Baú: Howard Marks

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Ouvimos muito a respeito de projeções do “pior cenário”, mas elas muitas vezes acabam não sendo suficientemente negativas. Conto uma história do meu pai sobre o apostador que perdia regularmente. Um dia, o apostador escutou sobre uma corrida com apenas um cavalo, então ele apostou o dinheiro do aluguel. No meio da pista, o cavalo pulou a cerca e fugiu. Invariavelmente, as coisas podem ficar piores do que as pessoas esperam. Talvez “pior cenário” signifique “o pior que vimos no passado”. Mas isso não significa que as coisas não podem ficar piores no futuro. Em 2007, muitos “piores cenários” foram extrapolados.

Howards Marks, The Most Important Thing, 2013. Tradução nossa.

Baú: Clarice Lispector

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Quando eu me comunico com criança, é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com adulto, na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil… O adulto é triste e solitário. A criança tem a fantasia muito solta.

Clarice Lispector, 1977.

Baú: Chico Lopes

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Há algo de adolescente masturbador, sexualmente virginal ou travado e bobo nas maiores fantasias de Lovecraft, para ficar só nele, pai espiritual de toda essa gente. Livros (e filmes, claro) de terror, na verdade, impressionam mais, quando se os olha friamente, pela força que as superstições, as paranoias sexuais, os atavismos, as criações familiares rígidas e puritanas, as infantilidades persistentes, podem ter. A gente fica com a impressão de que esses autores simplesmente exorcizam, indefinidamente, infâncias povoadas por monstros que, se abertos o armário, se dissipariam, ou por criaturas demoníacas (sic) que, se o criador delas fosse mais sincero e mais audacioso ou menos indulgente com os próprios medos e hesitações, se dissolveriam depressa num ato sexual bem praticado, com o devido prazer e com o devido conhecimento de genitais que, em fantasias paranoicas, assumem até tentáculos e antenas e tecem enormes fantasias de grotesco com secreções, viscosidades, etc. O filme de terror típico sempre traz algum jovem crédulo ou tecnicamente ignorante (porque o gênero ficou decididamente adolescente) que tateia diante de uma realidade assustadora, punitiva, ligada à repressão sexual ou a algum terror racista ou xenofóbico, que lhe foi inculcado por uma educação torta, com base na excessiva correção WASP. Seus pais reais, com seus preconceitos, rigores e fanatismos (basta lembrar a mãe de Carrie, a Estranha) são muito mais horrendos e talvez sejam os únicos verdadeiros horrores a produzir outros tantos, de fantasia. A puerilidade desses livros e produções, que se prolonga e rende muito dinheiro, dá o que pensar. Para ficar apenas nos filmes que adaptam obras de Lovecraft, como são ruins! Quanto mais pomposo e “ciclópico” (é outro dos adjetivos constantes do autor) o horror, mais a tendência a ficar ridículo, risível, na tela. Só se assustam os pouco sofisticados.
Chico Lopes, Revista Germina, 2014.

Baú: Ben Macintyre

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Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Abwehr (que literalmente significa “defesa”) tinha reputação de ser o mais eficiente serviço de inteligência da Europa. Uma primeira avaliação do MI5, o serviço de segurança que controlava a contraespionagem no Reino Unido e em todo o império britânico, descreveu a Abwehr como “organização de primeira classe em treinamento e em pessoal”. Essa estimativa era claramente lisonjeira. Um dos aspectos mais importantes do serviços da inteligência nos países era como cada lado sabia pouco sobre o outro. Em 1939, o SIS, serviço secreto de inteligência britânico (também conhecido como MI6 e que opera em todas as áreas fora do território britânico), não sabia como o serviço de inteligência militar alemão se chamava e nem quem o dirigia. Em uma autoavaliação franca, escrita depois do fim da Segunda Guerra, o MI5 reconheceu que “na época da queda da França, a organização do serviço de segurança como um todo estava num estado que pode ser descrito apenas como caótico (…) tentando desenvolver meios de detectar agentes inimigos sem qualquer conhecimento interno de organização alemã”.

A Abwehr se encontrava igualmente mal preparada. Hitler não havia esperado ou desejado entrar em guerra com a Inglaterra, e a maioria das operações de inteligência dos nazistas era dirigida para o leste. A rede de espionagem da Abwehr na Inglaterra era virtualmente inexistente. Quando os dois países se enquadraram para o conflito, uma estranha dança de sombras se iniciou entre os serviços de inteligência rivais: ambos começaram a construir freneticamente redes de espiões, quase que do zero, para uso imediato. Cada um atribuía ao outro extrema eficiência e preparativos bem adiantados, e ambos estavam errados.

Ben Macintyre, Agente Zigzag, 2007 (Ed. Record, 2010).

Baú: hippies em Woodstock (Ayn Rand)

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Antimaterialistas declarados cuja única manifestação de rebelião e individualismo toma a forma material das roupas que escolhem vestir são um espetáculo ridículo. De todo tipo de inconformismo, esse é o mais fácil de praticar – e o mais seguro.

Mas mesmo nessa questão, existe um componente psicológico especial: observe as roupas dos hippies. Não têm o objetivo de deixá-los atraentes, mas sim grotescos. Não têm o objetivo de despertar admiração, mas sim escárnio e pena. Ninguém se faz parecer uma caricatura a não ser que queira que sua aparência implore: “por favor, não me leve a sério”.

(…)

Seus encantamentos histéricos de adoração do “agora” eram sinceros: o momento imediato é tudo o que existe para a mentalidade de nível perceptivo, vinculada ao concreto, animalesca: compreender “amanhã” é uma enorme abstração, uma façanha intelectual disponível apenas ao nível conceitual (ou seja, racional) da consciência.

Ayn Rand, palestra “Apolo e Dionísio”, 1969. Tradução nossa.

Baú: economia budista (E.F. Schumacher)

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Enquanto o materialista está fundamentalmente interessado em bens, o budista está interessado em liberação. Mas o budismo é “caminho do meio”, portanto de maneira nenhuma antagônico ao bem-estar físico. Não é a riqueza que se antepõe à liberação, e sim o apego à riqueza; não a fruição das coisas agradáveis, e sim a “fissura” por elas. A chave da economia budista, portanto, é a simplicidade e a não violência. De uma perspectiva econômica, a maravilha do modo budista de viver é a racionalidade última do seu padrão – o agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

Para um economista moderno isso é uma coisa muito difícil de entender. Ele está acostumado a medir o “padrão de vida” por quantidades de consumo anual, tendo como certeza indiscutível que o homem que consome mais “é superior” ao homem que consome menos. Um economista budista consideraria esse enfoque excessivamente irracional: desde que o consumo é apenas um meio para o bem-estar do ser humano, o objetivo deveria ser obter o máximo de bem-estar com o mínimo de consumo. Portanto, se o propósito da roupa é obter uma certa quantidade de calor e uma aparência atraente, o desafio é conseguir isto com o mínimo de esforço possível, isto é, com a menor destruição anual de roupas possível e com o auxílio de um design que envolva a menor destruição possível. Quanto menos destruição tiver provocado, mais está liberado para o esforço da criatividade artística. (…) O que acaba de ser dito sobre roupas se aplica igualmente a qualquer uma das necessidades humanas. A propriedade e o consumo de bens são um meio para atingir um fim específico, e a economia budista é o estudo sistemático de como atingir determinados fins com a menor utilização de recursos. O agradavelmente menor levando a resultados extraordinariamente satisfatórios.

A economia moderna, por sua vez, considera o consumo como o único e válido objetivo de toda a atividade econômica, tomando os fatores de produção – terra, capital e trabalho – como meros meios. A primeira, em resumo, tenta maximizar as satisfações humanas pelo padrão ótimo de consumo, enquanto a última tenta maximizar o consumo pelo padrão ótimo do esforço produtivo. É fácil perceber que o esforço necessário para sustentar um modo de vida que busca atingir o padrão ótimo de esforço produtivo é obviamente muito menor do que aquele dispendido para sustentar um sistema que quer atingir o máximo de consumo. Não devemos ficar surpresos, pois, que a pressão e a tensão da vida sejam muito menores, digamos, em Burma do que nos USA, a despeito do fato de que a quantidade de máquinas poupadoras de trabalho usadas no primeiro país seja infinitamente menor do que no segundo.

Simplicidade e não violência estão obviamente ligadas bem de perto. O padrão ótimo de esforço produtivo, que é produzir um alto grau de satisfação humana com uma taxa relativamente baixa de consumo, permite às pessoas viver sem grandes pressões e tensões, e as possibilita preencher a injunção básica do ensinamento budista: “pare de fazer infernizações, tente fazer o bom”. Uma vez que os recursos naturais são limitados em todas as partes do mundo, as pessoas usando esses recursos para satisfazer suas necessidades de forma modesta com certeza estarão menos propensas a agarrar as gargantas uns dos outros do que aquelas que dependem de uma maior taxa de utilização desses recursos. Igualmente, as pessoas que vivem em comunidades locais altamente suficientes estão muito menos propensas a se meter em violência em larga escala do que aquelas pessoas cuja existência depende de sistemas mundiais de comércio.

E.F. Schumacher, Economia budista, 1966. Tradução: Luiz de Rezende Puech, 2006.