Zeh Gustavo: Crise: o que faremos depois da escrotidão?

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A culpa não foi, tanto, minha: as cartas de janeiro é que deram a deixa. Valeu, Catarina Lara Resende (será ela parente do Otto, amigo do Nelsão, a quem este atribui a frase “O mineiro só é solidário no câncer”?) e suas Doses de escrotidão! Teve ainda o relato do apogeu e queda do Clube de Literatura Café no Cocô, por Cândido Magnus, um nome acima de qualquer suspeita. Houve as saliências de Natan Schäfer, citando José Paulo Paes: é sempre por essas que escrotos como nós geramos algo como “[…] a carne possuiu a carne” ou “nossa cabana tem furos no telhado”, em que se acusa a Lua de ser uma tremenda voyeuse. Então pediram, ah se pediram!

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O Conselho Editorial deixou passar mais esta: a terapia não está, nunca estará em dia — falta-me, além de fé na viabilidade de uma adimplência psicológica (!), o quinhentão mensal para minha autoelevação espiritual diante do mundo da classe média analisada. Mas, ao contrário da Matilde Campilho (aquieta, coração!), eu choro fácil. Isso equilibra um pouco as coisas?

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Já me apresentei, seção passada, mas faltou dizer que eu sou um cara meio escroto (e precisava?), daqueles apaixonados pelos boleros lúdicos e torpes de Aldir Blanc, pela cafajestice lírica dos filmes do Hugo Carvana, pela rouquidão gostosa da Zezé Motta e pelos palavrões da Dercy Gonçalves. Arte-xarope eu tento sequer nem comentar, quanto mais doar-lhe um roçar qualquer de meus sete sentidos.

À questão: não bastasse o sequestro de ao menos certos simulacros de escrotidão pela direita mais imbecil — a fascistada que devia estar em cana! —, noto haver ainda uma outra crise, fruto de um surto de (pseudo)moralidade nos discursos, sobretudo os virtuais. E onde falta escrotidão também há de faltar amor & arte: não há literatura sem flores de escatologia e cretinice, ou seja, escrotidão tirada a método e a quente; tampouco amor sem uma sacanagem de leve, essencial à construção de afetos, digamos, mais carnosos. A assepsia da vida, tudo controladinho como num aeroporto, é o maior dos precipícios.

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— Fiu! Já sei! Fazendo caras de intelectual fingindo que tem vida interior intensa, né, ô babaca?!

—Poupa meu saco, Passarinho, poupa meu saco! (…)

—Já sei! Fazendo caras de intelectual da geração perdida, fingindo que é agressivo e vingador, né, ô Hemingway de merda?

Carvana e Antonio Pedro riem de soslaio em certo momento dessa passagem antológica de Bar Esperança: o último que fecha, com Denise Bandeira nuíssima, Marília Pêra impecável de descolada, Pereio de Pereio e uma penca de gente-personagem em rota fácil de ser cancelada no mundo pós-escrotidão. Como a boa sem-vergonhice, acha-se grátis o clássico no YouTube.

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Bolívar vai à academia. Olho assustado, adio o quanto der a missão, mormente após trocarem o velho malhar por treinar, o que nos remete à antiga Melô do Romário: “Treinar pra quê, se eu já sei o que fazer?!”

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Erlândia taca o porrete em almas amesquinhadas pela busca do encontro flácido: somos, cada qual, um microacidente “[…] que é milagre / e desastre / na mesma medida”.

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Escrutinadores da Akadimia pululam na redessoci e amam um Jorge Aragão feito com caipirinha de 51, com um toque de análises sociológicas do novo BBB. Às vezes, misturam Belo a discurso massa-empoderadx e Bacardi Maçã. Denúncia: é no dia seguinte disso que boa parte dos artigos e papers são produzidos.

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Lembremos do que nos dizem os verdadeiros pulhas: crise é oportunidade!

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Baby, pode soar a cantada barata, mas é importante para o futuro da nossa relação: você já ouviu falar de caralhinhos voadores?

Dos búlgaros ao Brasil Poeira

Editorial extraído da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Abrimos oficialmente a temporada de rimar amor com dor, de perguntas como “com ou sem caracteres?” e das leituras de novos materiais para as próximas edições do nosso impresso, quase 14 anos circum-navegando de forma ininterrupta. Neste período (que engloba 176 edições), publicamos mais de 2 mil autores e autoras, 90% destes pela primeira vez em um veículo impresso. Alguns que por aqui passaram, inclusive, ultrapassaram a barreira da nossa inexpressividade e hoje são colunistas de jornalões e agitadores sazonais do Twitter-X, o que, muitas vezes, significa a mesma coisa (ao menos com remuneração bem melhor que o RelevO, que não volta cashback).

Não fazíamos um chamado público desde março de 2020, primeiros dias da pandemia. Recebemos, à época, aproximadamente 3 mil colaborações, o que resultou em um caos logístico e editorial. O que mudou de lá pra cá? Além de organizarmos melhor nosso fluxo de avaliações —acredite: estamos em dia com as leituras de janeiro de 2024 para trás —, também estamos muito mais esclarecidos com o que buscamos em nossas páginas. Basicamente, três fatores se desdobram em outras camadas:

  1. Textos bem escritos, ou seja, que respeitam as normas básicas da nossa língua ou as subvertem conscientemente, criando efeitos estéticos ou sinestésicos interessantes [geram beleza].
  2. Textos criativos, inesperados, imprevisíveis, que fogem das soluções mais comuns do nosso tempo. Textos que explicam menos e não duvidam da capacidade de compreensão do leitor.
  3. Textos simplesmente divertidos e criativos.

Naturalmente, somos surpreendidos com textos que não se encaixam nesses eixos. Conforme a nossa linha editorial, “não temos nenhuma restrição quanto ao tema, embora, a bem da verdade, estejamos um pouco cansados de literatura com a linha ‘escritor triste fumando em um bar’, ‘escritor triste escrevendo sobre escrever’, ‘poema sobre o valor da poesia’ e ‘meu amor não correspondido acaba de sair pela porta’. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados”.

Junto do chamado para publicação, também fizemos a devolutiva de mais de 700 textos recusados. Trata-se de um processo desgastante em níveis diversos: responder negativas (quem gosta de trazer más notícias?); tomar decisões injustas (e se desmotivarmos um talento genuíno?); e, naturalmente, ler – talvez o melhor verbo seja “enfrentar” – centenas de textos realmente indefensáveis. Também sabemos que um autor não selecionado tende a guardar algum rancor do veículo. Não acontece com todos, mas acontece. Resumindo: perdemos potenciais assinantes (capital financeiro), perdemos seguidores e entusiastas (capital simbólico).

Sempre reforçamos ao autor que fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser. Esclarecer isso não impede que recebamos algumas tréplicas na linha “Tudo bem, o texto x é um sucesso de público, talvez o problema não seja comigo…” ou “Sou jornalista há mais de 20 anos, tendo ganhado alguns prêmios de literatura com crônicas, contos e poesias. Escrevo diariamente crônicas esportivas para um portal parceiro da rede x, gostaria de saber mais detalhes do por que minhas obras não seriam publicadas, já que contém potencial literário”. É do jogo, é do jogo.

Escolhas editoriais, mesmo que guiadas por um farol bem estabelecido, nunca deixarão de ser subjetivas, ratificando a nossa posição de meros leitores de uma certa e vasta produção que chega até nós, de traduções de escritoras eslavas a textos que falam das ”Estradas de chão, violas, bandeiras / Terra de Tom, Tonico e Tião”.

Uma boa leitura a todos.

Zeh Gustavo: Cuidado: há um sambista na porta lateral!

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jards, o Macalé, já cantarolou: há um morcego, há um abismo na porta principal. Pega o fio: aos 15 anos nasci, sob o céu alaranjado da Gothan City literária, já desguiando para a música, para a roda de samba. E assim a margeei — por exemplo, publicando livros sem torná-los de fato públicos, essas especialidades do ramo! —, com a dignidade de um penetra convicto ao se dirigir sorrateiro à cozinha da festa de bacana atrás de um gole de conhaque. Ora me apresento, entortando Macala: há um sambista na porta lateral da literatura! E dela para a p. 5 deste RelevO — mandato curto, passa já!

Mó responsa: quem há de superar a verve bem urdida e humorada que faz da prosa da Amanda Vital, ombudswoman que sucedo, poema-crônica deste tempo tão certinho das ideias como o Simão Bacamarte do Machadão? Prometo tentar não ser mala, atributo honorável para todo escriba, mas vamolá: quantos textos literários citam um samba, um sambista sequer? De orelhada, recordo o João Antônio com seu Guardador dedicado a Cartola, livremente inspirado no episódio em que Stanislaw Ponte Preta encontra o vate de Mangueira a lavar carros na lindona Ipanema das bo$$as.

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Ao inaugurar este ombudsdito, na música me apoio para me acercar de palavras que dizem das de outrem, ante o diverso corpus textual de cada edição. E assim vumos diretos pra delegacia (bença, João da Baiana!) tratar da de dezembro e da parte que me cabe, neste literafúndio (ui!): a ilustra de Gilberto Marques nos fita, olhos cerrados, a se perfilar entre a arte cega que seria a expressão máxima do desenho posta a dialogar com a rasura da memória, como sustentou Derrida. Bolívar Escobar dá rasante sobre a história do pensamento pegando de mote… uns memes clássicos! E eu achei bonito, viu? Também jogo no time da não metafísica.

O relato de Gumbrecht, em tradução de Bellin, sobre seu almoço com Foucault evoca a (des)graça dos encontros que morrem no quase da expectativa com que se forjaram. O que se teria sucedido de nossas vidinhas se eles vingassem, os danados? Não sei você, leitor(a) — eu fujo das desinências neutras, sobram-lhes bons intentos, falta-lhes musicalidade e a mim, ainda, a crença de que tornam melhor o mundo do deus Algoritmo e do sushi como área de interesse no Tinder —, mas vi tristeza, ainda, nas sugestões niilisterárias de Lucio Carvalho (juro caçava um delirium tremens se lesse um livro ilustrado por selfies!); e no Waltel milionário do ritmo de Felippe Aníbal. Ou seria amargura, termo em desuso? Aliás, amor e paixão, sei lá também, viu, Giovana Erthal, vale entrar na fila? Lacrar, na rede, cagando regra de relacionamento tem dado mais like, mormente se o relacionamento for do eu para com ele mesmo, o que a literatura médica anterior à pós-contemporaneidade sempre considerou como esquizofrenia. Vale também ouvir e cantar pagonejos em seitas comandadas por DJs. Ah, misturo tudo mesmo e, como reza o anúncio-manifesto da cZara: Foda-se o frete, camarada! Aqui é pirataria, embora eu ainda compre e (pouco) abandone livro pela meiuca, Enclave! O espaço vai curto: teve ainda poema (bem) ornado por Maria Joanna; Mylena Queiroz em tom ensaístico a discorrer dos recadeiros da terra Nego Bispo e Conselheiro; e Mistral fechando no duro do poético uma edição que flertou bastante com a aridez.

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Música — sentido-algo a que o velho Schopa se apegou a fim de nomear o mistério maior das coisas. Meu amor é bifurcado como o título do último Jards: poesia & música — se bem amalgamadinhas, hum… Sigamos a errar o (com)passo, próxima edição, Carnaval a vir?

2024: ficção de que começa alguma coisa

Editorial extraído da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Um periódico impresso e de literatura: não precisamos nos alongar muito sobre o pressuposto de esta ser uma forma duvidosa de lidar com a presença e a contemporaneidade. Um jeito arredio que esconde, quem sabe, uma forma de preservar as memórias e de fugir da cultura do registro-pelo-registro. Pode não ser nada disso, e estamos apenas a empilhar textos ou justificar uma continuidade tal qual um colecionador de coçadores de costas, DVDs ou cadeiras em miniatura.

A síntese é: temos uma relação sincronizada com o tempo. Entre os dias 20 e 24 de cada mês, selecionamos os textos da próxima edição. Todo dia 25, nos mantemos nos preparativos técnicos, aquilo que chamamos de fechamento editorial. Dia 26… Temos que estar com a gráfica em dia. Entre 27 e 29, o Jornal tem de ir para a impressão. No primeiro dia útil do mês, Correios. Em 2023, apenas duas edições não respeitaram essa dinâmica: março e novembro (a última, por conta do feriado). As edições não são enviadas depois do dia 4 há mais de três anos.

Para que a nossa linha fina de atividades funcione, não podemos passar um dia útil sem arrecadar com assinantes e anunciantes. Mais do que um relógio, precisamos ser uma pequena caixa registradora literária. Para seguir a esteira que corremos regularmente, especializamo-nos em aprimorar etapas e nos tornamos obcecados por procedimentos. Em termos psicológicos, talvez sejamos um Jornal em mania. E 2023 foi um desafio tremendo-tremendo para a nossa forma de articular o caos natural do mundo.

Tivemos prejuízo em sete dos 12 meses do ano. Em números mais diretos, o RelevO caiu de 1.020 assinantes em dezembro de 2022 para 920 em janeiro de 2024. Especulamos diversas justificativas ao longo do ano passado e acreditamos que não seja propriamente uma punição editorial. Temos produtos gratuitos, como a Enclave e a Latitudes, com shares muito bons, ao passo que os retornos de quem nos escreve ou segue nos assinando nos mobiliza para seguir fazendo o Jornal com os conteúdos de que gostamos.

Muitos dos assinantes que não renovaram conosco seguem consumindo nossas newsletters e até compartilhando esses materiais, o que nos leva a uma reflexão constante sobre o nosso modelo de negócio. Se fazemos conteúdos que interessam ao nosso público digital da base do Substack (aproximadamente 7 mil), mas não conseguimos assinaturas para o impresso — que paga nossas contas e os produtos editoriais que produzimos —, o que faremos se perdermos mais 100 assinantes em 2024?

Lógico que reconhecemos o RelevO como um periódico cabeça-dura: não arrecadamos dinheiro público; não vendemos espaço editorial; recusamos três propostas recentes do mercado de apostas on-line; temos um senso de humor estranho; não casamos assinatura com publicação de autor (aqui no gênero certo mesmo, pois 100% dos casos são homens)… Ainda assim, seguimos e conseguimos isso graças a uma base sólida de assinantes e anunciantes. Essa base segue nos apoiando, investindo, distribuindo e fazendo o Jornal atingir sua natureza essencial: chegar em leitores de literatura.

Em 2024, estaremos mais presentes em feiras e festivais. Ampliaremos a cobertura da Latitudes, que também trará notícias deste circuito de feiras e festivais. Produziremos mais conteúdo especial para o site. Abriremos a nossa lojinha, com produtos como camisetas, canecas e bolsas personalizadas. Tudo isso precisa muito do assinante do impresso, o nosso carro-chefe logístico, responsável por garantir a continuidade de nossas atividades. Estamos otimistas.

Uma boa leitura a todos.