Gutemberg Medeiros: Boris Schnaiderman, jornalista

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Algumas editoras lembram o centenário da Revolução Russa com lançamentos de obras literárias e de cunho histórico. Mas há outro centenário a lembrar em relação à cultura russa no Brasil, o de nascimento de Boris Schnaiderman, em 17 de maio de 1917. Nascido em Úman, mas criado na cidade portuária de Odessa, dedicou 74 anos à tradução e divulgação da literatura e cultura russas no Brasil.

A lista de autores que Boris trouxe até nós é extensa. Como Isaac Bábel, Aleksander Blok, Ivan Bunin, Fiódor Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Máximo Górki, Daniil Kharms, Vladimir Maiakóvski, Ossip Mandelstam, Iuri Oliecha, Leon Tolstói, Anton Tchékhov, entre tantos outros. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos por este que é uma das mais originais personalidades da cultura brasileira.

O que pouco se fala sobre Boris é a sua trajetória de jornalista cultural. São mais de 300 artigos publicados na imprensa desde 1956. Ele inicia no antigo suplemento literário de O Estado de São Paulo editado por Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido. Foi-lhe oferecido espaço intitulado “Letras Russas”, em paralelo à coluna “Letras Germânicas” de seu amigo e um dos principais críticos de teatro, o berlinense Anatol Rosenfeld.

Formou gerações de leitores, não exclusivamente sobre literatura russa. O seu ensaísmo chega ao tom de diálogo dos mais abertos. Por vezes, vislumbra aspectos da sua memória, desde que relevantes para o fluxo de entendimento. Ele lembra que logo depois que assumiu a coluna no Estadão, fez confidência a Décio. Sentia-se muito mal como comunista em colaborar em um dos principais jornais da direita. O editor sorriu e pediu para olhar para a redação. Assim como em toda a grande imprensa, a maioria dos jornalistas era de esquerda. Logo, tinham de sobreviver de uma forma ou de outra naquele ofício e buscar espaços para veicular algo na contracorrente do jornal.

Em termos de jornalismo cultural, Boris é um exemplo dos mais bem acabados da transição que ocorreu desde os anos de 1950. Como historiografou Russel Jacoby, professor da Universidade da Califórnia, em Os últimos intelectuais (Edusp, 1990), o intelectual que pensava questões emergentes da sociedade na crítica literária ou ensaio sociológico falava ao público o mais amplo possível a partir do jornal diário. Gradativamente, esse segmento migrou para as universidades e fala para determinado leitor iniciado em sua área de pesquisa.

Ele fez a transição para a universidade, ao fundar o Curso de Russo, na USP, em 1960, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da atividade de tradutor no Brasil. Manteve a qualidade de colaborar com jornais e revistas, mesmo com periodicidade variável, mantendo um texto dos mais inclusivos para todo o perfil de leitor, bastasse ser interessado em literatura e cultura russas. Este não foi o primeiro curso do gênero do país de terceiro grau, mas foi o único que sobreviveu à ditadura civil-militar instaurada em 1964. Sob o comando de Boris e com o apoio de colegas e alunos – entre eles Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes – manteve essa trincheira livre de pensamento e prática cotidianas.

Para o leitor ter noção da rica produção jornalística de Boris, há duas coletâneas de textos. A primeira, em catálogo pela Editora Perspectiva intitulada Projeções Rússia/Brasil/Itália (1978), traz textos publicados em jornais e revistas das décadas de 1960 e 1970. Um dos destaques é a revelação de que o poeta Alexander Púchkin foi tradutor para o russo de uma lira do árcade Tomás Antonio Gonzaga a partir de uma edição francesa.

Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (1983, esgotado) é um todo coeso de textos jornalísticos publicados, entre outros, no “Caderno de Sábado”, suplemento semanal de cultura do extinto Jornal da Tarde (do mesmo grupo do Estadão). Livro pioneiro onde se descortina o gradativo descobrimento do pensador russo Mikhail Bakhtin – hoje presente em pesquisas muito além dos campos da linguística e literatura –, cujo introdutor no Brasil foi o próprio Boris. Mais uma vez, em cada texto ele introduz o leitor não especializado ao universo de reflexões de Bakhtin, revelando a sua riqueza e pertinência.

Na construção de uma memória coletiva, igualmente função do bom jornalismo, uma das obras em que Boris melhor soube abordar importantes passagens de sua vida está em seu volume de ensaios Tradução: ato desmedido (Perspectiva, 2011), onde narra como se deu o envolvimento com a língua russa em situações diferentes ao de tradutor. Como todos, nem sempre tem dimensão exata do que viveu. Isso se torna evidente quando narra os meses em que foi “secretário” do correspondente da Agência Telegráfica da URSS (Tass), Iúri Kalúguin, entre 1945 e 1947.

Ao ler a descrição, como jornalista, não pude concordar que Boris fosse apenas secretário e fui eliminar essa dúvida. Ele manteve a versão reiteradamente. Então, pedi para descrever seu cotidiano. Boris chegava à casa do russo e lia jornais, revistas e escolhia as notícias que poderiam interessar aos leitores da Tass. Feita essa triagem, lia em russo o que estava em português para Kalúguin. O jornalista escrevia a matéria e Boris revisava os dados. Eventualmente, o “secretário” somava ao texto aspectos que estivessem em pressuposição ao leitor brasileiro, mas não ao russo. Após a definição de quais sugestões de Boris seriam aceitas, providenciava-se o texto final ainda com uma última leitura deste. Expliquei a Boris que ele exerceu funções específicas de um jornalista: pré-pauta, pauta, redação, pré-edição e edição. Ele me olhou espantado e reconheceu o seu engano.

Boris partiu no ano passado, aos 99 anos. Mas o seu acervo está aí e pode gerar várias coletâneas de seus textos jornalísticos, a exemplo do que ocorre há anos com a produção de Anatol Rosenfeld. Enquanto isso, as suas traduções estão em catálogo pela Editora 34, que há pouco relançou O processo do tenente Ieláguin de Ivan Bunin e promete relançar a prosa Inveja, de Iuri Oliesha, uma das principais da literatura russa e publicada originalmente em 1927.

Ben-Hur Demeneck: Arte do efêmero

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O ombudsman recorre ao método de Bertolt Brecht para derrubar a “quarta parede” deste jornal literário diante do público. Para facilitar a demolição dos discursos, o representante dos leitores traz consigo um machado típico dos ancestrais vikings desse cargo escandinavo.

Convidados a se manifestar, os editores saem da sua condição de personagens para explicar como criam seu jogo de cena. MÉTODO: encadeamento de falas do núcleo editorial, obtidas a partir de um questionário comum e de entrevistas exclusivas. ELENCO: Daniel Zanella (DZ): o editor-chefe; Ricardo Pozzo (RP): o editor; Marceli Mengarda (MM): a diagramadora; e Mateus Ribeirete (MR): o revisor do jornal e editor da newsletter Enclave.

 

  1. Jogral autoral 

Primeira cena: o elenco olha para a plateia e responde ao subtexto: quais foram os autores que lhes tiraram a paz diante da literatura? Preparação dos atores: sessão de grito primal. Sequência das falas (que podem ser intercaladas): MR: Jorge Luis Borges, Douglas Adams, Valencio Xavier; DZ: Rubem Braga, Júlio Verne, Paulo César Pinheiro; MM: José Saramago, Fiódor Dostoievski; RP: Raduan Nassar, George Orwell; MM e RP, em uníssono: Guimaraes Rosa.

 

  1. O menestrel 

“Não gosto do ideal de jornalismo cultural como haute culture, seriedade de fraque, literatura de doutorzinho. Não deve existir um totem que não mereça ser derrubado. Ninguém e ‘inzoável’, nada e sagrado – principalmente nos mesmos (…) O que jamais faremos: usar dinheiro público” (DZ). 

“[Nossa] transparência de método e de finanças veio a partir da constatação de que muita gente do meio cultural vive a se lamentar de condições subumanas, mas não abre suas contas. Gosto de saber do tamanho do fracasso dos outros também. Não são poucos os casos de reclamões culturais de vida mansa” (DZ).

 

  1. Teatro épico

“A postura amadora e desapegada do RelevO nos favorece a não ter rabo preso, e isso atrai um público fiel. Somos uma várzea organizada, e essa leveza agrada – principalmente no meio literário, cujo senso de humor é inferior ao de uma endoscopia” (MR).

“Volta e meia entro em crise com esse chamado mundo literário, levado por alguns fatos como o de perceber que a literatura não tem importância alguma no correr cotidiano do mundo – a não ser para os que foram ou serão seduzidos por ela” (RP).

“A coisa menos ‘desperdiciosa’ da minha vida, até agora, foi a literatura e o que ela me trouxe. Concordo muito com o Leminski, quando ele diz que a poesia e um inutensílio. Acho que a literatura, no geral, é isso aí – um inutensílio” (MM).

“O escritor e um ser carente e o fracasso e sua moeda. O que fazemos, nos, do circuito cultural, e perfumar o fracasso. Isso deve incomodar aqueles de vida mais matemática, por assim dizer” (DZ).

 

  1. Fábula líquida 

“O mundo atual é cada vez mais superficial. E não se deve culpar as pessoas por isso, [pois] o sistema biológico não foi feito para essa avalanche de informações e imagens a qual estamos sendo submetidos – o que pode levar as pessoas a terem comportamentos contraditórios ao seu discurso” (RP).

“É legal o quanto recebemos de retorno dos leitores, mesmo (e talvez principalmente) o negativo. E bom saber que alguém se importa [com o nosso trabalho], a ponto de entrar em contato (…). Porém, sinto que o diálogo entre a newsletter e o jornal poderia ser melhor aproveitado” (MR).

“O que interessa para o RelevO e veicular trabalhos bons e relevantes [esteticamente] (…). Até me surpreendi de não ter tido mais feedback horrorizado de capas alegadamente chocantes. A exemplo da edição de dezembro de 2015, que não ficou nem no ISSUU de tanta imagem de vagina [estampada] na capa (…). No fundo, acho que temos pouco a perder. Então, dá para arriscar mesmo” (MM).

 

  1. Papel do jornal

“Ainda acredito no impresso como um organizador do cotidiano. Em meio a uma enxurrada de informações, excitações, vaidades e desejos por atenção, o impresso pode ser este espaço de concentração, de comunicação mais dirigida, de diálogo” (DZ).

“E preciso encorajar e incentivar mais mulheres a escrever (de preferência, sem dizer que são loucas), porque a diferença quantitativa e clara e, talvez, deva-se ao fato de que as mulheres nunca tenham tido muito espaço para isso” (MM).

“[Você acredita que o impresso continuará por muito tempo um eixo, um centralizador da movimentação cultural nesse mundo em que há tanta dispersão virtual?] Sim. Principalmente quando O EDITOR RESOLVER A MERDA DO ISSN! CARALHO, ZANELLA.” (MR).

 

  1. Olhando nos olhos 

O narrador expõe as respostas do núcleo editorial diante de um questionário feito sobre transparência. O recurso havia sido proposto, em 2007, pela Universidade de Maryland através de seu International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA).

Cabe aos leitores se posicionar diante do autorretrato pintado pelos editores, que relacionaram de forma unanime o RelevO a três dos cinco procedimentos identificados a “Accountability”: (a) Correção de erros: existe disposição para reconhecer e retificar os erros cometidos; (b) Politica editorial: os leitores conseguem reconhecer quais são os valores que orientam o trabalho dos editores; e (c) Interatividade: os leitores têm canais para expressar seus comentários e críticas.

O quarto tópico – transparência publicitária – recebeu a maior parte dos votos (“o jornal expõe eventuais conflitos de interesses”), enquanto que a questão relativa a propriedade ficou próxima da marcação zero entre os editores (“os leitores sabem quem são os ‘donos’ do jornal”). Nesse momento, o apresentador discursa a plateia sobre a materialidade do mundo: segundo o estudo de Maryland (“Openness & Accountability”), apenas 11 dos 25 canais globais pesquisados publicavam ou transmitiam correções de matérias de maneira clara, e somente sete mantinham ombudsman. Uma realidade cruel e anunciada: “quando o assunto e transparência, até a BBC pode tomar umas aulinhas com o RelevO brasileiro”.

 

  1. Desfecho

Literatura, transparência e humor. Em sua última colaboração como ombudsman, o narrador afirma que é com essas três palavras que resume o jornal RelevO. Para ser mais claro, ele disserta: (a) literatura como cultura – antes mesmo de ser pensada como arte; (b) transparência como a exposição das escolhas editoriais em estética e “gestão”; e (c) humor – ora autoderrisório, ora ferramenta de liberdade de expressão.

O locutor convida ao palco seu substituto, o jornalista Silvio Demétrio. Elogia o “formalismo psicodélico e esquizoanalítico” de Demétrio e lhe entrega em mãos o machado viking dos ancestrais ombudsman. Embora tal cargo e objeto não estejam relacionados na Escandinávia, rendem uma metáfora para quem precisa invocar o poder dos leitores antes de partir ao meio as couraças da imprensa. O novo personagem recebe o amuleto e logo o tropicaliza, ao metralhar um discurso sobre Xangô na obra de Jorge Mautner. Cai o pano.

Carla Dias: Espalhando palavras e poesia

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em uma época permeada por urgências, atenção faz significativa diferença. As redes sociais são vedetes dessas urgências. Tudo é rápido e contínuo para abastecer o espectador, desculpem-me, o internauta com todas as informações possíveis. Dá trabalho desviar das informações que não fazem mais do que nos levar a gastar tempo. Mas quem não gosta de preguiçar o pensamento, vez ou outra?

Recebemos uma mensagem de um leitor justamente sobre a falta de presença nas redes sociais. Porém, é preciso compreender que alimentar as redes sociais, a fim de atender à voracidade contemporânea, é trabalho que exige tempo que muitos de nós preferimos dedicar à criação, seja do poema, do conto, da crônica, da ilustração.

Veja bem, eu acho bem coerente o posicionamento do leitor; é a realidade que vivemos. Porém, acredito que o RelevO é, primeiramente, um jornal literário, mensal, que você pode adquirir impresso ao se tornar assinante ou se tiver a sorte de frequentar um dos pontos de distribuição gratuita, além da opção da leitura online. Além do mais, foi lançada a newsletter semanal Enclave, que tenho certeza, deixará o leitor mais feliz com a presença do periódico nas redes sociais.

Sendo assim, se você é apreciador do produto, não se intimide: assuma seu apreço, assine a versão impressa, compartilhe o jornal e a newsletter nas redes sociais. Colabore para que mais pessoas tenham acesso a esse trabalho que é feito com o maior prazer pela equipe do jornal. Ajude-nos a fazer como o leitor que nos escreveu sugeriu: espalhe-o.

A edição de abril chegou com as ótimas ilustrações de Anderson Resende, criaturas que se embrenham pelas palavras alheias e pontuaram com questionamento o olhar do leitor. Adorei a capa.

Gosto muito de Daniel Mazza. “Os ossos” apenas endossa esse minha benquerença. Para mim, o autor reduz a todos aos ossos, aos quais creditamos o final de quem somos, mas mostrando que são eles que carregam nossa história. É antropológico e emocional: “A eloquência dos ossos, silenciosa/ Traz muito mais verdades do que provérbios/E salmos. Sábia é a voz dos ossos mudos”.

Após ler o texto “Her e As Ficções Homogêneas – ensaio em narrativa capitalista, gênero e cinema”, de Rubens Akira Kuana, tive de repensar não somente a minha impressão sobre o filme, mas aspectos da minha própria existência. Coerente, Kuana aborda a distância que alimentamos de nós mesmos a troco do que nem sempre sabemos nos será útil.

Em “Menos, por favor”, Marianna Moraes Faria cita muitas formas de sermos preconceituosos ao fazermos de conta que não: “Olha só esse cara, a mulher dele tem quase a idade da minha tia, parecem mãe e filho. Olha lá, que merda, vão casar. Ele só quer o dinheiro dela, lógico”. Trata-se da lógica dos intolerantes, que também se apresenta no “Agora que sou escritor”, de Mateus Ribeirete: “Quanto às dedicatórias, dos contos dos outros 15 participantes, escrevi “não li”. Sobre o conto de um Mateus Senna, escrevi “não li e não gostei”.

No trecho publicado do livro “Poesia Brasileira Contemporânea – Crítica e Política”, Renato Rezende aborda a crítica de poesia brasileira, baseando-se também em questões voltadas à resistência da linguagem, que saiu da clareza da sua definição para navegar em outras formas de arte, como a canção. A poesia na música. “É preciso, portanto, enfrentar a escuridão e as contradições do nosso tempo, identificar outras chaves de leitura e novas brechas e bordas para pensar a nossa poesia.”

Obviamente, esse passeio não incita o fim da poesia, mas pede por mais atenção. São para poucos os escassos espaços dedicados a tal linguagem, e quase sempre relegados aos poetas que movimentam o mercado. Aliás, é esse mercado que carece de ser ampliado; a poesia pode até não ter lugar definido no atual cenário literário, mas definitivamente continua a dar origem a grandes poetas e a gerar significativas e inspiradoras obras.

Prosa e poesia primorosas – e capazes de atiçar questionamento – estavam estampadas nas páginas do RelevO de abril. Foram tantas de uma e de outra que me encantaram, que tive trabalho para selecionar algumas para falar a respeito. Eu gosto de ter trabalho.

Porém, devo confessar que a presença marcante da poesia – ainda que lembrada na prosa –, pela qual tenho profundo apreço, e que me acompanha desde o primeiro questionamento, fez a edição passada entrar para o hall das mais queridas. Ouso dizer, meu caro Renato Rezende, que, talvez, não sejamos nós – leitores, escritores e críticos – os responsáveis por definir onde cabe a poesia. Ela mesma se apodera dos espaços. Sendo assim, investigá-la pode ser tão interessante quanto consumi-la, a alma entregue a esse compromisso.

Não poderia deixar de mencionar a parceria entre o blog Obscenidade Digital e o RelevO, divulgada na edição passada e estreando nesta, com texto de Gabriel Protski. A cada edição, um texto da equipe do coletivo curitibano. Que essa parceria nos renda ótimas leituras.

Osny Tavares: Literatura grátis aqui!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


No primeiro texto enviado ao RelevO, quando da estreia do espaço de ombudsman, comentei longamente sobre a necessidade de os artistas incorporarem a altivez do palco e se abrirem à provocação. Quando falo em artistas incluo os literários, também conhecidos como escritores. Estava então em meio a um longo ensaio pessoal, que relacionava a arte e a tecnologia com a experiência deste jornal, e usei um pequeno trauma de infância para ilustrar o que imagino ser um ponto de ruptura no fazer artístico. Era uma pequena analogia, claro, porque este processo ainda não se resolveu em mim. Ainda assim a ilustração parece ter cumprido o objetivo, pois nas semanas seguintes conversei com alguns leitores-escritores, do RelevO e similares, que demonstraram passar pela mesma – e necessária – aflição. Quero agora voltar ao assunto.

Em meu ainda curto e largamente incompleto desenvolvimento artístico-intelectual, tive a sorte e o prazer de ser influenciado por algumas pessoas-chave. Ironicamente, quem mais me desenvolveu literariamente foi um artista sem ligação direta com esta forma de arte. Músico ligado ao samba e aos movimentos culturais populares, ensinou-me pelo exemplo algo muito verdadeiro sobre o ímpeto da criação: fazer arte é se vestir de baiana e rodar no meio do Largo da Ordem, algo que ele fez de forma literal.

Comparando a música à literatura, há aqui uma diferença e uma aproximação. Por se tratar de uma arte performática, a música exige do artista o esforço em criar uma fruição “quente”, no qual o ato da criação ou execução de uma obra é parte incondicional dela. Diferente da literatura, produzida em oficina, clandestinamente, até que surja um produto final sedimentado pela impressão e que será usufruído pelo leitor em outro momento, de forma distante e independente do artista. Um ofício predominantemente solitário, tedioso até.

É um processo que deixa marcas evidentes na personalidade dos autores, que não raro desenvolvem uma tendência à introspecção e à timidez, quase sequelas da interação fria da linguagem escrita. Em períodos anteriores da história cultural, a poesia sempre serviu como contraponto, com declamações, concursos e apresentações públicas que aproximavam a literatura do teatro. Um ato que acabou se reduzindo à medida que a própria poesia perdia interesse entre o leitorado. Se este renovado interesse pelos versos, principalmente entre os jovens, não for apenas mais um balão de ensaio, seria interessante e importante que esse tipo de evento voltasse a ocorrer com frequência.

Porém, produção e divulgação não se guiam pelas mesmas balizas, e aqui a porca estica o rabo, pois, ao contrário do dito popular, já o mantém naturalmente torcido. Num campo marcado pelo excesso de produtos, propostas, autores e aspirantes, conseguir um espaço de relativo destaque requer certo jogo de ombros, que implica não somente insistência, mas, sobretudo, uma boa dose de abnegação e contemporização. Traduzindo para o português corrente: cara-de-pau. Largos e arranhados são os ombros do escritor. O gaúcho Fabrício Carpinejar pode ser um exemplo positivo. Mais ouvido que lido, é um cara que soube usar a chamada “cauda longa” a seu favor. Tirando um ou outro excesso, há o que se aprender com ele.

Com a planificação do acesso aos meios de comunicação, o autor se transformou em um promotor de si mesmo. Isso é ainda mais evidente entre iniciantes, que precisam chamar a atenção para si e sua proposta artística. Mas as características de personalidade que elenquei acima parecem criar uma cultura de passividade, em que o autor apenas se arrisca a colocar a cauda para fora d’água e espera ser pescado. É um comportamento ainda mais arraigado em Curitiba, onde escritores faziam edições artesanais e distribuíam entre os amigos. Pode ser válido dentro de uma proposta limitante, e num tempo anterior ao nosso. Mas jamais se consolidar com tradição.

Um editor, diante de um site ou jornal de literatura, deve se sentir como o Cristiano Ronaldo diante do Tinder. Tudo deve ter mais ou menos a mesma cara – a maioria aprazível; a extrema minoria, apaixonante. O RelevO é um periódico que se destaca por não ser escravo do próprio projeto editorial e gráfico. Ainda assim, seus colaboradores eventuais pouco oferecem de inovação estética. O pessoal do design é o melhor que a ausência de dinheiro pode comprar, capitaneado pela eficiente Iara Amaral. E não digo isso apenas por saber que ela nutre uma recíproca admiração por mim, mas porque há aqui um zelo pela elegância e legibilidade não muito comum em similares. Tenho certeza que esse pessoal adoraria afinar o contato com os autores e pensar um produto conjunto entre texto e imagem, estreitando o diálogo entre os dois discursos.

Também há recalibragem possível para o texto. Desenvolver minha opinião sobre isso vai requerer uma nova coluna, provavelmente a próxima. Se não tomar cuidado, posso estar estimulando o mesmo modernismo fora-de-época quase dadá, meio afetado, meio jeca, que ronda nossa gleba.