Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:
Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.
Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?
Raymond Chandler, carta a seu agente literário, 1953. Tradução de Bráulio Tavares.
Mais informações – inclusive sobre o uso do termo “Google” em 1953 – neste link.
Não é repeteco! Na última Enclave, acompanhamos a péssima relação entre Billy Wilder e Raymond Chandler na condição de diretor e roteirista de Pacto de Sangue, respectivamente.
Como um filme que, diante do sucesso, transforma-se em franquia, trazemos hoje uma segunda parte para a extensa lista de azedumes de Ray. Algumas das cartas de Chandler podem ser encontradas nas edições do autor publicadas no Brasil pela Alfaguara, sempre traduzidas por Bráulio Tavares, responsável por uma excelente seleção de material.
O documento que norteia nosso evento de hoje sequer foi enviado. Trata-se de uma carta escrita por Chandler e endereçada a ninguém menos que Alfred Hitchcock. Eles colaboraram – ou teriam colaborado – em Pacto sinistro (Strangers on a train, 1951; essas traduções…).
Motivado justamente pela qualidade de Pacto de sangue (e após algumas recusas), Hitchcock pinçou Chandler para escrever o roteiro de Pacto sinistro, uma adaptação do romance de Patricia Highsmith (Strangers on a train, 1950, publicado no Brasil).
Como um Renato Gaúcho empapuçado, o diretor inglês provavelmente superestimou a própria capacidade de converter a má vontade que bloqueia o talento alheio. “Dá no pai que o pai resolve”, ele deve ter refletido. Chandler não se encantava com o romance, mas topou. Eles começaram a se reunir em agosto de 1950.
No entanto, quanto mais os dois se encontravam, pior era o convívio. Hitchcock gostava de conversar; Chandler não gostava de nada. Por fim, conta-se que o escritor, em referência ao diretor, disse: “Look at the fat bastard trying to get out of his car!”, que preferimos não traduzir para manter a poesia intacta. O fat bastard ouviu.
Chandler chegou a terminar sua versão, prontamente descartada. Ele a entregou e não obteve retorno de Hitchcock. O diretor seguiu em frente.
Na primeira reunião com Czenzi Ormonde, a nova roteirista, Hitchcock jogou o trabalho de Chandler no lixo, isto é, literalmente, não simbolicamente. A criação do roteiro ainda exigiria uma força-tarefa para completá-lo antes das gravações (a segunda unidade começou antes).
Chandler teve acesso ao roteiro final – não conseguimos descobrir como ou por que razão (teria alguém enviado por engano? Foi uma provocação?). O resultado disso frutificou a carta que mencionamos, datada em 06/12/1950 – e que, repetimos, não chegou a ser enviada.
Nela, o escritor, provavelmente ébrio, destila em quatro páginas todo o seu arsenal talvez azedo, talvez amargo, com certeza nada doce. Eis alguns trechos em português (aqui, partes em inglês; não encontrei a versão completa – comprem o livro).
Caro Hitch:
Apesar de sua ampla e generosa indiferença com minhas tentativas de comunicação sobre o roteiro de Pacto sinistro (…), eu sinto que devo, só para ficar registrado, lhe repassar alguns comentários sobre o que foi considerado o roteiro final. (…) O que não posso entender é que você permita que um roteiro que afinal de contas tinha alguma vida e vitalidade possa ser reduzido a uma tal massa amorfa de clichês, um grupo de personagens sem rosto (…). É claro que você deve ter tido suas razões, mas, para usar uma frase cunhada por Max Beerbohm, seria preciso “uma mente menos brilhante do que a minha” para adivinhar quais foram.
Sem ligar muito para a questão de como meu nome vai aparecer na tela durante os créditos, eu não tenho o menor receio de que alguém venha a pensar que eu escrevi essa coisa. Eles vão saber muitíssimo bem que não fui eu. Eu não iria me incomodar nem um pouco se você tivesse produzido um roteiro melhor – pode acreditar, não iria mesmo. Mas se o que você queria era algo escrito como leite desnatado, por que diabo me procurou, pra começo de conversa? Que desperdício de dinheiro! Que desperdício de tempo! Dizer que eu fui bem pago não justifica nada. Ninguém pode ser adequadamente pago se está perdendo seu tempo. (…)
E assim a carta se move por outras três páginas, cheias de argumentos que justifiquem as afirmações iniciais. As gravações de Pacto sinistro terminaram em março de 1951; o filme foi lançado no fim de junho.
Pouco antes do lançamento, Hitchcock e Chandler finalmente concordaram em algo: não usar o nome do escritor nos créditos, em razão de sua participação nula no projeto (para além do folclore). Nem isso ocorreu, afinal a Warner Bros. queria aproveitar o capital simbólico do escritor e manteve Raymond Chandler na ficha técnica.
Os leitores são de tipos muito variados e de variados graus de cultura. O aficionado por enigmas, por exemplo, encara a história [de mistério] como um duelo de inteligências travado entre ele e o autor; se adivinhar a solução, ele se considera vencedor, mesmo que não possa documentar seu acerto ou justificá-lo através de uma argumentação sólida. Existe algo desse espírito competitivo em todos os leitores, mas o leitor em que essa atitude é predominante não considera nenhum valor além desse jogo de adivinhar a solução. E existe também o leitor cujo único interesse é no que existe de sensacional, de sádico, de cruel, de sanguinário, e na presença da morte. Também nesse caso existe um pouco disso em cada um de nós, mas o leitor em que isso predomina não vai dar a menor atenção à chamada ‘história de dedução’, por mais meticulosa que esta seja. Um terceiro tipo de leitor é aquele-que-se-preocupa-com-os-personagens; essa leitora não liga muito para a solução; o que realmente a deixa chateada é a possibilidade de que a heroína possa ter o pescoço torcido na escada em espiral. Em quarto lugar, e mais importante, está o leitor intelectual e com cultura literária que lê mistérios porque eles são quase que o único tipo de ficção que não está querendo dar um passo mais largo que as pernas. Este leitor quer saborear estilo, caracterização, reviravoltas de enredo, todas as virtuosidades da escrita, muito mais do que se importar com a solução. Não se pode satisfazer completamente a todos os leitores. Fazer isso teria que envolver elementos que são contraditórios. Eu, quando estou no papel de leitor, quase nunca tento adivinhar a solução do mistério. Eu simplesmente não considero que o duelo entre mim e o autor seja importante. Para ser franco, eu vejo isso como o divertimento de um tipo inferior de mente.
Raymond Chandler, “Doze anotações sobre a narrativa de mistério”.
Ensaio escrito por Chandler em seus cadernos de anotações e nunca publicado em vida. Retirado da edição Later Novels & Other Writings (The Library of America, 1995) e traduzido por Bráulio Tavares em seu primoroso trabalho de seleção e tradução das obras do autor americano para a Alfaguara. “Doze anotações sobre a narrativa de mistério” está inserido no romance A Dama do Lago (Alfaguara/Cia. das Letras, 2014).
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