Testemunhas da solidão

Extraído da edição 95 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Night Shadows, Edward Hopper, 1921.

Já tratamos algumas vezes da literatura policial na Enclave, muitas vezes desembocando organicamente no noir. Também já escrevemos especificamente sobre a solidão em Mad Men, obra-prima da televisão. Hoje, em outra eterna interseção (ou recursão?), ligamos mais pontos óbvios para seguir pensando dentro da caixa de forma quinzenal.

A literatura policial – essa mais urbana, americana, do século 20 – tem um apelo claro. Nas palavras de Raymond Chandler, seu representante máximo, mistérios “são quase que o único tipo de ficção que não está querendo dar um passo mais largo que as pernas”. O gênero que o consagrou, moldado por Dashiell Hammett, é conhecido por apresentar detetives particulares apanhando, mas seguindo em frente até o fim da trama.

Hammett apresentou ao mundo Sam Spade e o agente da Continental; Chandler, Philip Marlowe; Rex Stout, Nero Wolfe e Archie Goodwin. Por fim, Ross MacDonald sustentou uma carreira longeva com seu herói Lew Archer, tão implacável como qualquer outro, mas talvez mais complacente com a miséria alheia.

Após uma longa sequência mergulhando nesses e em outros autores próximos (como Cornell Woolrich), porém mais recentemente conhecendo a fundo o desenvolvimento de MacDonald, este editor se perguntou, entre trench coats e gotas de chuva: para além de afinidade estética, onde está o apelo narrativo em acompanhar detetives particulares apanhando e seguindo em frente?

Sem o menor risco de trazer um raciocínio inédito, a conclusão é simples.

Primeiro, sabemos que narrativa alguma se sustenta sem alguma relação (mesmo que de desprezo) com seus personagens. O enredo mais interessante do mundo não vale nada se os personagens são um lixo incapaz de articular nada além de lixo, ao passo que personagens interessantes vivendo um dia banal podem compor uma história cativante.

Com essa premissa bem estabelecida, a literatura dos detetives durões nos oferece uma relação curiosa. Afinal, ela funciona porque posiciona o leitor como testemunha da solidão de seus heróis. Sim, eles sempre apanham e seguem em frente. Mais do que isso, no entanto, esses personagens o fazem de maneira – constantemente – solitária, embora jamais declarada diretamente, ou com uma metafísica extensa. Estão cansados demais para isso.

Os detetives vagam, visitam locais onde não foram convidados para conversar com pessoas que não querem dialogar, extraem pedaços de informação, brigam, bebem, dormem mal e ligam pontos com pouco ou nenhum auxílio. Em primeira pessoa, com períodos curtos e diretos, expõem a própria vulnerabilidade enquanto relatam resiliência.

Ao leitor, também resta ir em frente. A literatura policial urbana desse grupelho de americanos é simplesmente irresistível.

Baú: Rex Stout

Extraído da edição 53 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Wolfe murmurou: — Agradeço o interesse que eles demonstraram.
— Não duvido. — Bascom apoiou um dos punhos sobre a mesa e pareceu ficar ainda mais ansioso. — Senhor Wolfe, quero lhe falar de profissional para profissional. O senhor seria o primeiro a concordar que nossa profissão deve ter dignidade.
— Não de maneira explícita. Afirmar a dignidade significaria perdê-la. (p. 54.)

(…) eu sabia que Wolfe já errara, poucas vezes, porém mais de uma. Quando a ocasião mostrou que ele estivera errado a respeito de algo, era uma delícia vê-lo lidar com a situação. Ele balançava o dedo de maneira mais rápida e violenta do que de costume e murmurava com os olhos quase abertos, ‘Archie, eu adoro cometer um erro, é a minha única garantia de que não se pode razoavelmente esperar que eu carregue o fardo da onisciência’. (p. 195.)

Rex Stout, A Confraria do Medo, 1935 [Companhia das Letras].