Em defesa de Babilônia

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Batalhão do RelevO descendo para defender Babylon (2022, frame do filme).

Sábado à tarde, sol e… shopping. O cenário do inferno: poucos contextos são tão desprazerosos e te despertam tanto para os males da sociedade quanto um shopping lotado. Tudo é brega, triste e, principalmente, cheio. Até o estacionamento é caro – e árduo. Todos os olhares compõem antíteses de beleza, uma atrás da outra.

Era a única sessão de Babilônia restante em Curitiba, e eu já chegava à sala parcialmente arrependido. Ademais, sabia que permaneceria mais de três horas naquele lugar, portanto o custo de oportunidade era muito alto (deslocamento + estacionamento + ingresso + desgosto + tempo).

Então Babilônia começou – a primeira das duas vezes em que eu me submeteria àqueles mágicos 189 minutos.


É época de Oscar (acho eu, recebendo gotas do tema após este cair com peso na piscina aberta, respingando nos inocentes ao redor), um dos assuntos mais desinteressantes da civilização. Importar-se com o Oscar é por si só uma postura tão entediante que este enclave sequer procurará argumentar sua posição.

Paralelamente, ou por outro lado, ou de forma contraditória, adoramos virar os olhos para a crítica, esse Leviatã imaterial maníaco-depressivo eternamente atrapalhado pela própria miopia. É divertido, embora angustiante, indignar-se com o louvor a algum produto medíocre, questionar ferramentas (os tomates, os bots, o rabo preso) ou defender ferrenhamente uma injustiça, imaginando-se à frente de seu tempo – sem se levar muito a sério, por favor.

Enfim, tentar compreender os mecanismos de raciocínio que elevam ou repudiam uma obra (seja musical, seja audiovisual, seja gastronômica) é um baita exercício de compreensão da cultura, da sociedade e de comportamentos miméticos.

Também já é senso comum estabelecer a fase melancólica de Hollywood – e, vale registrar, não necessariamente do cinema (injusta sinédoque…) –, escrava de franquias mastodônticas, reciclagens extremas, algoritmos famintos e, queiramos ou não, esterilidade de produções tão politicamente corretas (outro subtópico que não temos interesse em desenvolver).

Pois bem, queremos filmes mais originais, autorais, cujos diretores (simbolicamente) nos estapeiem e proclamem “cala a boca, eu sei o que tô fazendo”. Ao menos dizemos isso em voz alta. Para nossa sorte, recebemos um destes com Babilônia (2022), de Damien Chazelle (Whiplash, La La Land, First Man).

Babilônia é uma pedrada épica cujos vários atos retratam a passagem do cinema mudo para o sonoro, partindo de 1926. O filme tem muito de Era uma vez na América (1984); Boogie Nights (1997); Eyes Wide Shut (1999); A Grande Beleza (2013); O Grande Gatsby (2013); Lobo de Wall Street (2013) e Era uma vez em Hollywood (2019) – e talvez por ter um tanto de tudo, sem recortes, tenha chegado a seus 189 minutos.

  • Era uma vez na América: crescimento de um grupo; música-tema em variações; melancolia do tempo e suas mudanças; longa duração.
  • Boogie Nights: por dentro de uma indústria; ascensão e decadência dos envolvidos nessa indústria; produções e vaidade.
  • Eyes Wide Shut: um dos capítulos, especialmente, é 100% De Olhos Bem Fechados.
  • A Grande Beleza: festa; glamour; decadência; beleza vs. vazio.
  • O Grande Gatsby: período parecido, euforia parecida; Tobey Maguire. Muito superior, Babilônia é o que Baz Luhrmann gostaria de ter feito com seu Gatsby.
  • Lobo de Wall Street: gente rica se drogando; apogeu e queda; euforia.
  • Era uma vez em Hollywood: os filmes por dentro; passado de Hollywood; Margot Robbie e Brad Pitt.

No entanto, Babilônia teve uma recepção crítica… morna, no mínimo. “Polarizada”. Acreditamos que o Leviatã míope se arrependerá dentro de alguns anos, portanto registramos nossa breve defesa (sem spoilers).

  1. O ato inicial do filme, uma festa megalomaníaca (à Grande Beleza), é um pináculo de montagem, edição e figurino sozinho mais interessante que a maioria das produções de grande orçamento a terem saído do papel. Há camadas e camadas e camadas: ao público basta perder-se e admirar a sequência.
  2. A trilha sonora é monumental, praticamente um personagem. Quem assina é Justin Hurwitz, também encarregado da função em Whiplash, La La Land e First Man. Tal entrosamento justifica como Chazelle consegue potencializar o trabalho de seu escudeiro por meio de uma edição, then again, primorosa. A estratégia Morricônica de estabelecer um tema e desenvolvê-lo em variações seguindo o desenvolvimento dos personagens encaixa precisamente com a filme.
    1. Mais sobre a trilha aqui.
  3. Os atores estão voando. Entre os protagonistas, Margot Robbie impressiona no papel de Nellie, a estrela selvagem adentrando um novo universo de glamour, cocaína, sujeira e vaidade. Diego Calva nos cativa como Manny Torres, o imigrante ligeiro. Brad Pitt faz o que sempre fez e, justamente, quando se precisa de um personagem-Brad-Pitt na tela, ele ainda é o mais indicado. Menções honrosas a Jovan Adepo (trompetista Sidney) e Jean Smart, cuja personagem representa, vejam só, a crítica.
    1. Aqui uma relação entre os personagens e suas contrapartes históricas.
  4. Há um desenvolvimento concreto, progressivo e realista dos personagens – o que justifica e faz valer os 189 minutos. Trata-se de épocas diferentes, cenários distintos, mudanças drásticas e desfechos variados: não teria graça pincelar tudo isso. Sob a perspectiva de Manny, Babilônia é praticamente um Bildungsroman. A virada de chave do cinema mudo elevou e derrubou muita gente. Absorvemos isso testemunhando o contexto inicial com calma. Nos situamos, então realmente enxergamos o impacto da mudança. Da mesma forma, a produção não fecha os olhos para a diversidade sociocultural da época e seus respectivos preconceitos. Só não o faz com o didatismo enfadonho com que muitos filmes-massa-amorfa parecem dirigir-se ao Twitter.
  5. Todas as cenas retratando produções cinematográficas – isto é, a dificuldade técnica de gravá-las cem anos atrás, em cenários externos ou internos – são extraordinárias, sem tirar nem por. O silêncio, o improviso, a magia. Esses momentos complementam a conclusão anterior: entendemos a magia, portanto, depois disso, a mudança nos afeta e conseguimos sentir os personagens.
  6. A cena final (novamente, sem spoilers) é um derretimento imperdível; o dedo médio de confiança absoluta do diretor; a autoria em seu êxtase. O fim que merecemos depois de uma jornada divertida, melancólica, megalomaníaca, engraçada, trágica, bela. De chorar. De chorar. Quem se rendeu não esquece.

Convenhamos, nenhum desses argumentos é grande coisa (“show, don’t tell”). Assista ao filme com som alto e coração limpo, depois diga-nos o que achou (por favor!). Três horas não são nada. Por fim, se quiser argumentos ainda piores, saiba que Babilônia foi indicado a três categorias do Oscar. Viva o Oscar!

Era Uma Vez na América

Extraído da edição 99 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Noodles, I slipped!

Não se pode chamar de subestimado, afinal se trata de um filme de Sergio Leone, mas Era Uma Vez na América (1984) decerto é menos lembrado que outras grandes obras do diretor italiano – e menos lembrado do que merece.

  • Talvez porque o filme não seja um western, gênero ao qual Leone ficou tão associado.
  • Talvez porque seja seu último longa-metragem, com grande distância em relação ao anterior (13 anos para Giù la testa/Duck, You Sucker!).
  • Talvez por conta de seu lançamento confuso, com uma versão reduzida nos Estados Unidos, capaz de prejudicar a recepção imediata da película (e sua arrecadação).
  • Talvez porque sua versão consagrada tenha 229 minutos (3 horas e 49 minutos), o que intimida um tanto – mas vale cada segundo.

Era Uma Vez na América é um pináculo do cinema, sem mais nem menos. Ao longo de suas quase quatro horas, acompanhamos a trajetória de Noodles (Roberto De Niro) e Max (James Woods) representada de forma hipnotizante. A dupla lidera uma gangue juvenil cujo contexto tem a Lei Seca dos Estados Unidos (1920-1933) como ponto central.

A partir disso, assistimos a uma narrativa que desenvolve esses personagens por décadas, de 1918 até o fim da década de 1960, fragmentando a história de forma não linear e pincelando-a por cenas de um capricho etéreo.

Testemunhamos a ação do tempo, a degradação e a amargura através de cenários oníricos e transições de cenas coreografadas por um gênio, pois tamanha clarividência e tamanha técnica pertencem apenas ao gênio. Era Uma Vez na América redimensiona o que essa arte é capaz de proporcionar.

O filme é brutal e delicado; singelo e complexo; claro e ambíguo. Muitos adjetivos (que nada dizem), infelizmente, mas Sergio Leone criou algo digno de tal êxtase – com mais uma trilha sonora primorosa de Ennio Morricone e cinematografia de Tonino Delli Colli.

Há cenas que espectador algum esquece – quem viu sabe exatamente quais –, mas tratar delas pode atrapalhar a experiência de curiosos. Nosso maior intuito é incentivar o contato com essa obra-prima de densidade narrativa, psicológica, visual e sonora. Por hoje é só: reassistindo, seguimos pasmos.


  • Ao fechamento desta edição, Era Uma Vez na América está disponível no Prime Video, que não financiou este texto.
  • Uma possibilidade é dividir o filme em dois, assistindo à primeira parte, até 2h40min; depois disso, até o fim (cerca de 1h10min). Outra é serializá-la em seis partes. Segue sugestão: 1 (até 38 min); 2 (até 1h29min); 3 (até 2h03min); 4 (até 2h40min); 5 (até 3h12min) e 6 (até o fim).