Sorriso arcaico

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O Sorriso Arcaico é uma expressão facial encontrada principalmente em esculturas do período arcaico da Grécia Antiga, entre 650 e 480 a.C. Não há consenso sobre o motivo pelo qual os artistas da época esculpiam os rostos assim, mas alguns conceitos estão bem estabelecidos.

O período arcaico se desenvolveu após o colapso das civilizações micênicas e a “era das trevas” que a sucedeu. Foi um período de renascimento das artes, no qual os gregos tiveram que “reaprender” a representar o corpo humano. Por isso, a escultura arcaica se caracteriza por uma grande rigidez em sua forma.

Sua influência mais perceptível vem da arte egípcia e de seu estilo monumental. No Egito Antigo, as representações artísticas eram restritas às divindades. O sujeito – um faraó ou um deus antropozoomórfico – deveria demonstrar sua transcendentalidade; e sua expressão facial e corporal, um retrato de sua eternidade.

A mesma expressão de ausência e eternidade já podia ser vista no Egito Antigo, como mostra esse busto de Nefertiti.

Esse era provavelmente o papel do sorriso arcaico: conferir um aspecto não natural à obra; indicar que aquilo à mostra não era humano, e sim sobrenatural. É como acontece na iconografia bizantina: não há uma representação fiel do mundo material, mas sim um símbolo de uma perfeição celestial que não pode ser alcançada na Terra. Além disso, esse sorriso contido reflete um estado de bem-estar e felicidade plena.

De fato, nenhuma das figuras apresentadas neste texto parece ter a menor das preocupações. Inclusive, uma das teorias de historiadores da arte é de que essa expressão simboliza a felicidade por meio da ignorância, já que as estátuas realmente têm um ar um tanto avoado.

Outra teoria defende que a escolha dessa boca levemente curvada, com lábios apertados, seria simplesmente uma questão técnica: era difícil talhar detalhes nas cabeças tipicamente arcaicas, em formato de bloco.

Nem guerreiros feridos escapavam do sorriso clássico, como mostra essa figura do Templo de Aphaia.

Contemporâneos aos gregos arcaicos e vizinhos dos romanos, os etruscos também usavam o mesmo recurso, como podemos visualizar no sensacional Apulu de Veii, de 500 a.C. Independentemente de sua razão de ser, o sorriso arcaico permanece como um ótimo recurso para identificar a origem temporal e espacial das esculturas que o ostentam.

Comparando com obras também gregas, mas de outras épocas, ficam claras as discrepâncias: distingue-se da escultura grega Clássica e de seus semblantes mais sérios e serenos, e ainda mais da expressividade intensa da escultura da época Helenística.

Contrapposto

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No século 15, com o desenvolvimento da Renascença, uma das maiores influências da antiguidade nas artes visuais foi o retorno do Naturalismo nas representações humanas. Nas estéticas prévias – o romanesco e o gótico – não havia a preocupação de criar espaço habitável e personagens realistas. A temática, afinal, era muito mais centrada num mundo celestial, não subordinado às leis da física.

Tomemos como exemplo a escultura arcaica grega. Nota-se a rigidez de sua pose. Os joelhos estão travados e os membros, paralelos. Não é uma posição que alguém conseguiria manter por muito tempo sem se sentir desconfortável. No gótico, por sua vez, tão pouca importância é dada a esse tratamento do corpo que normalmente a figura aparece completamente vestida, com poucas pistas dadas sobre o que está debaixo dos panos.

Vamos agora ao David de Donatello, de 1400-e-algo, estátua que abre este texto. Trata-se do primeiro freestanding – não suportado por outra escultura – nu esculpido desde a antiguidade. O garoto está claramente confortável: de fato, parece que ele está posando para o artista. Além da maior precisão na execução dos músculos e da expressão facial, o elemento que mais contribui com a naturalidade da obra é sua posição em contrapposto.

Contrapposto, pois, é o ato de apoiar o peso do corpo em uma só perna, enquanto a outra descansa com o joelho levemente inclinado. Isso cria um desvio nos eixos do quadril e dos ombros, dando ao mesmo tempo estabilidade e liberdade de movimento à figura. É a pose que tomamos inconscientemente ao ficarmos parados em pé. Esse recurso era amplamente utilizado na escultura greco-romana, e por isso foi um dos símbolos da retomada da tradição antiga pelos renascentistas.

Convidamos o leitor a prestar atenção: o contrapposto está em todo lugar. Vênus de Milo? Sim. David de Michelangelo? Também. Apollo Belvedere? Claro. Catálogo de moda genérico? Sim. Foto em grupo de formatura? Provavelmente.

Pátio Belvedere

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Pátio Belvedere, nos museus do Vaticano, abriga algumas das esculturas mais importantes da história da arte ocidental. O Torso Belvedere, o Apollo Belvedere e o grupo Laocoon são exemplos notáveis de obras da antiguidade que foras redescobertas durante a renascença, momento no qual os artistas estavam especialmente dispostos a beber da fonte greco-romana.

Comecemos pelo espetacular Laocoon: esse grupo mostra um pai e seus dois filhos sendo atacados por serpentes enviadas pelos deuses, em cena derivada de um episódio da Guerra de Troia. Redescoberta em 1506, a obra teve grande impacto na arte da época pelo seu dinamismo e tratamento intenso e dramático dos rostos do personagens em sofrimento, além da rendição perfeita da anatomia humana.

Michelangelo foi um dos primeiros a fazer referência à escultura em seu trabalho: os escravos talhados para a tumba do papa Júlio II, a figura do crucificado Hamã e vários ignudi na Capela Sistina, são alguns exemplos. Laocoon também aparece na obra de Rafael, como o cego Homero no afresco Parnaso, nessa caricatura feita por Ticiano, nessa tela de El Greco, enfim, em muitos lugares.

Várias cópias do grupo foram encomendadas desde o século 16 e hoje figuram em sítios como os museus Uffizi, em Florença, e o Louvre, em Paris; no jardim de Versalhes e na ilha de Rodes, para citar alguns.

O Torso Belvedere é um fragmento de nu masculino que impressiona pela robustez. A figura representava Ajax – ou Héracles. Ou Hércules, Polifemo ou Marsias, ninguém sabe ao certo – sentado sobre um couro de animal ponderando sobre seu suicídio (ok, essa é apenas uma de tantas teorias).

A posição das pernas e os grandes traços musculosos foram grandes inspirações para – adivinha – Michelangelo, que deles se utilizou para montar boa parte das figuras do teto da Capela Sistina, incluindo São Bartolomeu, Jesus e os ignudi que emolduram as cenas principais. Pigalle, representante do Rococó francês, cita o torso em seu Mercurio.

Finalmente chegamos ao Apollo Belvedere, ou o Apollo Arqueiro. Com seus traços doces, contrapposto sutil e postura heroica, esse rapaz foi considerado a epítome da beleza ideal segundo os neoclacissistas. É interessante notar as diferenças entre ele e os dois outros exemplos acima citados.

Apollo faz parte da escultura antiga clássica: mais sóbria, estática e “magra”, enquanto os outros dois são esculturas helenísticas, algo como um barroco antigo, que valoriza o movimento e a instensidade dramática dos seus temas.

Desde a sua redescoberta, no final do século 15, foram muitos os que se inspiraram no Apollo: Albrecht Dürer o usou como modelo para seu Adão, Antonio Canova fez de seu Perseu e de seu Napoleão como Marte homenagens diretas à pose do arqueiro, e até a NASA prestou seu tributo, incluindo a estátua na insígnia da missão lunar Apollo 17.