Baú: reféns da modernistolatria

Extraído da edição 96 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Voltemos: como a Semana de Arte Moderna adquiriu o estatuto de Fato Maior? Simples de dizer, complicado de demonstrar. A Semana foi protagonizada por artistas variados, com saliência para Mário de Andrade e Oswald de Andrade (com o tempo, o primeiro foi canonizado, enquanto o segundo teve seu papel diminuído). Mas é claro que eles todos expressavam, em suas invenções, birras e vontades, um sentido que hoje se pode assimilar sem dificuldade à conta do projeto de poder da elite de São Paulo, província que já se preparava nos anos 20 para dominar o cenário econômico brasileiro – o que ocorreu com clareza dos anos 50 em diante –, província que então se ressentia da força simbólica exercida pelo Rio de Janeiro, mal ou bem o centro político e intelectual do Brasil, capital federal, sede da Academia Brasileira de Letras e residência de todo escritor de prestígio até então.

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Fechado este abraço que a força histórica comandada por São Paulo ia dando, nada restou fora de seu alcance: o modernismo, aquele exclusivamente ligado à Semana de 22 segundo a depuração que podemos chamar, sem maior rigor, de tropicalista (que excluiu os Menotti del Picchia e os Graça Aranha do cenário), o modernismo agora era a lente certa e única para ler tudo, do começo ao fim: da formação colonial, agora ressubmetida a avaliação, até o futuro, que já tinha sido alcançado e era, então, mera decorrência do que já estaria, para sempre, previsto e mesmo desempenhado pelos mártires do novo panteão. O mundo da invenção estética brasileira passou a viver essa aporia conceitual – tudo que vale é modernista, sendo que o modernismo ao mesmo tempo já aconteceu e é a coisa mais moderna que se pode conceber –, aporia cuja figuração banal aparece nos livros escolares e na crítica trivial com a patética sequência de termos pré-modernismo>modernismo>pós-modernismo, tomados como capazes de descrever tudo que o século XX (o XXI também, claro) já produzira, produzia e viria ainda a produzir. Essa aporia foi plenamente aceita e até naturalizada: todas as tentativas de invenção, em todos os campos, daí por diante, seriam quando muito atualizações de propostas ou de ações ou de desejos já plenamente configurados ou em Mário ou em Oswald. Fora disso, tudo era regressivo, conservador, caipira, regionalista, qualquer coisa assim de péssimo.

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Questão mais ampla, para meditação posterior: modernismo e tropicalismo passaram a ser os donos do campinho no Brasil, submetendo tudo ao Imperativo do Novo a Qualquer Custo. Tudo se mede então pelo Novo, colagens inesperadas, materiais imprevistos, abordagens inéditas, assuntos raros, tudo acompanhado por caretas e trejeitos para plateias embevecidas, já afinadas, ou plateias contrariadas, gente lamentavelmente antiga; o.k. Então, Mário sentiu-se à vontade para dizer que tudo de bom que havia era modernismo (com a preliminar de que modernismo era o que ele dizia que era), assim como, hoje, alguém – ponhamos aí o nome de Caetano Veloso – pode reivindicar que tudo que há de bom é tropicalismo (tudo aquilo que ele pensar e deliberar que seja tropicalismo).

Temos aí um fenômeno notável: artistas que são também pensadores da arte (os dois citados acima, sem dúvida) se convertem também em validadores de sua própria produção, sem qualquer necessidade de vozes que exponham o ponto de vista da recepção. E, justamente no meio desse caminho histórico, a crítica literária que funcionava em arena pública, o jornal, representando, ainda que mal, o polo da leitura, estiola e praticamente fenece, substituída pelo estudo acadêmico, que de regra circula apenas intramuros, em prosa de iniciados e publicações que pouquíssimos leem. Não aparece ninguém para opor resistência, nem para perguntar, por exemplo, se a gente não deveria desconfiar, pela esquerda, da impressionante afinidade, da irmandade profunda entre o bloco modernismo/tropicalismo e o chamado Mercado, os dois regidos pela mesma lógica do Novo a Qualquer Custo.

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Em entrevista para a revista Azougue, em 2007, o antropólogo e pensador Eduardo Viveiros de Castro fez, ou repetiu, um trocadilho nessa linha: imaginava-se que o Brasil era o país do futuro, mas o que ocorreu foi que o futuro virou o Brasil. Por quê?

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Ou, mais embaixo, é porque as iniquidades sociais, antes restritas ao Brasil e a certa América, agora se espalharam para centros urbanos que antes eram mais cuidadosos com a decência burguesa das relações republicanas? Ou é porque, como poderia dizer um discípulo de Adorno, em tom grave, pura e simplesmente o sonho socialista foi derrotado e o império da mercadoria alcançou tudo, homogeneizando o que antes era variedade, igualando os objetos, as culturas, as pessoas, sempre pelo mais baixo preço, como ocorre em todas as liquidações?

Luís Augusto Fischer, 2013 (Piauí).