Quando desposou George Smiley, pouco antes do fim da guerra, Lady Ann Sercomb qualificou-o, ante os seus atônitos amigos de Mayfair, de comovedoramente vulgar. Ao abandoná-lo dois anos depois por um automobilista cubano, ela anunciou enigmaticamente que, se não o tivesse deixado então, jamais poderia tê-lo feito; e o visconde Sawley fez uma visita especial a seu clube para comentar que o gato botara as unhas de fora.
Esse comentário, que durante uma curta temporada foi tomado por um mot, só pôde ser entendido pelos que conheciam Smiley. Baixote, gorducho e de índole tranquila, ele parecia gastar muito dinheiro com roupas de mau gosto, que lhe pendiam em volta da figura atarracada como a pele de um sapo engelhado. Sawley, de fato, declarou no enlace que “Sercomb se uniu a uma rã-touro numa rajada de sudoeste”. E Smiley, sem saber dessa descrição, atravessara gingando a nave lateral da igreja em busca do beijo que o converteria em príncipe.
Era ele rico ou pobre, camponês ou clérigo? De onde ela o fora tirar? A incongruência da união era acentuada pela beleza indiscutível de Lady Ann, o mistério estimulado pela desproporção entre o homem e sua noiva. Mas a bisbilhotice tem de ver suas personagens em branco e preto, atraviá-las de pecado e motivos facilmente transmitidos na estenografia da conversação. E assim, Smiley, sem escola, sem pais, sem regimento nem ofício, sem riqueza nem pobreza, viajou sem rótulos no vagão do condutor do expresso social e logo se transformou em bagagem perdida, destinada, quando o divórcio chegou e foi embora, a permanecer sem dono na prateleira empoeirada das notícias do dia anterior.
John le Carré, O Morto ao Telefone, 1961 (ed. Círculo do Livro, ano desconhecido).
1. O livro A Spy Among Friends, de Ben Macintyre, vai se tornar uma minissérie estrelada por Guy Pearce (L.A. Confidential; Memento) e Damian Lewis (Billions; Era uma vez em Hollywood).
2. Nunca publicado no Brasil, A Spy Among Friends é um belo livro. Trata do agente duplo Kim Philby (mais sobre ele logo abaixo) e de sua amizade com Nicholas Elliott. Ambos eram espiões do MI6 durante a Guerra Fria. Portanto, a notícia é animadora.
3. Já usamos um trecho de Agente Zigzag, do mesmo autor, na Enclave #78. Este cobre a história de Eddie Chapman, agente duplo durante a Segunda Guerra Mundial – e foi publicado no Brasil pela Record, em 2010. Chapman era um marginal beberrão e picareta extremamente ativo: todas esses traços o transformaram em um grande espião a serviço dos Aliados, enganando o serviço secreto alemão com consistência. Agente Zigzag também é um baita livro de não ficção.
4. Também já tratamos de outro livro de Macintyre na Enclave: Adam Worth: O Napoleão do Crime, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2000. Worth foi um ladrão absoluto – não só o Napoleão, mas também o Pelé do crime. Brilhante, calculista e incrivelmente não violento, ele estendeu seu portfólio de atividades irregulares a diversos países ainda no século 19, inspirando o prof. Moriarty de Arthur Conan Doyle. Detalhamos a trajetória de Adam Worth em duas partes: 1 e 2. Naturalmente, consideramos O Napoleão do Crime outro ótimo livro.
5. Agora sim, de volta a Kim Philby. A sua história é uma das mais espetaculares do século 20, afinal Philby é um dos maiores traidores da história. Também já a detalhamos neste enclave, mais especificamente na edição #15. Com o perdão do autoplágio:
Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.
Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.
Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos.
6. A trajetória de Philby (e dos “Cambridge Five“) exclama por uma adaptação digna. Se a minissérie anunciada dará conta disso, não sabemos; mas o ânimo é justo. Desde que li A Spy Among Friends, torcia para que alguma produtora endinheirada abraçasse a tarefa.
7. Sobre espiões na Guerra Fria, O Espião Inglês (The Courier) foi finalmente lançado este ano, após uma leva de atrasos por conta da pandemia. Dirigido por Dominic Cooke e estrelado por Benedict Cumberbatch, o filme se ancora na história real de Greville Wynne, empresário-tornado-espião que chegou a ser descoberto – e preso – pela KGB. No momento, está disponível no Prime Video. É um belo filme, ao menos para quem se anima com a temática.
8. Curiosamente, O Espião Inglês é o terceiro filme em que Cumberbatch se envolve com espionagem – que eu me lembre. N’O Jogo de Imitação(2014), no qual interpreta Alan Turing, inclusive, há uma mistureba narrativa com os espiões-traidores de Cambridge, nesse caso envolvendo John Cairncross (“mistureba narrativa” porque, ao contrário do que o filme retrata, a relação de Cairncross com os soviéticos só viria a ser descoberta muito depois da Segunda Guerra).
9. O outro filme? Nada menos que O Espião que Sabia Demais(Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), uma beleza contemplativa – ou seja, lenta – adaptada do romance homônimo (1974, publicado no Brasil pela Record, 2012) de John le Carré (1931-2020), uma lenda da narrativa de espionagem. Como se sabe, ele próprio foi um agente do MI5 e do MI6 nas décadas de 1950 e 1960. O Espião que Sabia Demais (tanto filme como livro) aborda a espionagem de maneira muito mais realista, característica típica da obra de le Carré.
10. A carreira de John le Carré na espionagem foi destruída por conta da traição de… Kim Philby. A Spy Among Friends deve estrear no segundo semestre de 2022.
Um fato bônus e perifericamente relacionado: encontrei o livro abaixo, de 1946, capa dura, extremamente conservado, por R$ 22,61. W. Somerset Maugham (1874-1965) também trabalhou no serviço secreto inglês, mas ao longo da Primeira Guerra Mundial. O Agente Britânico(Ashenden: Or the British Agent), parcialmente autobiográfico, foi publicado em 1927.
Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.
Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.
Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos, tornando-se um dos traidores mais famosos da história. “Para trair, você primeiro precisa pertencer. Eu nunca pertenci”, afirmou ele próximo de sua morte, em 1988. Uma das carreiras arruinadas pelo agente duplo foi a de John le Carré, que se utilizaria dessa experiência para escrever O Espião que Sabia Demais (1974), muito bem adaptado ao cinema em 2011.
Conturbado, enigmático ou apenas consistentemente filho da puta, Kim Philby comandou tragédias familiares, envolvendo várias esposas e várias esposas somadas a tragédias familiares. Sempre fiel à União Soviética, ele passou seus últimos anos em Moscou, supostamente melancólico e desiludido – e certamente embriagado.
Repleto de medalhas (e sem arrependimentos), teve um funeral de herói. Ele fazia parte do círculo hoje conhecido como Cambridge Five, cujos agentes duplos haviam sido recrutados ainda antes da Segunda Guerra Mundial (uma trama que perpassa o enredo do filme Jogo de Imitação, 2014, porém sem grande precisão histórica).
Sobre Philby, A Spy Among Friends (2014), de Ben Macintyre, é um belíssimo livro. O ex-colega John le Carré assina o posfácio.
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