Baú: Elias Thomé Saliba

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Bem mais recentemente, nas áreas conexas da neurociência cognitiva e alavancadas por sofisticados sistemas de informática, inúmeras pesquisas vêm mostrando que o humor é um mecanismo de enfrentamento psicológico, um estratagema que o cérebro humano usa para a resolução de conflitos: nem sempre este conflito aparece na forma de uma piada, pelo contrário, ele é inerente à vida humana na sua totalidade. Neste sentido, como veremos mais adiante ao analisarmos as teorias do humor, as inúmeras pesquisas da neurociência parecem corroborar a noção de incongruência – uma das teorias humorísticas mais utilizadas por todos os analistas, apesar da sua notável imprecisão. Elas sustentam que o humor revela a enorme complexidade do cérebro humano: se o cérebro fosse um governo, não seria uma ditadura, uma monarquia ou mesmo uma democracia – seria mais semelhante a uma anarquia: partes conectadas a outras partes que, por sua vez, são conectadas a outras e que, em nenhum lugar no sistema, existe uma autoridade central que decide o que dizer ou fazer. Essa situação gera alguns benefícios, como nos permitir resolver problemas e, até mesmo, raciocinar sobre várias coisas. Mas, em alguns momentos, isto provoca conflitos como, por exemplo, quando tentamos lidar com duas ou mais ideias inconsistentes ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, o cérebro conhece apenas uma resposta: o riso. Noutras palavras, o cérebro lida bem com ideias que são conflitantes e usa estas situações para alcançar pensamentos e soluções mais complexas. Esse processo pode ser prazeroso, gerando o humor.
Elias Thomé Saliba, História cultural do humor: balanço provisório e perspectivas de pesquisas (Revista de História, USP, 2017)

Conan, o último de sua era

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Conan O’Brien, o ruivo grandalhão mais longevo entre os apresentadores de talk show nos Estados Unidos, pendurou as chuteiras – ao menos no formato que o consagrou.

Americano de ascendência irlandesa, Conan comandava algum talk show desde Late Night with Conan O’Brien (NBC), em 1993, quando ele ainda era um jovem roteirista de Os Simpsons. O apresentador chegou a trocá-lo pelo The Tonight Show, ainda na NBC, por um breve período (que acarretou uma polêmica longa e desinteressante), então assumiu Conan (TBS) em 2010. O último episódio de Conan foi ao ar mês passado e incluiu uma entrevista conduzida por Homer Simpson.

O apelo de Conan O’Brien é simples: ele é um sujeito tremendamente inteligente tentando ser o mais bobo possível em suas interações. Com o aspecto de um cartum gigante, Conan costuma ser o alvo da própria piada, e em suas interações com outros (famosos ou não) fica evidente sua capacidade de fazer qualquer um rir de forma sincera, geralmente armado apenas da própria espontaneidade.

O que parece ser justamente o ponto cego de seu gênero de atuação. Nos últimos anos, esses talk shows americanos – uma instituição sempre copiada no mundo inteiro – mudaram. A internet expandiu sua audiência tremendamente e possibilitou esquetes muito bem produzidas, já pensadas para a propagação digital.

Por outro lado, talvez pela gradual desimportância do tempo televisivo; talvez pela hiperatividade do espectador; talvez pela urgência em capturar o maior engajamento possível com todas as faixas etárias possíveis; talvez pela tentativa generalizada de transformar a existência em algo “tipo a Marvel”; talvez por puro desespero; talvez por mero desgosto do editor… há menos conversas (isto é, interações entre adultos atentos) genuínas e engraçadas no formato.

Por exemplo, de um lado, Jimmy Fallon e James Corden, com seus joguinhos e risadas ininterruptas, testam a paciência de qualquer espectador com uma abertura mínima para o cinismo [a linha do escapismo], ao passo que Stephen Colbert e Seth Meyers pregam para convertidos, num estilo de comédia cada vez mais refém de conteúdo (e alinhamento) político [a linha do proselitismo]. Craig Ferguson, o bom caótico, já abandonou o talk show há anos.

Resta Jimmy Kimmel, que vez ou outra proporciona um quadro marcante, mas simplesmente não dispõe da mesma aptidão para o humor natural. Nenhum deles tem a fluidez do irlandês Graham Norton, por exemplo. O formato imortalizado por Johnny Carson e conhecido por certa maturaridade, enfim, mantém outras preocupações hoje (o que, por si só, não é nenhum problema). A respeito do talk show como gênero contemporâneo, há considerações interessantes nessa conversa com Conan O’Brien em Oxford.

Ademais, não bastasse a concorrência com absolutamente tudo (Netflix, Playstation, TikTok etc.), outra competição emergiu. Porque conversas mais detalhadas, histórias de bastidores e anedotas em geral parecem cada vez mais direcionadas aos podcasts – cuja produção, por sinal, é muito mais simples e barata. Não à toa, a impressão recente é de que qualquer pessoa pública mantém um (e ganha um bom cascalho extra no fim do mês, afinal basta anunciar e recolher o dinheiro do anunciante, sem intermédios).

O próprio Conan criou um podcast (Conan O’Brien Needs a Friend) e parece ter se dado conta da leveza do formato, que não chega perto de exigir todo o preparo necessário em comparação com um episódio de TV, o qual, muitas vezes, pode incluir um convidado indesejado, empurrado pela emissora, ou conversas interessantes, mas limitadas pelo fator tempo.

Fora do talk show, mas agora contratado pela HBO, Conan O’Brien não se aposentou do entretenimento. A mudança provavelmente será uma evolução, capaz de aproveitar mais sua habilidade para interações aleatórias e explosões de nonsense. Basta vê-lo perambulando pelo mundo: seus momentos em viagens se tornaram o Conan Without Borders e, mais do que isso, permitiram uma rara apreciação de um sujeito que faz uso da própria sagacidade para produzir uma alegria tão boba que só pode exigir muito talento.

Jessica Walter

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A atriz Jessica Walter morreu em 25 de março, isto é, há dez dias. Ela teve uma carreira longeva, com destaque para Play Misty for Me (Perversa Paixão, 1971), em que sua personagem, Evelyn, persegue Clint Eastwood, por sinal em sua estreia como diretor. Também ganhou um Emmy em 1975, com a série (e a protagonista) Amy Prentiss (1974).

Como a maioria da minha geração, no entanto, conheci Jessica Walter graças a Arrested Development (2003), brilhante série de comédia que acompanha os Bluth, uma família decadente e picareta em busca de algum alinhamento interno.

Arrested Development acabou precocemente (2006) e retornou desnecessariamente (2013, depois 2018). Nesse meio tempo, influenciou qualquer produção audiovisual que visasse a fazer alguém rir. Criada por Mitchell Hurwitz e narrada por Ron Howard (aquele), a série atingiu uma execução absoluta em sua proposta errática.

Hurwitz criou personagens tão problemáticos como marcantes, com frases igualmente marcantes e dramas visíveis, expostos em comentários banhados no mais absoluto cinismo. Isso tudo rodando por meio de um elenco muito acima da média, capaz de conferir o dinamismo necessário para o roteiro funcionar.

Afinal, em sua produção original (2003-06), o que havia de incomparável em Arrested Development era o ritmo. Este é justamente o que afasta quem (ainda) não a compreende, mas encanta quem compra a ideia. Uma vez que o espectador entra no ritmo dessa dança, ele se vê diante de uma miríade de caminhos para rir (inclusive com piadas escondidas).

E Lucille Bluth, interpretada por Jessica Walter, é consistentemente a personagem mais engraçada da série mais engraçada de sua época. Lucille é a matriarca alcoólatra, cruel, elitista, controladora, ciumenta, xenófoba e racista da família.

O que poderia gerar uma caricatura unidimensional ganha aquele contorno de carisma que apenas a execução primorosa proporciona. Com suas caras e bocas, sua entonação, seu alcance e seu timing, Jessica Walter elevou a personagem a um nível em que é simplesmente impossível detestar Lucille Bluth, não importa quão detestável ela seja.

Não à toa, em Archer (2009–), a personagem Malory Archer, mãe do protagonista – e dublada por Walter –, é praticamente uma reprodução de Lucille Bluth (e, outra vez, rouba qualquer cena). Porque todo mundo conhece alguma Lucille, mas ninguém conhece essa Lucille. Tal amálgama de perversão e sagacidade só é possível com Jessica Walter.

Nos acostumamos com a morte das figuras que admiramos; a verdade é que, a essa altura (da vida pessoal e da civilização), ela impacta cada vez menos. Mas algumas, rompendo com a lógica do afeto, marcam mais que o esperado. A de Jessica Walter sensibiliza por alguns motivos imediatos:

  1. Sentimos uma espécie de carinho latente e inesgotável por quem é capaz de nos fazer rir.
  2. Ela era um componente extraordinário de (ao menos) uma obra extraordinária.
  3. A atriz visivelmente não compartilhava dos traços de personalidade de Lucille/Malory, o que só reforça sua qualidade.
Descanse em paz, Jessica. I’ll be in the hospital bar.

Como (mas não necessariamente por que) Community é brilhante

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Community

Dez anos atrás – um pouco antes, um pouco depois – a emissora americana NBC encaixava uma sequência mágica de séries de comédia. Nas noites de quinta-feira, o canal de TV aberta transmitia The Office (2005-2013), 30 Rock (2006-2013), Parks and Recreation (2009-2015) e Community (2009-2015), não necessariamente nessa ordem.

Até o momento, todas envelheceram muito bem. Claro que não faz muito tempo que acabaram, portanto não dispomos do distanciamento necessário para cravar a relevância histórica de cada uma, mas é notável como a audiência da internet não só não permitiu que arrefecessem como parece impulsioná-las gradativamente.

Community retornou à Netflix brasileira há pouco tempo, o que tem renovado seu público. A série também está disponível no Prime Video. Já faz mais de dez anos que o primeiro episódio foi ao ar, e esse envelhecimento reforça a impressão de que Community estava à frente de seu tempo.

As histórias de bastidores da produção são bastante conhecidas. A maioria envolve as peripécias do criador, o idiota-prodígio Dan Harmon, e o temperamento complicado de Chevy Chase, de longe o nome mais famoso da atração, ao menos quando ela começou.

Grosso modo, Community não conseguia uma grande audiência. Harmon foi demitido da própria criação. Uma temporada se passou sem ele – abaixo das outras. Surpreendentemente, Harmon foi readmitido para outra. Durante e depois dela, alguns atores deixaram a série, a qual foi cancelada, então magicamente reativada pelo Yahoo, onde permaneceu por uma temporada final. A audiência se manteve, se não baixa, ao menos pouco impressionante. Mas Community terminou com dignidade.

E, de fato, não abordaremos tanto por que razão Community é brilhante, embora possamos fazê-lo em outra oportunidade. A série é engraçada (oras); tem personagens carismáticos, com dilemas verossímeis; carrega a metalinguagem como recurso, não muleta; fornece pastiches e paródias caprichados; abraça o multiculturalismo dos personagens de forma muito genuína.

Enfim, como toda ou, pelo menos, a maioria das obras extraordinárias – e Community é uma obra extraordinária –, o êxito artístico da criação de Dan Harmon exigiu a colaboração de um núcleo de pessoas talentosas. Afinal, como já sintetizou José Mourinho, “sem ovos, não se fazem omeletes – e depende da qualidade dos ovos”. Isso responde como Community se tornou brilhante: com muitos ovos de qualidade.

Depois de Community, Dan Harmon criou Rick and Morty (2013-) com Justin Roiland. A animação estourou e dispõe da notável vantagem mercadológica de vender bonecos e afins. Além disso, ser uma animação (que depende mais do próprio Roiland, quem grava as vozes dos protagonistas) confere uma flexibilidade maior para contornar o comportamento errático de Harmon.

Os irmãos Anthony e Joseph Russo, produtores executivos da série e diretores de 48 de seus 110 episódios, acabaram contratados pela Marvel para dirigir Tanto Faz 5 e Herói Genérico 7, além dos dois últimos filmes dos Vingadores. Cada um deles rendeu mais de US$ 2 bilhões aos androides da Disney, e o último detém a maior bilheteria da história do cinema.

A Enclave não assistiu, portanto não avalia; fato é que ninguém é escolhido para tocar um projeto tão grande sem apresentar um leque amplo de habilidades – mesmo que depois elas sejam pasteurizadas sem dó.

Por sua vez, Ludwig Göransson, responsável pelas músicas autorais que ouvimos ao longo de Community, compôs as trilhas sonoras de Creed (2015), The Mandalorian (2019-) e Tenet, o próximo filme de Christopher Nolan. Além disso, colabora frequentemente com o rapper Childish Gambino, assinando composições e produções em todos os seus álbuns.

Childish Gambino, para quem desconhece a ligação, é Donald Glover, e Donald Glover – ator, músico, roteirista (de 30 Rock, inclusive) e criador de Atlanta (2016-) –, hoje mais consagrado do que nunca, é um dos protagonistas de Community.

Ainda no elenco, Jim Rash ganhou um Oscar pelo roteiro adaptado de Os Descendentes (2011). Alison Brie, que já dava as caras em Mad Men (2007-2015), participou de BoJack Horseman (2014-2020) e estrelou GLOW (2017-2019). John Oliver estourou na HBO com seu Last Week Tonight (2014-). Concluímos que eram ovos muito competentes em diferentes esferas: está respondido o como.

Anteontem (18), durante a quarentena, o elenco se reuniu (com Dan Harmon) para ler o roteiro de um episódio icônico da quinta temporada – um bottle episode, isto é, aquele mais econômico possível, que geralmente se passa em um só cenário. Eles também responderam perguntas de fãs.

Há uma leveza na dinâmica dos envolvidos – leveza repetida em toda interação pública de elenco e produção, que costumam se reunir em diferentes projetos atuais. Essa naturalidade, a famosa química, é mais abstrata, mas certamente explica, ora como causa, ora como consequência, como (e por que) uma obra consegue atingir todo o seu potencial. Pode ser verificada na constância com que um faz o outro gargalhar, costurando a atmosfera típica de piada interna.

Community é uma série sobre amizade e (não) pertencimento. Joel McHale, protagonista (e eventualmente produtor informal), compreende exatamente a que se refere a magia de seu conteúdo: “Dan (Harmon) é o mestre das piadas dirigidas aos personagens, e há uma diferença muito grande entre piadas e piadas dirigidas aos personagens, que partem do que se passa com o personagem – em oposição a ‘aqui vai algo engraçado para falar’ (…). Por isso eu ficava furioso quando algum crítico dizia ‘é só humor referencial’.”

Com os instrumentos certos, Dan Harmon conseguiu converter sua visão em uma comédia demasiadamente humana, traduzindo a insegurança, o comprometimento e o humor derivados da construção de intimidade. Community emula o conforto de ser alvo das piadas de um amigo muito próximo.

Craig Ferguson, o bom caótico

Extraído da edição 36 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Geoff Peterson, Craig Ferguson e Secretariat.

De Johnny Carson a Rafinha Bastos, passando por Jô Soares e David Letterman, você já deve ter observado como a estrutura de talk shows noturnos costuma ser parecidíssima: uma mesa; convidados; monólogos; diálogos nem sempre espontâneosbanda fixa e um auxiliar coadjuvante. Ainda que existam exceções, a forma é quase sempre idêntica.

Em meio a essa hiper-realidade de famosos sorridentes e fragmentos hiperativos, o escocês Craig Ferguson se consolidou como um apresentador singular. Sua criatura, The Late Late Show with Craig Ferguson (2004-2015), da americana CBS, não perdia chances de rir do próprio gênero.

Ferguson, afinal, sempre adotou uma abordagem um tanto anárquica no formato inteiro. Após anos recebendo reclamações pela ausência de um coadjuvante, seu companheiro no comando do programa era Geoff Peterson, um “robô gay” de movimentos limitados dublado por Josh Robert Thompson.

Também não havia banda, mas existia Secretariat, um elemento fantasiado de cavalo cuja função consistia em dançar com o apresentador – isso acontecia com frequência. Fantasias e fantoches, aliás, não faltavam nos segmentos absurdos, bem como silêncios constrangedores. Quando membros da plateia participavam, eles realmente não tinham ideia do desdobramento da conversa.

E os entrevistados também não. Craig Ferguson claramente não se preparava para as entrevistas, segundo ele para manter uma curiosidade genuína nos convidados (ou, quem sabe, por preguiça). Essa entrevista com Robin Williams, por exemplo, exibe dois lunáticos à vontade. Simbolicamente, Ferguson passou a rasgar aqueles cartões preparatórios de que todo apresentador dispõe.

Da mesma forma, eram frequentes suas alusões à superficialidade do formato. Por exemplo, ao papel de parede noturno e à gravação dos episódios, que de noturna nada tinha.

Entretanto, o escocês não se consagrou só pelo humor: além do carisma invejável, Ferguson expunha um bom senso pouco visto na televisão (e em qualquer lugar, sejamos justos). Alguns de seus monólogos são especialmente marcantes, como aquele em que compartilha ter tido sérios problemas com o álcool ou as homenagens a paimãe, diante de suas respectivas mortes.

Sempre desprovido de demagogia, pretensão e proselitismo, Craig Ferguson tratou sua própria função com escárnio até encerrar o Late Late Show, em 2015. Por seus não tão numerosos fãs, segue adorado. Hoje, assistir às cenas de seu programa traz aquela confusa, porém genuína sensação de saudades de algo não testemunhado em primeira mão.