Brasil 1970-75, um guia musical

Extraído da edição 70 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Que a música brasileira é mundialmente reconhecida, qualquer um sabe. Mas nós nunca tínhamos nos dado conta da proporção de qualidade concentrada na década de 1970, especialmente até 1975.

Havia uma mistura bastante talentosa de talentos e contextos: veteranos da bossa nova; herdeiros da bossa nova; gente de saco cheio da bossa nova; tropicalistas; clássicos do samba; samba rock; geração dos festivais televisivos de música; guitarra elétrica; passeata contra a guitarra elétrica; eruditos; empíricos; gente que viajou pelo mundo; gente que nunca saiu do Brasil; repressão e tensão política; cultura hippie; o Hermeto Pascoal.

Os frutos são incríveis. A partir deles, concluímos que, àquela época, o Brasil dispunha do apogeu da música mundial. Sem nenhum traço de saudosismo – porque não vivemos essa época –, tampouco de ufanismo – porque é brega. Trata-se de uma afirmação bastante razoável de defender.

Pensando nisso, listamos todos os álbuns de que gostamos após ouvir, pesquisar e reescutar. Não são todos extraordinários, o que seria impossível, mas há discos soberbos entre eles. Todos têm pontos altos; nenhum é fraco. Ficam as nossas sugestões para que esta lista seja lida e relida (como uma porta de entrada ou fonte de discórdia).

Todos os álbuns mencionados estão disponíveis no Spotify, exceto quatro, que sinalizamos e apontamos para o YouTube. No Spotify, você também pode acompanhar nossa playlist querida, melhor degustada na ordem aleatória – exatamente como o Brasil.


Playlist: Brasil 1970-1975 era o apogeu da música mundial [Spotify]

1970
Antonio Carlos & Jocafi – Mudei de Ideia
Egberto Gismonti – Sonho 70
Elis Regina – …Em Pleno Verão
Gal Costa – Legal
Jorge Ben Jor – Força Bruta
Milton Nascimento – Milton
Os Mutantes – A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado
Paulo SérgioPaulo Sérgio vol. IV
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1970)
Rosinha de Valença – Rosinha de Valença apresenta o Ipanema Beat
Taiguara – Viagem
Tom Jobim – Stone Flower
Tom Jobim – Tide
Toquinho – Toquinho (1970)

1971
Chico Buarque – Construção
Erasmo Carlos – Carlos, Erasmo
Evinha – Cartão Postal
Jorge Ben Jor – Negro é Lindo
Maria Bethânia – A Tua Presença
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1971)
Sílvio César – Sílvio César (1971)
Vinícius de Moraes – Como Dizia o Poeta
Wilson Simonal – Jóia, Jóia

1972
Caetano Veloso – Transa
Elis Regina – Elis
Gilberto Gil – Expresso 2222
Hermeto Pascoal – Hermeto [YouTube]
Jards Macalé – Jards Macalé
Luiz Bonfá – Introspection
Maria Bethânia – Drama
Milton Nascimento & Lô Borges – Clube da Esquina
Novos Baianos – Acabou Chorare
Paulinho da Viola – Dança da Solidão
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1972)
Tom Jobim – Matita Perê
Toni Tornado – Toni Tornado (1972)

1973
Arthur Verocai – Arthur Verocai
Eumir Deodato – Prelude
Eumir Deodato – Deodato 2
Eumir Deodato – Os Catedráticos 73
Hermeto Pascoal – A Música Livre de Hermeto Pascoal [YouTube]
Ivan Lins – Modo Livre
João Donato – Quem é Quem
João Gilberto – João Gilberto [YouTube]
Luiz Melodia – Pérola Negra
Marcos Valle – Previsão do Tempo
Milton Nascimento – Milagre dos Peixes
Nelson Cavaquinho – Nelson Cavaquinho (1973)
Novos Baianos – Novos Baianos F. C.
Raul Seixas – Krig-Ha, Bandolo
Secos e Molhados – A Volta de Secos & Molhados
Sérgio Sampaio – Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua
Taiguara – Fotografias
Tim Maia – Tim Maia (1973)
Tom Zé – Todos os Olhos
Trio Mocotó – Trio Mocotó

1974
Adoniran Barbosa – Adoniran Barbosa
Airto Moreira & Eumir Deodato – Deodato/Airto in Concert [YouTube]
Benito Di Paula – Um Novo Samba
Cartola – Cartola
Egberto Gismonti – Academia de Danças
João Donato – Lugar comum
Jorge Ben Jor – A Tábua de Esmeralda
Jorge Mautner – Jorge Mautner (1974)
Martinho da Vila – Martinho da Vila
Nelson Gonçalves – Passado e Presente
Raul Seixas – Gita
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1974)
Vinícius de Moraes & Toquinho – Vinícius & Toquinho

1975
Airto Moreira – Identity
Alcione – A Voz do Samba
Azymuth – Azimüth
Bebeto – Bebeto
Clara Nunes – Claridade
Di Melo – Di Melo (1975)
Hyldon – Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda
Lula Côrtes & Zé Ramalho – Paêbirú
Nelson Gonçalves – Nelson de Todos os Tempos
Tim Maia – Racional (vol. 1)
Waltel Branco – Meu balanço

Vamos lá. Listas, assim como goleiros e revisores de texto (e os Correios), são avaliadas a partir de suas falhas: o que esquecemos?

Ademais, quais são os melhores, mais influentes, mais marcantes, crème de la crème, apogeu do apogeu? Quais são seus favoritos? Se o editor tivesse de morrer abraçado com um, seria o Clube da Esquina.


  • Em 1976, já temos África Brasil (Jorge Ben Jor), Cartola (1976), Estudando o Samba (Tom Zé) e Alucinação (Belchior), entre outros. Mas quem sabe uma segunda lista…
  • Já a década de 1980…

Não creio em mais nada

Extraído da edição 65 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Minha mãe provavelmente se envergonharia, mas apenas no último fim de semana conheci quem foi Paulo Sérgio (1944-1980) – o músico, não o atacante. (O atacante jogou com o Totti.)

A Enclave, como já reconhecemos, não escapa à sua natureza millennial. Há vantagens, como saber desinstalar tudo o que desacelera um Windows praticamente por instinto. E há desvantagens, como a falta de contato direto com elementos culturais renegados pela crítica.

Volta e meia, elementos assim – como o cantor Paulo Sérgio – são redescobertos pela internet, e então novas gerações se surpreendem, resgatam e reinterpretam o adormecido. Tratamos de algo parecido quando escrevemos sobre o city pop.

Em uma dessas mixtapes difíceis de mapear por que exatamente surgem nas recomendações do YouTube, conheci Paulo Sérgio, o cantor. Brega, romântico, popular. Morreu precocemente, aos 36, vítima de um derrame cerebral – há exatos 40 anos e 10 dias de quando escrevemos este texto. Tinha lá suas polêmicas.

Inegavelmente parecido com Roberto Carlos, foi comparado com o rei e tachado de imitador. Quando finalmente se conheceram, em 1973, deram-se muito bem – ao menos na frente das câmeras.

Mas o que impactou foi ‘Não creio em mais nada‘, do disco Paulo Sérgio Vol. 4 (1970, Spotify). Arranjos, batida, letra, melodia e até um certo groove: esse manifesto de fatalismo, aparentemente composto por Totó, é uma bomba da mais atemporal resignação.

Não sei o que faço
Se volto agora ou continuo a seguir
Eu sinto cansaço
E já não sei se vale a pena insistir
(…)

Não creio em mais nada
Já me perdi na estrada
Já não procuro carinho
Me acostumei na caminhada sozinho
A vida toda só pisei em espinho
Já descobri que o meu destino é sofrer

Os remixes contemporâneos já começaram a pipocar – aqui e aqui, por exemplo –, e Fernanda Takai, pescando o zeitgeist, lançou uma versão da música em junho.

Para você que está desanimado, soque o play e complemente seu drama existencial com esses 140 segundos de cinismo: hoje não será melhor do que ontem, e sigamos em frente! Boa segunda-feira e uma grande semana para todos nós.