Duna é o espetáculo que Duna merece

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Que saudades de ir ao cinema! À minha direita, um sujeito trata o saco de pipoca como se precisasse nocauteá-lo, então a degusta com a ferocidade de um cão a descobrir um novo osso.

À minha esquerda, um bombonière humano com uma relação infinita de chocolates, todos encapsulados em plástico e guardados em outra sacola plástica, na qual é preciso navegar constantemente à procura do próximo doce.

À minha frente, impulsos assassinos controlados, depois distraídos por uma tela gigantesca a anunciar: “Duna, primeira parte“.

Talvez você já tenha cansado de ouvir sobre Duna; talvez lhe falte um último empurrão para ver o filme com os próprios olhos; talvez você não tenha qualquer interesse no assunto. Mas Duna, do franco-canadense Denis Villeneuve, é o principal assunto do cinema hoje, muito por conta da escassez de lançamentos em função da pandemia.

E Duna (1965), o romance de Frank Herbert que lhe serve como base, é um livraço. Enredos, personagens, conceitos: uma miríade de informações parte de Arrakis, o planeta desértico governado pela Casa Atreides, para compor uma verdadeira picadilha galática.

Tecendo a ficção científica com feudalismo, Herbert misturou tecnologia, transcendência e pluralismo cultural de maneira cativante. Não à toa, esse universo, tão grande como amarrado – a criatividade do autor é puramente invejável –, acarretou uma saga de publicações, e estas inspiraram diversas outras franquias.

Com um parâmetro simplificado, podemos dizer que Duna sempre foi o “Star Wars para adultos” (digo isso de maneira não depreciativa). George Lucas certamente bebeu dessa fonte.

Porém, a adaptação de David Lynch, de 1984, é esquisita (digo isso de maneira depreciativa) por vários motivos, alguns dos quais – não todos – fora do controle do diretor (“Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu”).

Por sua vez, o Duna de Alejandro Jodorowsky seria o maior, melhor, mais espetacular, mais incrível filme da história, segundo Alejandro Jodorowsky. Contudo, o projeto acabou engavetado, alimentando o mito acerca do título, que seguia à procura de um filme capaz de traduzir sua devida potência.

E assim chegamos ao Duna a que podemos assistir nos cinemas no fim de 2021. Para fazê-lo, por sinal, não li absolutamente nada sobre o filme; nem uma crítica; zero. Acompanhei a produção anos atrás, então procurei me desinteressar para não criar expectativas – mesmo confiando em Villeneuve, ou melhor, “no De“.

Mais que um excelente filme, Duna é uma experiência cinematográfica incrível. Ideal para grudar os olhos em uma tela gigante, ficar meio surdo e esquecer o indivíduo nefasto amassando uma sacola plástica ao seu lado.

Protagonizada por um monte de ator famoso mais um monte de famoso ator, a obra é expositiva o suficiente para dar conta da parcela do romance a que se propõe. Ainda assim, flui bem o bastante para entregar pancadaria, belas cores, belos cenários, belos trajes e um capricho sonoro capaz de tensionar seus músculos na cadeira.

Duna, finalmente, tem um espetáculo digno de Duna – o melhor blockbuster possível diante de seu texto fonte. Nem fãs nem curiosos se decepcionarão. A segunda parte já foi confirmada para 2023.

Baú: Thomas Pynchon

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Em certos dias, ir de carro para Santa Monica era como ter alucinações sem se dar a todo o trabalho de adquirir e depois ingerir uma droga qualquer, embora em certos dias, sem sobra de dúvida, qualquer droga fosse melhor que ir de carro para Santa Monica.

Hoje, depois de uma volta enganosamente ensolarada e monótona pelas propriedades da Companhia Hughes – uma espécie de smörgasbord de zonas de combate americanas em potencial, espécimes de tipos de terrenos que iam de montanhas e desertos a pântanos e florestas e coisa e tal, todos ali, segundo a lógica da paranoia, para servir à regulagem fina de sistemas de radar de combate – passando por Westchester e a Marina até Venice, Doc chegou à via de entrada de Santa Monica, onde começou o seu mais recente exercício mental. De repente ele estava em algum planeta onde o vento pode soprar simultaneamente em duas direções, trazendo neblina do oceano e areia do deserto ao mesmo tempo, obrigando o motorista incauto a reduzir a marcha assim que entrava nessa atmosfera alienígena, com a luz do sol obscurecida, a visibilidade reduzida a meio quarteirão, e todas as cores, inclusive as dos sinais de trânsito, desviadas radicalmente para outro ponto do espectro.

Thomas Pynchon, Vício Inerente, 2009 (Companhia das Letras, trad.
Caetano W. Galindo, 2010).