Extraído da edição 114 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
Certa vez, convidaram-me para um casamento; a noiva sugeriu que eu viajasse de Nova Iorque para norte no carro de dois outros convidados, um casal cujos elementos davam pelos nomes de Mr. e Mrs. Roberts e que eu não conhecia. Era um dia frio de abril, e, durante a viagem de carro até ao Connecticut, os Roberts, um casal de quarenta e poucos anos, pareceram-me bastante simpáticos — não eram pessoas com quem me apetecesse passar um fim de semana prolongado, mas não eram maus de todo.
No copo-d’água, todavia, o álcool correu a rodos, e os meus motoristas emborcaram, diria eu, um bom terço do total. Foram os últimos a abandonar a festa, cerca das onze da noite, e a ideia de os acompanhar deixou-me alarmado; sabia que eles estavam bêbedos, mas não me apercebera até que ponto. Tínhamos percorrido uns trinta quilómetros, com o carro a guinar bastante e Mr. e Mrs. Roberts a insultarem-se mutuamente, fazendo uso da mais extraordinária linguagem (tratou-se, sem dúvida, de um momento saído de Quem tem medo de Virginia Woolf?), quando Mr. Roberts, como seria de esperar, se enganou no caminho e se perdeu numa estrada rural sombria. Eu pedi-lhes uma e outra vez, e por fim pus-me a suplicar que parassem o carro e me deixassem sair, mas eles estavam tão embrenhados nas suas invetivas que me ignoraram. No fim de contas, o carro imobilizou-se de forma espontânea (temporariamente) quando foi embater contra o tronco de uma árvore. Aproveitei a oportunidade para sair de rompante pela porta traseira e corri para o meio da floresta. Pouco depois, o amaldiçoado veículo arrancou, deixando-me sozinho na escuridão gélida. Estou certo de que os donos do carro nem deram pela minha falta; sabe Deus que eu não senti a falta deles.
Truman Capote, Uma candeia numa janela. Música para camaleões (1980, ed. Livros do Brasil; trad. Paulo Faria, 2015).