Tudo é sample – principalmente o sample

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Stable Diffusion.

Qual música toca no lobby da sua mente?

Na limitada e esvaziada cabeça deste editor, uma música – entre tantas outras – costuma ser especialmente acionada no estado padrão da cognição. Sem esforço, sem tentativa, sem direcionamento.

Muito provavelmente, fui apresentado a ela por meio do filme Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), de David Lynch1. A quem já assistiu, ela toca naquela cena. A quem não assistiu, sugiro ir diretamente ao filme e ignorar o vídeo abaixo — que sequer é um notável spoiler, mas estraga o encantamento do primeiro contato. (Não ajuda que, neste momento, o filme não esteja disponível em nenhum serviço de streaming.)

De todo modo, a composição a que me refiro é ‘Something wicked this way comes’ (“algo sinistro vem nessa direção”), do inglês Barry Adamson (ouça melhor aqui ou no player mais abaixo). Já no título, trata-se de uma colagem de Macbeth, também usada por Ray Bradbury:

2nd Witch:

By the pricking of my thumbs,

Something wicked this way comes. [Knocking]

Open locks,

Whoever knocks!

[Enter Macbeth]

Macbeth:

How now, you secret, black, and midnight hags!

What is’t you do?

E neste mundo onde tudo é colagem (ou remix2), o “algo perverso” de Adamson é composto primordialmente de samples. Vamos a outra colagem, agora menos shakespeariana (eufemismo para “tiramos do ChatGPT”):

Um sample musical refere-se a um trecho de áudio retirado de uma gravação existente e incorporado em uma nova composição musical. Esses trechos podem ser retirados de qualquer fonte sonora, como músicas, discursos, filmes, sons ambientes e qualquer outra forma de registro de áudio. A prática de utilizar samples é bastante comum na produção musical contemporânea e tem sido uma parte essencial da cultura da música eletrônica, hip-hop, rap e outros gêneros.

A partir da técnica de sample, um trecho tão curto repetido, esticado ou dobrado se soma a outros trechos nada relacionados e, juntos, eles compõem a base de outro terreno. Ou, como resumiu Elvis Costello, “você pega os pedaços quebrados de outra emoção e faz um brinquedo novo”.

O exercício que faremos hoje poderia ser testado com uma infinidade de músicas. Poderia valer verdadeiras teses com discos como Endtroducing (DJ Shadow, 1996), Since I Left You (The Avalanches, 2000) ou Donuts (J Dilla, 2006), se é que essas teses já não existem. Enfim, há exemplos mais expressivos, que não apagam a beleza que dissecaremos aqui3.

Pois bem, sobre ‘Something wicked this way comes’. Há algo de hipnótico nessa joia, o que certamente chamou a atenção meditativa de Lynch a ponto de convencê-lo a inseri-la em seu filme (e de conquistar meu cérebro pouco perspicaz). A composição é direta: logo no primeiro segundo, conhecemos o loop da batida que nos acompanhará ao longo da jornada de quatro minutos e meio.

Segundo o Who Sampled, bíblia para esse tipo de atividade, a música de Barry Adamson contém quatro samples reconhecíveis, na seguinte ordem de aparição (clique nos títulos para ouvir):

A base de ‘Something wicked’ é, claramente, ‘Spooky’, de Gary Walker (um dos Walker Brothers). Basta ouvir ambas para testemunhar – evitaremos a redundância da explicação. Se cultivássemos a ideia ingênua e tola de fidelidade artística, poderíamos ser levados a crer que Barry Adamson copiou (num mau sentido) uma música original alheia. E quem sabe até desmerecêssemos essa reutilização, embora bastante incrementada a seu modo.

Porém, se nos atentarmos a ‘Spooky’, perceberemos (ou descobriremos) que se trata de um cover: a versão original (ou inicial…) pertence ao grupo Classics IV. Então concluiremos, talvez com menos julgamento, que Gary Walker & the Rain também são copiadores!

A brincadeira não se encerra aqui. O vocal onírico de ‘Something wicked’ (tcha-ra-ra-ra…) pertence à francesa Françoise Hardy, em ‘Le temps des souvenirs’, que, quem diria, adaptou a seu modo – afrancesando e enchendo de charme – a música ‘Just call and I’ll be there’, de P. J. Proby (1964). Outra copiadora! Mas só se pode copiar a quem se ama

Por fim, na primeira pausa de ‘Something wicked’ (1min11s), antes de o loop recomeçar, escutamos um trecho de ‘Blue lines’, do Massive Attack (1991). O grupo de Bristol não nos decepcionaria (jamais), uma vez que sua música contém dois samples gritantes: ‘Sneakin’ in the back’, de Tom Scott & The L.A. Express (1974); e a guitarra de ‘Rock Creek Park’, dos Blackbyrds (1975). Pior: se destrincharmos cada uma das músicas citadas, chegaremos em outro enorme jardim de veredas que se bifurcam. ‘Sneakin’ in the back’, por exemplo, já foi sampleada nada menos que 251 vezes – incluindo em ‘Capítulo 4, Versículo 3’, dos Racionais MC’s.

E assim retornamos a ‘Something wicked this way comes’, agora cônscios de sua arquitetura múltipla, hipertextual. Misturando um pouco de Gary Walker, Jack McDuff, Françoise Hardy e Massive Attack, nasce um novo filho – misterioso, inebriante, ativo.

Para criar a trilha sonora do lobby da minha mente, Barry Adamson recortou peças e as juntou a seu gosto. Não fez nada de novo (“Then again, who does?”) e, ao mesmo tempo, tudo que fez foi novo. Não existe criação pura no tecido recursivo da criatividade.

Baú: Vladimir Nabokov

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Confesso que não acredito no tempo. Gosto de dobrar meu tapete mágico depois do uso, de forma a sobrepor uma parte do padrão sobre outra. As visitas que tropecem. E o maior prazer da intemporalidade – numa paisagem escolhida ao acaso – é quando paro entre borboletas raras e as plantas de que se alimentam. Isso é êxtase, e por trás do êxtase há algo mais, que é difícil de explicar. É como um vácuo momentâneo para dentro do qual corre tudo quanto amo. Uma sensação de unicidade com sol e pedra. Um arrepio de gratidão a quem possa interessar – ao gênero contrapontista do destino humano ou aos fantasmas ternos agradando um mortal de sorte.

Vladimir Nabokov. Fala, Memória, 1967 (trad. José Rubens Siqueira; Alfaguara, 2014).