Syd Mead, futurista visual

Extraído da edição 72 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando o ilustrador Syd Mead morreu, em 30 de dezembro do ano passado, a Enclave estava parada. Do contrário, não teríamos deixado passar.

Mead é, direta ou indiretamente, um dos grandes arquitetos do imaginário popular do século passado. Sua influência reverbera interminavelmente, e muito do que vemos na ficção científica – por si só fonte contínua de inspiração para arquitetura, design e moda – partiu desse artista.

Americano, serviu ao exército logo após a Guerra da Coreia. Depois de retornar, graduou-se na Art Center School em Los Angeles (1959), então ingressou na Ford, onde permaneceu por dois anos. Passou as décadas seguintes prestando serviços de ilustração, design e renderização para diversas empresas do mundo inteiro.

Sua consagração no imaginário popular veio com Blade Runner e Tron, ambos lançados em 1982. Tratamos da construção do universo do primeiro na Enclave 58.

Já respeitado como designer industrial, Mead foi chamado pelos respectivos diretores (Ridley Scott e Steven Lisberger) para auxiliar com objetos (incluindo veículos) e cenários das duas narrativas futuristas. Ele já havia trabalhado em Star Trek: The Motion Picture (1979).

Como os filmes foram lançados praticamente ao mesmo tempo – 25 de junho (BR) e 9 de julho (Tron) – não sabemos em qual produção Mead trabalhou primeiro, ou se houve alguma influência direta entre um serviço e outro. Os spinners (carros voadores) de Blade Runner e as motocicletas futuristas de Tron são fruto da imaginação e dos traços do ilustrador.

Mas esses são apenas exemplos pinçados. Basta bater o olho em alguma de suas obras (recomendamos este link) para compreender a grande beleza de seus cenários, sempre envolventes em cores e detalhes. Em uma tela nítida, identificamos todo um universo vivo – e quem se inspirou nele.

Mead ainda trabalharia em diversos títulos, como Aliens, Strange Days, 2010, Elysium e Blade Runner 2049. Sua ligação com o cinema foi compilada no belíssimo livro The movie art of Syd Mead (2017), com prefácio de Denis Villeneuve.

O artista morreu aos 86 anos, em razão de um linfoma. Ele deixou um marido, Roger Servick, com quem havia se casado em 2016. Guardamos seu legado com muito carinho.

Vivendo a cidade: a construção do universo de Blade Runner

Extraído da edição 58 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Douglas Trumbull, diretor de efeitos especiais: o horizonte é uma mesa.

Propaganda da Heineken com Ronaldinho Gaúcho; clipe do cara de ‘Old town road’; clipe de Luan Santana e Alok: não interessa quão variado o contexto, é evidente que os responsáveis pelo audiovisual se inspiraram em Blade Runner (1982), ou nos filhos de Blade Runner, ou nos netos de Blade Runner. As ideias de cyberpunk e ficção científica como um todo foram ressignificadas com o filme, ele mesmo ressignificado com suas diferentes versões ao longo do tempo.

O fato é: se assistimos a qualquer coisa com chuva e néon, com certeza os indivíduos por trás das câmeras estudaram o universo de Blade Runner para replicar algo dele. Mesmo que eles trabalhem em um comercial da Claro com o Tiago Leifert – como podemos constatar aqui entre os 18 e os 24 segundos. Ou em genéricos impactantes como um comercial da Claro.

Há diversas razões para Blade Runner ter sido tão extraordinário. Como esmiuçamos em nosso texto sobre a série Community (2009-2014), omeletes de qualidade exigem ovos de qualidade. Ridley Scott, diretor (e, nesta analogia, ovo), dispunha de ao menos outros três: Syd Mead, Douglas Trumbull e Vangelis, cada qual um pináculo virtuoso por conta própria.

Não trataremos deles – guardando assunto para uma próxima oportunidade –, então vamos nos limitar a uma demonstração da magia do universo visual de Blade Runner, isto é, a Los Angeles de 2019 representada no filme.

A execução, por parte de Scott, com auxílio de Trumbull, do imaginário da narrativa de Philip K. Dick e dos objetos de Mead passa por um fator pouco a pouco revalorizado pelo cinema: a ausência de computação gráfica. O cenário de Blade Runner é real, portanto a cidade a que assistimos foi montada – tanto as ruas como as estruturas grandes, em miniatura (conforme demonstra a imagem de abertura).

O resultado da população daquela Los Angeles nos mostra camadas e camadas de pessoas, cada qual com um capricho em sua identidade. A cena em que o protagonista, Deckard, persegue Zhora, uma replicante (indivíduo criado por bioengenharia), é especialmente emblemática para visualizar essa dimensão. Podemos assistir à sequência neste link.

Nela, vemos figurantes de roupas, etnias, semblantes, religiões e culturas diferentes – com ritmos, direções e atividades diferentes. Pinçar frames não faz justiça à cena, pois retira dela o movimento e o dinamismo da composição entre esses elementos tão breves – mas aqui está um exemplo.

Não há música, apenas os ruídos caóticos da cidade: passos, veículos, diálogos, cantoria, semáforo sonoro. A quantidade de detalhes é embasbacante; a variedade de roupas, extrema. Em poucos minutos, enxergamos, portanto entendemos em que consiste aquele universo. Chuva e néon são elementos da composição, não muletas visuais.

Por fim, ‘Blade runner blues‘, de Vangelis, emerge no desfecho da sequência para indicar que o resultado da perseguição é um tanto trágico, apesar de o protagonista alcançar seu objetivo. E nós, o público, queremos cada vez mais morar naquele ambiente, mesmo diante de todas as informações explícitas e implícitas de seus problemas. É a magia da catarse.

É claro que isso não exige apenas imaginação e boa vontade. Executar tamanha escala de perfeccionismo demanda não só trabalho como orçamento – ninguém classificaria tarefa similar como tranquila, ou mesmo exequível.

Mas é exatamente por isso que, quase 40 anos depois, Blade Runner permanece uma referência visual para gênios e genéricos. Para a Heineken; para o cara de ‘Old town road’; para Luan Santana e Alok; para a Claro. Ao contrário dos indivíduos, o sublime não se vai como… ok, como lágrimas na chuva.


  • Inebriado pelo universo de Blade Runner? Aproveite nossa playlist com ambientações (ruídos, músicas, recortes) do filme.
  • O documentário Dangerous Days (2007), de três horas e meia, segue como dádiva absoluta para os fãs.
  • Outra cena é especial para a ambientação: quando Roy Batty e Leon Kowalski se encontram, logo antes de visitar Dr. Chew, o fabricante de olhos. Eles caminham pela direita da tela e somem de nosso campo visual. Ao invés de cortar a sequência, o diretor opta por movimentar a câmera para a esquerda, onde não há mais personagens relevantes ou ação. Vemos somente a cidade a partir do que parece ser um beco, e então um grupo de ciclistas passa. Só depois revemos Batty e Leon, já de outro ângulo, agora atrás dos ciclistas – que ainda trafegam pelo centro da tela. Assim assimilamos a perspectiva do cenário, compreendemos o que compõe a cidade e, mais do que isso, nos deixamos levar pela experiência estética de contemplá-la.