Menos colarinho, mais Marlon Brando

Extraído da edição 53 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Da esquerda para a direita, Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper

Você provavelmente está usando uma camiseta agora, principalmente se estiver em casa. Eu estou. Mas se prestarmos atenção às representações visuais de um passado não muito distante – desde o início do século 20 –, observaremos essa peça em contextos diferentes do atual. Em Mad Men, Peaky Blinders e virtualmente qualquer filme de guerra ou western, a camiseta costuma ser encontrada sob a camisa de botões do personagem masculino.

Ora com henley, ora com ceroula, ora com union suit, fato é que o dorso esteve coberto de maneiras diversas, intermediando a relação da pele com a camisa. Em determinado momento, porém, a camiseta – esta tão popular hoje – deixou de ser algo que usa se por baixo para se tornar algo que se usa. Quando, exatamente?

Claro, transformações culturais não ocorrem do dia para a noite – seria irresponsável atribuir tal mudança a um só evento. Por outro lado, isso é exatamente o que faremos, visto que carecemos de compromisso com a verdade, confundimos correlação com causalidade e porque, afinal, acabamos de alertar para nossa licença poética (“qualquer coisa, chama de literatura”, aconselhou um amigo historiador, sóbrio há quase dez dias).

Uma contextualização responsável já foi feita no Gizmodo, cuja leitura recomendamos. Dela extrairemos algumas informações antes de seguir adiante:

“Pouco após o fim da guerra, o autor F. Scott Fitzgerald se tornou a primeira pessoa conhecida a usar a palavra ‘camiseta’ (ou t-shirt, em inglês), em seu romance Este Lado do Paraíso, como um dos itens que o personagem principal leva para a universidade. (…) Quando a Segunda Guerra Mundial começou, a camiseta ‘moderna’ já era comum em escolas e universidades pelos EUA, mas não era onipresente e ainda era usada por adultos, por exemplo, como uma camisa interior. (…) O que fez com que elas se tornassem populares entre todos foi o fim da guerra, quando os soldados voltaram para casa e começaram a incorporar a vestimenta ao guarda-roupa tradicional, da mesma forma como faziam durante a guerra.”

Pois bem. Lembremos o arquétipo do galã na Era de Ouro de Hollywood, desde antes até depois da Segunda Guerra (1939-1945): Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e Gary Cooper, como na imagem de abertura deste texto. Há um padrão claro ali, isto é, de vestimenta – sequer abordaremos fatores raciais, ainda mais evidentes.

Estes senhores, enfim, estão devidamente engomados para nossos padrões atuais. A estrela hollywoodiana, dentro ou fora das telas, era um homem de terno de flanela cinza até os anos 1950, e terno, colete, Brylcreem e chapéu.

Em 1951, o filme Uma Rua Chamada Pecado foi lançado, adaptando a peça homônima de Tennessee Williams (A Streetcar Named Desire, 1947, também traduzida como Um Bonde Chamado Desejo – que, por sinal, hoje seria um ótimo título de funk carioca). E um jovem Marlon Brando, então com 26 anos, apareceu da seguinte forma.

Mais sedutor do que nunca, Brando foi Stanley Kowalski, papel que já vinha interpretando na peça durante temporada da Broadway. Este personagem havia retornado da Segunda Guerra Mundial, e não por acaso é um grande adepto de uma simples camiseta (suada, gasta e até rasgada). Stanley é bruto, instintivo e carnal, uma contraposição visível ao galã hollywoodiano clássico.

Marlon Brando também representava uma mudança na forma de atuar, empregando um envolvimento total ao personagem. Essa postura – a que estamos acostumados hoje – difere do melodrama mais caricato a que associamos a atuação até meados do século passado. Fato é que Brando – à vontade, ousado, e já falei suado? – tornou-se um ícone visual, independentemente de quão abominável pudesse ser o desfecho de seu personagem. A partir do filme, a camiseta passou a ser muito mais aceita, utilizada e procurada como uma peça autossuficiente, isto é, sem a condição de roupa íntima.

Podemos enxergar este momento como um estopim. A camisa e o terno são cada vez mais associadas a contextos formais, ao passo que a camiseta, leve e prática – de algodão ou poliéster, com ou sem estampa –, foi abraçada pelos mais diversos grupos demográficos. Marlon Brando evidentemente não é a causa de adesão generalizada desta peça no planeta, mas um empurrão – e um ponto de referência. Aquele alinhamento do zeitgeist que, se não ocorresse por meio dele, talvez ocorreria da mesma forma, pois a receita já estava no forno. (Não somos tão descompromissados com a verdade!)

Brando!

Extraído da edição 14 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando Al Pacino recusou o papel de protagonista em Apocalypse Now (1979), sua justificativa para o diretor Francis Ford Coppola foi bastante simples: “já sei como vai ser. Você vai subir em um helicóptero e me falar o que fazer, enquanto eu estarei lá embaixo, num pântano, por cinco meses”.

Mal sabia ele, muito menos Coppola, que as gravações durariam dezesseis meses. Esse é apenas um dos famosos problemas que perseguiram a criação da película, cujas infinitas tretas são devidamente relatadas no documentário Hearts of Darkness 1991 — o filme, pois, adaptou o romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, ao contexto da Guerra no Vietnã).

Visto que sequer teríamos tempo para relatar muitos perrengues – que vão de incêndio a ataque cardíaco –, destaquemos Marlon Brando, sobre quem já escrevemos na Enclave #6 (especialmente diagramada aqui, p. 14). Brando, afinal, não participou dos 16 meses de filmagem de Apocalypse Now. Para o astro, foram reservadas apenas seis semanas no set construído nas Filipinas, de 2 de setembro a a 11 de outubro de 1976.

Se sua obrigação era chegar em forma, com a leitura de Coração das Trevas realizada e suas falas na ponta da língua, o Corleone sênior encontrou Coppola já surpreendentemente gordo, sem ter lido o romance de Conrad e tampouco o roteiro — isso segundo o diretor.

No papel do Coronel Kurtz, enigmático personagem que o protagonista tanto persegue, Marlon Brando dá as caras em apenas 15 dos 153 minutos de filme. O que não evitou problemas. Ah, não mesmo. Ele, que havia recebido um milhão de dólares antecipadamente, negou-se a seguir o roteiro, ameaçou deixar a produção e ficar com o dinheiro.

No fim das contas, improvisou boa parte de seu diálogo, além de um falatório magistral de dezoito minutos, dois dos quais sobreviveram à versão final. Coppola estava tão farto de lidar com a situação que entregou as cenas do ator a Jerry Ziesmer, assistente de direção. Brando também detestava Dennis Hopper, rejeitando compartilhar o set com o colega em questão.

As “brandices” geraram outras consequências técnicas: para não expor sua forma física distante do que se imaginaria para Coronel Kurtz, Marlon Brando foi filmado no escuro, escondido entre sombras, raras partes de seu corpo à mostra. Sua recusa ao sobrenome Kurtz – “não soa americano” – fez com que o personagem tivesse o nome alterado.

Essa recusa, porém, foi reconsiderada por ele mesmo após finalmente ler Coração das Trevas. Entretanto, menções ao personagem já haviam sido gravadas por outros atores, o que exigiu redublagem na pós-produção. (Isso pode ser verificado claramente na cena em que Harrison Ford interage com Martin Sheen, ainda no início da película).

No fim das contas, todas as cenas com o ator são inegavelmente marcantes, e se tornam ainda mais curiosas quando sabemos de todos os problemas que as circundam. Mas recentemente, como um Deus ex machina, acrescentamos que Susan Mizruchi, autora de uma biografia sobre Brando, defende como as afirmações de Coppola sobre o descompromisso de Marlon Brando são redondamente falsas.

Segundo ela, as cartas entre diretor e astro deixam claro como Brando não só foi às Filipinas completamente preparado como ajudou no roteiro por pura dedicação à sua arte.