Wilder vs. Chandler

Extraído da edição 68 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Pacto de sangue (Double Indemnity, 1944).

O filme Pacto de sangue (Double Indemnity, 1944), adaptação de uma excelente novela de James M. Cain (1943), marcou o cinema tão logo foi lançado. Ali se consagrava a estética do noir americano, levantando o sarrafo para inúmeros filmes que viriam a copiá-lo.

Pacto de sangue dispunha de uma colaboração estelar por trás das câmeras: ao diretor Billy Wilder, juntou-se ninguém menos que Raymond Chandler como roteirista. E se a qualidade do resultado era indiscutível, a produção contou com um entrave: Wilder e Chandler não poderiam ser mais diferentes um do outro.

Simplificando (talvez demais), a relação entre os dois parece representar o desconforto que emerge quando um extrovertido e um introvertido não se batem.

Wilder, nascido (Samuel) na Áustria-Hungria, era 18 anos mais novo e havia escapado da Segunda Guerra (sua família – de judeus poloneses –, não). Chandler havia lutado na Primeira Guerra e, apesar de nascido nos Estados Unidos, tinha formação (e personalidade tipicamente) inglesa, afinal havia vivido da infância até o início da vida adulta na Inglaterra.

Wilder afirmou que Chandler parecia um contador – e que o escritor carregava a acidez típica dos alcoólatras. O diretor era adepto de um certo antagonismo entre colaboradores. Segundo ele, “se duas pessoas pensam parecido, é como se dois homens puxassem o mesmo lado da corda. Se você vai colaborar, precisa de um oponente para equilibrar as coisas”.

Chandler, novo em Hollywood, detestava Wilder. Já respeitado pelo romance Sono eterno (1939) quando foi contratado pela Paramount, o escritor chegou a se demitir da produção, relatando uma série de reclamações à produtora a respeito do diretor. A mais curiosa certamente se referia ao fato de Billy Wilder usar uma bengala e apontá-la para o roteirista enquanto conversavam.

Em carta de 1950 a seu editor inglês, Jamie Hamilton, Chandler escreveu: “Fui para Hollywood em 1943 para trabalhar com Billy Wilder em Pacto de sangue. Foi uma verdadeira tortura, e provavelmente encurtou a minha vida, mas com essa experiência aprendi, sobre a arte de escrever para o cinema, tudo que eu era capaz de aprender, e que não é grande coisa.”

No romance A irmã mais nova (1949), Chandler claramente se utilizou da experiência para descrever o momento em que seu notável protagonista, Philip Marlowe, interage com um produtor de Hollywood:

Ele caminhou até um vaso alto e cilíndrico no canto da sala. Dali, tirou uma bengala de malaca, entre várias que havia. Começou a ir e voltar pelo tapete, balançando com habilidade a bengala, paralela ao pé direito.

Fiquei sentado, terminei meu cigarro e respirei fundo: ‘Tem coisas que só podem acontecer em Hollywood’, resmunguei.

Ele deu uma elegante meia-volta e me olhou. ‘Perdão?’…

‘Por exemplo: um homem aparentemente dotado de sanidade mental andando para lá e para cá dentro de casa, imitando o andar das pessoas de Piccadilly e segurando uma vara de domar macacos.’

Ele assentiu.

James M. Cain adorou a adaptação de seu romance. Público e crítica também: Pacto de sangue foi indicado em sete categorias do Oscar de 1945 e, muito mais importante que isso, consagrou-se na estética cinematográfica. Naquele mesmo ano, Chandler escreveu o ensaio “Writers in Hollywood“, no qual reclamou de sequer ter sido convidado para uma coletiva de imprensa sobre a produção.

Wilder respondeu “não o convidamos? Como poderíamos? Ele estava bêbado embaixo da mesa do [bar] Lucy’s”. Farrapo humano (The Lost Weekend, 1945), o filme seguinte do diretor, contou com Ray Milland interpretando o protagonista Don Birnam, um escritor alcoólatra.

HMS Dreadnought, chacota a estibordo

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Em 1910, a Marinha Real Britânica virou piada. Isso porque seu maior encouraçado teve a honra de receber o príncipe da Abissínia, o Império Etíope. A bordo do HMS Dreadnought, com toda a pomposidade que lhe era reservada, deleitavam-se quatro membros da realeza, guiados por dois funcionários do Ministério das Relações Exteriores. Nada de errado até então, exceto pelo fato de que a suposta delegação era apenas um grupo de amigos de rosto pintado, barba falsa, proferindo uma língua desprovida de sentido.

“Eu tive a ideia, mas a execução foi trabalho dos seis”, contou posteriormente Horace de Vere Cole, poeta que entraria para a história com suas brincadeiras arriscadas — ele já havia visitado Cambridge como um sultão de Zanzibar. Além de Cole, o grupo contava com Virginia Woolf, o pintor Duncan Grant e outros entes próximos ao famoso Bloomsbury Group.

Um telegrama previamente enviado avisava que os abissínios chegariam acompanhados por um secretário do governo. Apesar das barbas falsas e da pintura facial, o grupo — aceito como uma família real — só correu riscos mesmo quando teve que negar um banquete de luxo, pois parte da maquiagem já se apagava, ou, no caso das barbas, descolava.

Para se comunicar, eles falavam uma língua completamente improvisada, o que também gerou momentos de tensão. Nada que riscasse a credibilidade da delegação de brincalhões: eles passaram o dia no encouraçado e voltaram para casa vitoriosos. O mesmo não pode ser dito da Marinha Real Britânica, que se tornou motivo de chacota.

O grupo havia prometido não contar nada aos jornais, mas Cole, o fanfarrão-mor, contatou o Daily Mirror, enviando inclusive a foto que haviam tirado no Dreadnought. “Quando vi a foto no Mirror, não tive a menor dúvida de que ele havia repassado a história”, relatou Adrian Stephen, irmão de Woolf. Que rolê!

[Publicado originalmente na edição #17, em agosto de 2015]

Baú: Bertrand Russell

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Mas num homem idoso que conheceu as alegrias e mágoas humanas, e que atingiu alguma obra que estivesse propenso a realizar, o medo da morte é algo abjeto e ignóbil. A melhor maneira de superá-lo – ao menos assim me parece ser – é tornar seus interesses gradualmente cada vez mais amplos e mais impessoais, até que pouco a pouco os muros do ego se afastem, e sua vida se torne crescentemente fundida à vida universal.

A existência de um indivíduo deve ser como um rio – pequeno no começo, estreitamente contido em suas margens, e correndo apaixonadamente através de pedregulhos e quedas. Gradualmente o rio se alarga, as margens se afastam, as águas correm mais calmas, e no fim, sem uma quebra visível, as águas misturam-se com o mar; e sem dor perdem sua individualidade. O homem que, na idade avançada, pode ver sua vida dessa forma, não sofrerá com o medo da morte, pois o que é importante para ele continuará.

Bertrand Russell, Como envelhecer (em Retratos da memória e outros ensaios, 1956).