Baú: Kenneth Clark

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O que é civilização? Não sei. Por enquanto, não consigo defini-la em termos abstratos. Mas acho que, vendo-a, posso reconhecê-la, e olho para ela neste momento. Ruskin disse: “As grandes nações escrevam sua autobiografia em três livros: o de seus feitos, o de suas palavras e o de sua arte. Para entender um é preciso ler os outros; contudo, o mais autêntico é o terceiro”. Acho que ele tem razão! Escritores e políticos podem expressar vários sentimentos nobres, mas estes não passam do que podemos chamar de declarações de intenções. Se eu tivesse que escolher o que expressa melhor a verdade da sociedade, se o discurso de um Ministro da Habitação ou as construções reais da época, diria que são as construções.

Isso não significa que a história da civilização seja a história da arte. Longe disso. As sociedades primitivas também podem produzir grandes obras de arte; de fato, a grande limitação da sociedade primitiva confere à sua arte ornamental uma concentração e uma vitalidade peculiares. Lá pelo século IX, podia-se ver, olhando o Sena, a proa de uma embarcação viking subindo o rio. Hoje, no Museu Britânico, ninguém lhe pode negar o vigor de uma obra de arte, mas deve ter sido bem menos atraente para a mãe de família que tentava acomodar os filhos em sua cabana; aliás, deve ter sido tão ameaçadora para a sua civilização quanto o periscópio de um submarino atômico.

Kenneth Clark (Civilização, ed. Martins Fontes, 1995).

Sorriso arcaico

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O Sorriso Arcaico é uma expressão facial encontrada principalmente em esculturas do período arcaico da Grécia Antiga, entre 650 e 480 a.C. Não há consenso sobre o motivo pelo qual os artistas da época esculpiam os rostos assim, mas alguns conceitos estão bem estabelecidos.

O período arcaico se desenvolveu após o colapso das civilizações micênicas e a “era das trevas” que a sucedeu. Foi um período de renascimento das artes, no qual os gregos tiveram que “reaprender” a representar o corpo humano. Por isso, a escultura arcaica se caracteriza por uma grande rigidez em sua forma.

Sua influência mais perceptível vem da arte egípcia e de seu estilo monumental. No Egito Antigo, as representações artísticas eram restritas às divindades. O sujeito – um faraó ou um deus antropozoomórfico – deveria demonstrar sua transcendentalidade; e sua expressão facial e corporal, um retrato de sua eternidade.

A mesma expressão de ausência e eternidade já podia ser vista no Egito Antigo, como mostra esse busto de Nefertiti.

Esse era provavelmente o papel do sorriso arcaico: conferir um aspecto não natural à obra; indicar que aquilo à mostra não era humano, e sim sobrenatural. É como acontece na iconografia bizantina: não há uma representação fiel do mundo material, mas sim um símbolo de uma perfeição celestial que não pode ser alcançada na Terra. Além disso, esse sorriso contido reflete um estado de bem-estar e felicidade plena.

De fato, nenhuma das figuras apresentadas neste texto parece ter a menor das preocupações. Inclusive, uma das teorias de historiadores da arte é de que essa expressão simboliza a felicidade por meio da ignorância, já que as estátuas realmente têm um ar um tanto avoado.

Outra teoria defende que a escolha dessa boca levemente curvada, com lábios apertados, seria simplesmente uma questão técnica: era difícil talhar detalhes nas cabeças tipicamente arcaicas, em formato de bloco.

Nem guerreiros feridos escapavam do sorriso clássico, como mostra essa figura do Templo de Aphaia.

Contemporâneos aos gregos arcaicos e vizinhos dos romanos, os etruscos também usavam o mesmo recurso, como podemos visualizar no sensacional Apulu de Veii, de 500 a.C. Independentemente de sua razão de ser, o sorriso arcaico permanece como um ótimo recurso para identificar a origem temporal e espacial das esculturas que o ostentam.

Comparando com obras também gregas, mas de outras épocas, ficam claras as discrepâncias: distingue-se da escultura grega Clássica e de seus semblantes mais sérios e serenos, e ainda mais da expressividade intensa da escultura da época Helenística.