brasileiro, mas não ao russo. Após a definição de quais sugestões de Boris seriam aceitas, providenciava-se o texto final ainda com uma última leitura deste. Expliquei a Boris que ele exerceu funções específicas de um jornalista: pré-pauta, pauta, redação, pré-edição e edição. Ele me olhou espantado e reconheceu o seu engano.

Boris partiu no ano passado, aos 99 anos. Mas o seu acervo está aí e pode gerar várias coletâneas de seus textos jornalísticos, a exemplo do que ocorre há anos com a produção de Anatol Rosenfeld. Enquanto isso, as suas traduções estão em catálogo pela Editora 34, que há pouco relançou O processo do tenente Ieláguin de Ivan Bunin e promete relançar a prosa Inveja, de Iuri Oliesha, uma das principais da literatura russa e publicada originalmente em 1927.

Gutemberg Medeiros: Corpo-a-corpo com a vida

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 1993, participei como ouvinte de congresso sobre os rumos do jornalismo cultural no Brasil e na Alemanha, no Instituto Goethe paulistano e com a presença de editores dos mais importantes jornais de ambos os países. Ainda na era pré-Internet, já se falava abertamente da crise no setor que resultou na presente exiguidade – para sermos econômicos ante quadro tão devastado. Entre os editores que entrevistei, estava um dos mais destacados e longevos em atividade na Alemanha, a frente do suplemento semanal do Frankfurter Allgemeine Zeitung. No mesmo posto, o escritor e pesquisador Siegfried Kracauer fez história e parte da sua preciosa produção jornalística pode ser lida em O ornamento da massa (Cosac Naify).

Após abordar as questões relativas ao congresso, perguntei o que estava sendo trabalhado – direta ou indiretamente – na Alemanha após a queda do muro de Berlim e a reunificação do país. Ele me dirigiu um olhar gélido e perguntou se algum escritor trabalharia com isso. Respondi que dialogar com os rumos de seu país era normal na literatura mundial e, especialmente, na literatura alemã. E enumerei nomes representativos, como Goethe, Novalis, Thomas Mann, Brecht e Peter Handke. O editor me cortou ao ouvir este último nome, declarando ser austríaco e não alemão. Despediu-se secamente. Além de tudo, era ligado a uma tradição ultrapassada da crítica, ao priorizar o local de nascimento e não a língua de expressão original.

Venho abordar este aspecto por sentir um tanto falta desse diálogo explícito ou implícito da literatura atual com o importante momento vivido por todos nós no Brasil, pelo menos desde 2013. Digo isto pensando especialmente na produção dos autores que colaboram com o RelevO.

Não estou dizendo para fazer proselitismo defendendo um lado ou outro da polaridade que nos assola. Nada disso. Mas considerando como a literatura é também um espaço possível para expressar o demasiadamente humano de nosso tempo e espaço, partindo de determinadas vozes do passado e se projetando ao futuro, para lembrar o pensador russo Mikhail Bakhtin.

Alguém que estava afinado com essa proposta – não, corrijo, mais do que isso, um ofício de vida – foi o escritor João Antônio. Ele chegou a cunhar uma expressão das mais ricas, o seu constante “corpo-a-corpo com a vida”. Em crônica intitulada “Eu mesmo” e publicada em 9 de marco de 1976 no extinto jornal diário Última Hora, escreveu: “Estou aqui, atrás da minha máquina, para um corpo-a-corpo com a vida, com vocês e com a cidade”. Logo adiante, no mesmo texto, “Se fosse para fazer pirueta mental e procurar brilharecos de fácil conquista, acho que não estaria aqui, agora, atrás da minha máquina”.

Algum incauto apressado poderia dizer que João Antônio falava isso por ser mais jornalista do que escritor, pois o mais importante nas artes – especialmente na literatura – seria a forma, o cinzelamento do texto ou coisa parecida. Apesar do que muitos pensam, nem os Formalistas Russos do começo do século – entre eles Chklovski, Jakobson e Tinianóv – chegaram a defender tal posicionamento. Inclusive, eles se comprometiam com a vida emergente pré e pós-1917, tendo entre seus principais parceiros de vida Eisenstein e Maiakovski, entre outros das vanguardas russas.

A literatura brasileira está repleta de escritores que praticaram esse corpo-a-corpo com a vida. A exemplo de Lima Barreto, sobre o qual falamos na coluna anterior. Talvez um dos momentos mais contundentes neste sentido seja o poema dedicado a Stalingrado, de Carlos Drummond de Andrade (A rosa do povo, 1945), ao cantar a resistência heroica ao cerco desta cidade pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Além da admiração do poeta a esta resistência, acompanhada pelos telegramas de Moscou (“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, diz em um de seus versos), Drummond também ecoava sobre a resistência a outra ditadura não estampada na nossa imprensa, a de Getúlio Vargas, de moldes fascistas. Ninguém pode alegar em sã consciência que o poeta colocava a ética acima da estética.

Uma escritora das mais importantes entre nós é Hilda Hilst, cuja poesia completa acabou de ser lançada pela Companhia das Letras. Muitos a chamavam de esteta vazia, a viver numa torre de marfim. O tempo provou o contrário em sua vasta obra que compreende poesia, teatro, prosa poética e crônica jornalística, nas quais, direta ou indiretamente, discute as agruras de seu tempo.

Para ficar apenas no mais explícito, todo o seu teatro está pejado desse diálogo. Especialmente a peça “O Verdugo” (vencedor do Prêmio Anchieta de revelação no teatro paulista de 1968), que aborda discussões de fundo ético a partir das reflexões de um carrasco em plena ditadura civil-militar. Ou a série ”Poemas aos Homens de nosso tempo”, 1974). Em determinado momento, emergem os versos: “LÍDERES, o povo/ Não é paisagem/Nem mansa geografia/ Para a voragem/Do vosso olho./POVO. POLVO./UM DIA).

Por isso, peço aos criadores de RelevO que ousem mais em entrar nesse corpo-a-corpo com a vida. Pois quem tece palavras com os fios do tempo presente pode compor memória e tocar o essencial do humano. Como nos atualíssimos versos de Hilda Hilst.

Gutemberg Medeiros: Lima Barreto e o mito

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 2013, houve um movimento em redes sociais propondo Lima Barreto para ser o homenageado da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Logo surgiram manifestações, algumas violentas, contra essa proposta, pois seria sujar a memória do escritor. As alegações eram de que ele era o maldito em sua época, uma espécie de outsider assumido sempre a lutar contra os espaços legitimados nas esferas literárias e jornalísticas.

Na época, manifestei-me contra esse tipo de coisa, parte dos mitos criados em torno de Lima – e tanto há quem goste de tecer para outros como Patrícia Galvão, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst. Não precisa ser “especialista” em Lima para saber o que é mito ou não. Para tanto, basta recorrer à biografia do escritor realizada por Francisco de Assis Barbosa, publicada em 1952, e ainda uma das referências sobre o autor de “Clara dos Anjos”.

Tudo bem, em 1907, Lima lança com amigos e escritores a revista Floreal e durou apenas quatro números, mas o autor já era um homem marcado, pelo menos incompatibilizado com grande número de influentes jornalistas e escritores. Como se não bastasse a ácida leitura do mundo jornalístico em “Memórias do escrivão Isaías Caminha”. Mas isso por uma parcela desse universo, não pela maioria dos seus colegas. Inclusive, fazia ponto na Confeitaria Colombo na mesma mesa de Olavo Bilac, já considerado o Príncipe dos Poetas e cronista dos mais valorados.

Lima passou por variedade extensa de revistas e jornais, recomendado por amigos de profissão. Desde menores como ABC até a Gazeta de Notícias, um dos mais importantes jornais diários da 1ª República. Poderia ter publicado mais e não o fez, basicamente, por dois aspectos de sua vida pessoal. Primeiro, enquanto trabalhou no então Ministério da Guerra. Como arrimo de família, não poderia se arriscar a ser exonerado por algum artigo ou crônica ácida. Cedo se aposentou. O outro fator a atrapalhar a sua produção foi o alcoolismo. Tão considerado era a ponto de ter sido convidado a participar como colaborador da primeira revista modernista nacional, a Klaxon, e se recusou por julgar Mário de Andrade e companhia um bando nada sério de seguidores do futurismo italiano.

Por outro lado, buscou se integrar ao meio literário, como ingressar na Academia dos Novos (1911) e na Sociedade dos Homens de Letras (1914). Como se não bastasse, Lima quase se candidatou à Academia Brasileira de Letras em três ocasiões – em 1918, 1919 e 1922, ano de sua morte, na vaga de João do Rio, quando formalizou o pedido de inscrição, mas acabou desistindo. Logo, pode-se garantir que ficaria muito feliz se fosse convidado para a FLIP. Finalmente sua hora chegou em um evento cuja importância é inquestionável e todo e qualquer reconhecimento de sua obra é fundamental, pois continua tendo o destino de outros grandes autores, como Dostoiévski: muito citado e pouco lido. Pois que se descubra o continente Lima Barreto.

Ainda na questão de ser “maldito”, isso só é verdade em parte, no que diz respeito às poucas vezes que obras suas ganharam a chamada perenidade do livro. A maioria só foi publicada na década de 1950 pela Editora Brasiliense e graças, novamente, aos esforços de Francisco de Assis Barbosa. Porém, foi jornalista dos mais reconhecidos em seu tempo. Como outros escritores e jornalistas brasileiros, exerceu forte e frequente crítica aos rumos da imprensa. O que chamo de metajornalismo, quando a imprensa vira pauta de si mesma. Ou seja, espécie de ombudsman antes dessa categoria ter sido criada. Para ficar apenas em seus contemporâneos, João do Rio e Medeiros de Albuquerque também ocuparam esse lugar de crítica.

Tomara que, a partir da FLIP, a sua produção no geral, e a jornalística em especial, seja retomada. Um exemplo dos mais felizes foi publicado ano passado com a coletânea de inéditos em livro “Sátiras e subversões”, organizada por Felipe Botelho Corrêa (Penguin & Companhia das Letras). Na seleta, textos publicados nas revistas ilustradas mais renomadas do princípio do século no Rio de Janeiro, Careta e Fon-Fon. Um estudo revelador sobre o escritor é João Antônio, leitor de Lima Barreto, de Clara Ávila Ornellas (Edusp), especialmente ao provar com densa pesquisa como ambos seguiram na trilha do pensamento articulado por Leon Tolstói.

Manuel Bandeira escreveu que Lima traz o gosto da nossa vida, muitas vezes amargo, mas ainda vital para melhor nos compreendermos. Em tempo: Evoé!, caro professor Silvio Demétrio.

 

Nota do editor:

Esta é a primeira coluna de Gutemberg Medeiros. Ele é jornalista e pesquisador. Cursou Mestrado e Doutorado na RCA/ USP e cursa pós-doutoramento em Comunicação e Semiótica na PUCSP. Foi indicado pelo ombudsman antecessor, Silvio Demétrio, e tem mandato de três a nove meses. O editor não interfere no texto acima, exceto em casos de correção ortográfica.  Cabe ao ombudsman repercutir erros do jornal, questões internas e, quiçá, escrever sobre o que bem entender no âmbito da críticas das mídias.