Mère Louise, um cabaré western em Copacabana

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Mère Louise, na esquina à direita, no início do século 20.
Foto: Augusto Malta. Fonte: Rio de Janeiro Aqui.

1907, Rio de Janeiro, Copacabana. Muito perto de onde seria o Forte de Copacabana, que ainda não existia (ele foi inaugurado em 1914), exatamente na esquina das atuais R. Francisco Otaviano e Av. Atlântica. Ali funcionava o Mère Louise, restaurante de frutos do mar administrado pela francesa Louise Chabas.

“Restaurante” é uma simplificação. O Mère Louise era um verdadeiro cabaré parisiense, um café dançante à beira-mar carioca. Lembrando que o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil – e seguia um forte processo de urbanização.

Segundo Ruy Castro, em A Noite do Meu Bem, o estabelecimento funcionava “ao estilo de um saloon do Oeste americano, com varanda, portas em vaivém dando para o salão, piano, balcão, espelho e mesas, tudo em torno de uma cadeira de balanço da qual Madame Louise controlava o movimento. Apesar do ambiente mais propício a vaqueiros, seus clientes eram a nata letrada e boêmia do Rio: políticos, ministros de Estado, diplomatas, artistas e jornalistas, alguns acompanhados de ‘amigas’ ou admiradoras”.

Havia shows, havia comida, havia diplomacia e baixaria. Mas, principalmente, havia serviço – à noite, permanecia sempre aberto – e havia logística – os bondes próximos rodavam até as duas da manhã (podemos ver trilhos na imagem que abre o texto). A seguinte imagem, também do incrível Augusto Malta e também retirada do canal Rio de Janeiro Aqui, mostra o cabaré mais de perto, já num cenário mais urbanizado, com iluminação. Nela, vemos a Av. Atlântica e a praia à direita.

Para as emergências, também havia quartos. “Louise conhecia a todos pelo nome e ia de mesa em mesa, falando com cada um. Tal intimidade tornava natural que, em emergências, ela cedesse – pela escorchante diária de 6 mil-réis – discretos aposentos nos fundos para quem precisasse ‘repousar'”, ainda de acordo com Castro.

Movimentado por figurões, o estabelecimento era visado. As brigas eram comuns; os tiroteios, pouco raros. A atratividade da região também trazia um problema um tanto incontornável: alguns clientes, depois de encher o bucho e a cara, entravam no mar. O resultado é óbvio.

Idosa – mas, principalmente, cansada de confusões e de calotes –, Louise Chabas vendeu o local em 1911. O Mère Louise sobreviveu até o início da década de 1930, quando foi demolido e deu lugar ao Cassino Atlântico. Hoje, ali existe o Shopping Cassino Atlântico. Chabas se aposentou, instalou-se num asilo, desistiu da aposentadoria e administrou outros estabelecimentos. Morreu em 1918, aos 73 anos.

Dezoito menos um

O que este civil garboso faz no meio dos militares da Revolta do Forte de Copacabana, em 1922? Qual é a relação desse evento com o Mère Louise? Pela última vez (hoje!), emprestamos um trecho de Ruy Castro:

Na tarde do dia 5 de julho de 1922, em que dezoito oficiais e soldados rebeldes deixaram o Forte de Copacabana para se bater até a morte contra as forças do governo de Epitácio Pessoa – os “18 do Forte” –, o Mère Louise não tinha por que se meter. Aliás, tudo recomendava a neutralidade. Mas, quando os militares passaram pela sua porta, um de seus clientes, o gaúcho Otavio Corrêa, veio lá de dentro, chegou à calçada e lhes fez um aceno. Estava aderindo à rebelião e queria uma arma. O tenente Newton Prado acedeu e entregou-lhe um fuzil Mauser. Corrêa juntou-se a eles e, na mais famosa foto que se fez da marcha, pode-se vê-lo de terno escuro e chapéu-chile – o único civil da foto –, na primeira fila. Talvez por isso tenha sido um dos primeiros a ser abatido, antes mesmo que chegassem à rua Bolívar. Com isso, o Mère Louise tinha agora um mártir.

Nem sempre o espírito de quem acaba de ser motivado por Cristiano Ronaldo gera resultado.

Baú: Fernando Schüler

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Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder frequentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que [Carlos] Lacerda fez do “golpismo democrático” a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o “lacerdismo”, uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.

Quem sabe o lacerdismo tivesse um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo [Lacerda], alguém com a “trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos”. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido seu personagem: o moralista da República. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, o democrata, o “sonhador do Brasil”; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom-senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.

Fernando Schüler, 2014.