James Clavell, Tai-Pan e a beleza do romance histórico

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Imagine o seguinte roteiro de vida:

  1. Lutar em uma guerra mundial, deslocado em outro continente.
  2. Ser ferido e capturado, então passar anos na prisão do inimigo em condições deploráveis.
  3. Sobreviver, mudar de país e consolidar-se como roteirista em Hollywood.
  4. Escrever filmes clássicos e aclamados da Era de Ouro americana.
  5. Obter sucesso também como diretor.
  6. Por fim, conquistar a literatura com romances épicos que, a despeito de suas mil páginas, tornam-se best-sellers mundiais.

Algumas pessoas realmente fizeram de tudo, e James Clavell é uma delas.

James Clavell (BBC).

Sobre viver e sobreviver

[por Deus, que jogo de palavras tenebroso de sarau de poesia adolescente – “escrevi um poema; que ler?”; não, lógico que não! eu pararia de ler aqui. mas não desistam do texto.]

Na última Enclave, do fim de novembro, mencionamos brevemente a alegria de ter encontrado Tai-Pan (1967), romance deste escritor/roteirista/diretor/veterano/prisioneiro de guerra. Britânico, Clavell nasceu na Austrália, uma vez que seu pai, que servia à Marinha Real, lá estava designado. Ainda bebê, James – apelido de infância, pois seu nome era, na verdade, Charles Edmund Dumaresq [Clavell] – retornou à Inglaterra com a família, tendo crescido em Portsmouth.

Recrutado pela Artilharia Real aos 19 anos (queria ser piloto na Força Aérea, mas sua visão não era perfeita para tal), já com a Segunda Guerra estourando, Clavell foi enviado a Singapura em dezembro de 1941 para enfrentar japoneses após o ataque a Pearl Harbor. O navio em que viajava naufragou, e sua tripulação foi resgatada por um barco holandês que rumava à Índia. A série de problemas mal havia começado.

Após desembarcarem no porto mais próximo possível, Clavell levou um tiro no rosto e vagou na selva por alguns dias. Foi resgatado por uma aldeia malaia, mas foi capturado pelos japoneses. Direcionado a uma prisão de guerra em Java, Indonésia – então ocupada pelo Japão –, depois foi transferido à Prisão de Changi, em Singapura.

  • Quem lembra de Merry Christmas, Mr. Lawrence, com David Bowie e Ryuichi Sakamoto? Trata-se da mesma prisão representada no filme. O longa-metragem foi baseado no relato de Laurens van der Post, preso lá – assim como James Clavell. Não sabemos se eles conviveram juntos, até porque Clavell passou mais tempo na prisão de Singapura. Mas é o suficiente para enfiarmos Bowie & Sakamoto em qualquer coisa. Nota sobre a nota: van der Post pode ter exagerado boa parte de seus relatos.

Lá permaneceu até o fim da Guerra. Sua joss ajudou e Clavell sobreviveu – algo estatisticamente muito improvável (1 em 15, aproximadamente), uma vez que a Prisão de Changi não era um complexo muito bacana, que dirá numa guerra mundial, que dirá nas mãos de seu inimigo.

  • Na entrevista à BBC que linkamos mais acima, fica evidente o desapego cósmico de Clavell no que tange à sua sobrevivência, atribuindo-a continuamente a mero karma (ou joss).
Aliados recém-liberados em Changi, 1945 (WikiCommons).

De volta à Inglaterra, James Clavell iniciaria a segunda parte de sua vida. Após se envolver (e se casar) com a atriz April Stride, ele se interessaria pelo cinema, área em que não daria certo por alguns anos. Sem conseguir produzir ou vender roteiros, mudou-se primeiro para Nova York, depois para Los Angeles. Enquanto isso, pagava as contas como carpinteiro.

Então Clavell conseguiu vender alguns roteiros. Embora nenhum tenha sido filmado, isso ao menos lhe permitia sair da etapa zero. A virada de chave viria com o roteiro de The Fly (1958), baseado no conto de ficção científica de George Langelaan. Robert L. Lippert, que comandava a produtora – Regal Pictures, subsidiária “lado B” da Fox –, apostara em Clavell justamente por conta de um roteiro não filmado que o britânico havia escrito.

  • The Fly: a mesma história que Cronenberg gravaria a seu modo em 1986, estrelando Jeff Goldblum.

The Fly, primeiro roteiro de James Clavell a sair do papel, foi um sucesso considerável de público. O trabalho renderia outras oportunidades com Lippert e Kurt Neumann, que havia dirigido The Fly. Pouco a pouco, Clavell começava a dirigir seus próprios filmes.

O início da década seguinte mudaria este britânico de patamar. Em 1960, durante uma greve de roteiristas, Clavell decidiria escrever suas memórias de prisioneiro de guerra. Estas foram publicadas em 1962 sob o título King Rat (Rato Rei no Brasil).

  • Clavell o fez em 12 semanas, basicamente obrigado pela mulher, que num primeiro momento o trancou no quarto até que ele começasse a escrever seu livro (ou supostamente por isso…). Previsivelmente, ela tinha razão.
  • Vale lembrar: 1962, o ano dos gênios. Coincidência???

King Rat vendeu bem, abriu portas e aparentemente despertou o gênio literário de Clavell. No ano seguinte, sua provável maior contribuição ao cinema: escreveria nada menos que The Great Escape (Fugindo do Inferno), dirigido por John Sturges e estrelado por Steve McQueen.

  • Por si só, viver não deve garantir a qualidade da escrita. Mas alguma alma honesta há de duvidar que ajuda?

Diante do acúmulo de sucessos, James Clavell parou para escrever. Realmente escrever. “O segundo romance separa os meninos dos homens”, dizia. Com o dinheiro de King Rat, ele sentou, pesquisou, viajou e compôs as 800 páginas que (finalmente) nos trazem à Enclave de hoje: Tai-Pan, publicado em 1966.

Tai-Pan, Tai-Pan, Tai-Pan!

Conforme explicamos na Enclave anterior, cheguei em Tai-Pan ao procurar romances que se passassem em Hong Kong. Me surpreendeu nunca ter ouvido falar em James Clavell até então, tendo em vista que seus livros – principalmente Xogun (1975) – foram verdadeiros fenômenos ocidentais.

Diante da proporcional baixa quantidade de conteúdos a respeito de sua obra na internet (críticas, vídeos, análises, punhetagem em geral), senti certo descompasso entre o sucesso passado e o reconhecimento presente. Isso costuma indicar que (1) o autor está em baixa por quaisquer motivos da nossa cultura mutável e frenética [normal e natural] – talvez até pelo cansaço do próprio sucesso – e, em algum momento, será redescoberto; ou (2) sua obra já chegou onde podia chegar e é isso mesmo, não haverá retorno triunfante.

Enfim, este nem é o ponto principal, embora tenha atiçado a curiosidade. O fato é que Tai-Pan, na opinião deste editor (portanto desta newsletter, portanto deste planeta), é um livraço, que já nos convenceu completamente a nos afundarmos em toda a Saga Asiática de Clavell, um notório apaixonado por esse continente (tal qual Trevanian).

No livro em questão, acompanhamos Dirk Struan, taipan da Casa Nobre em Hong Kong, 1841. Um taipan é um grande comerciante estrangeiro, líder de seu negócio na China ou em Hong Kong.

  • Relacionado: ‘The Taipan’, por W. Somerset Maugham, 1922.

Assim, também acompanhamos a colonização de Hong Kong, recém-entregue à Inglaterra após a Primeira Guerra do Ópio e o Tratado de Nanquim (hoje considerado pela China como um dos Tratados Desiguais, marcando o início de seu “século de humilhação”). Há um elemento náutico permeando toda a narrativa, inclusive com um belo trecho relacionado à adoção dos barcos a vapor. Assim, sentimos como é navegar em 1841: o cenário, a tensão, o nojo (imagina o cheiro…).

Diversa, verde, disruptiva: conheça a startup British East India Company (EIC) e seu ópio. Patna, India, aprox. 1850 (litografia).

Naquele ambiente, vivem ingleses oportunistas, chineses oportunistas, piratas, visionários otimistas, proselitistas cretinos, mafiosos locais, comerciantes genuínos. Ou seja, quem diria, uma sociedade – tão bem representada neste romance histórico.

O escocês Struan, macaco de pólvora com apenas sete anos na Batalha de Trafalgar, é por si só um protagonista fantástico. Essa mistura de CEO, comerciante, traficante de ópio e político resulta em um sujeito duro e resoluto, mas perspicaz o suficiente para abraçar costumes locais antes de qualquer outro inglês.

Tal configuração – um ocidental adotando costumes chineses a despeito do absoluto julgamento de seus pares – é um dos elementos mais envolventes do romance. Struan é apaixonado por uma chinesa, toma banho, usa roupas limpas e obriga sua tripulação a lavar as mãos (e a bunda…). Para seus conterrâneos, isso faz dele um diabo pagão. Entre os chineses é mais um bárbaro.

Seu maior concorrente é Tyler Brock, taipan da Brock & Sons. Ambos têm filhos, e o crescimento destes é um dos grandes enredos da trama. Casas, dinastias, sucessão, comércio e politicagem: a sensação é parecida com a de ler Duna, de Frank Herbert, lançado um ano antes. Sem minhocas gigantes…

Tai-Pan é apaixonante porque transborda capricho. Recriar toda uma sociedade num romance histórico é ainda mais difícil que inventar uma do zero. É preciso manter alicerces históricos e hábitos coerentes. Inclusive, entre vários outros problemas, por exemplo, a malária é um grande desafio daquela civilização.

Em sua saga, Clavell visivelmente se esforçou. Estilisticamente, não se trata de um Nabokov (e quantos Nabokov existem, não é mesmo?). Ainda assim, Tai-Pan conquista de imediato – na página 40 você já sabe que ficará até a 800ª –, impondo-se pela robustez de seu universo, tão detalhado quanto amarrado, e pela caracterização impecável.

[Xogun, de 1152 páginas] não é um livro longo, porque meu ponto é: [o livro] é chato? E a resposta é: absolutamente não. Tem algo que te faça continuar a virar a página? E as pessoas me dizem que, quando pegam o livro, se assustam com o tamanho – “eu nunca vou terminar isso, meu Deus!”. E eu falo: “ok, por favor, tudo que te peço como contador de história é – por favor – me dê 15 minutos de sua atenção plena. Se eu não te persuadir em 15 minutos, então falhei”. (Fonte)

Seguimos entusiasmados com James Clavell. Já nos estendemos e permanecemos, agora com Casa Nobre (1981), narrativa que se desenvolve em 1963. Que boa joss.

Baú: Alleta Sullivan

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Contexto: “Em novembro de 1942, durante a batalha de Guadalcanal, que se estendeu por três dias nas ilhas Salomão, o USS Juneau foi atingido por dois torpedos japoneses e afundou. Morreram 687 homens, entre eles os cinco irmãos Sullivan, que se alistaram dez meses antes, todos ao mesmo tempo, acreditando que, juntos, serviriam melhor ao país. Dois meses depois de seu falecimento, tendo ouvido rumores preocupantes sobre eles, sua mãe, Alleta Sullivan, enviou ao Departamento Pessoal da Marinha uma carta comovente, solicitando informação. Logo recebeu resposta, mas não do Departamento, e sim do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. A tragédia dos Sullivan levou à criação da Política do Sobrevivente Único, segundo a qual as Forças Armadas americanas dispensam do serviço os irmãos de um soldado morto em combate”.

Prezados senhores:

Escrevo-lhes porque parece que meus cinco filhos morreram em combate no mês de novembro. Uma conhecida minha recebeu uma carta do filho, contando que ele ouviu dizer que meus cinco filhos tinham morrido.

A notícia se espalhou pela cidade, e estou preocupada. Meus cinco filhos se alistaram juntos um ano atrás, em 3 de janeiro de 1942. Estão no cruzador USS Juneau. A última vez que eu soube deles foi em 8 de novembro. Quer dizer, a carta era datada de 8 de novembro, Marinha americana.

Eles se chamam George T., Francis Henry, Joseph E., Madison A. e Albert L. Por favor, digam-me a verdade. No dia 12 de fevereiro, devo batizar o USS Tawasa, em Portland, Oregon. Mesmo que tenha acontecido alguma coisa com meus cinco filhos, vou batizar o navio, porque essa é a vontade deles. Sinto muito incomodá-los, mas estou muito preocupada e preciso saber a verdade. Por favor, digam-me. Foi duro dar cinco filhos para a Marinha de uma só vez, mas estou orgulhosa de meus meninos por eles poderem servir e ajudar a proteger o país. George e Francis serviram durante quatro anos no USS Hovey, que tive o prazer de visitar em 1937.

Estou muito feliz, porque a Marinha me concedeu a honra de batizar o USS Tawasa. Meu marido e minha filha vão a Portland comigo.

Atenciosamente,

De Alleta Sullivan para a Marinha Americana, 1943 (Cartas Extraordinárias. Org.: Shaun Usher. Trad.: Hildegard Fest, Companhias das Letras, 2013).

Espionagem, traição, adaptação

Extraído da edição 102 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Selo soviético em homenagem a Kim Philby, o traidor (muito) inglês. [WikiCommons]

1. O livro A Spy Among Friends, de Ben Macintyre, vai se tornar uma minissérie estrelada por Guy Pearce (L.A. Confidential; Memento) e Damian Lewis (Billions; Era uma vez em Hollywood).

2. Nunca publicado no Brasil, A Spy Among Friends é um belo livro. Trata do agente duplo Kim Philby (mais sobre ele logo abaixo) e de sua amizade com Nicholas Elliott. Ambos eram espiões do MI6 durante a Guerra Fria. Portanto, a notícia é animadora.

3. Já usamos um trecho de Agente Zigzag, do mesmo autor, na Enclave #78. Este cobre a história de Eddie Chapman, agente duplo durante a Segunda Guerra Mundial – e foi publicado no Brasil pela Record, em 2010. Chapman era um marginal beberrão e picareta extremamente ativo: todas esses traços o transformaram em um grande espião a serviço dos Aliados, enganando o serviço secreto alemão com consistência. Agente Zigzag também é um baita livro de não ficção.

4. Também já tratamos de outro livro de Macintyre na Enclave: Adam Worth: O Napoleão do Crime, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2000. Worth foi um ladrão absoluto – não só o Napoleão, mas também o Pelé do crime. Brilhante, calculista e incrivelmente não violento, ele estendeu seu portfólio de atividades irregulares a diversos países ainda no século 19, inspirando o prof. Moriarty de Arthur Conan Doyle. Detalhamos a trajetória de Adam Worth em duas partes: 1 e 2. Naturalmente, consideramos O Napoleão do Crime outro ótimo livro.

5. Agora sim, de volta a Kim Philby. A sua história é uma das mais espetaculares do século 20, afinal Philby é um dos maiores traidores da história. Também já a detalhamos neste enclave, mais especificamente na edição #15. Com o perdão do autoplágio:

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos.

6. A trajetória de Philby (e dos “Cambridge Five“) exclama por uma adaptação digna. Se a minissérie anunciada dará conta disso, não sabemos; mas o ânimo é justo. Desde que li A Spy Among Friends, torcia para que alguma produtora endinheirada abraçasse a tarefa.

7. Sobre espiões na Guerra Fria, O Espião Inglês (The Courier) foi finalmente lançado este ano, após uma leva de atrasos por conta da pandemia. Dirigido por Dominic Cooke e estrelado por Benedict Cumberbatch, o filme se ancora na história real de Greville Wynne, empresário-tornado-espião que chegou a ser descoberto – e preso – pela KGB. No momento, está disponível no Prime Video. É um belo filme, ao menos para quem se anima com a temática.

8. Curiosamente, O Espião Inglês é o terceiro filme em que Cumberbatch se envolve com espionagem – que eu me lembre. N’O Jogo de Imitação (2014), no qual interpreta Alan Turing, inclusive, há uma mistureba narrativa com os espiões-traidores de Cambridge, nesse caso envolvendo John Cairncross (“mistureba narrativa” porque, ao contrário do que o filme retrata, a relação de Cairncross com os soviéticos só viria a ser descoberta muito depois da Segunda Guerra).

9. O outro filme? Nada menos que O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), uma beleza contemplativa – ou seja, lenta – adaptada do romance homônimo (1974, publicado no Brasil pela Record, 2012) de John le Carré (1931-2020), uma lenda da narrativa de espionagem. Como se sabe, ele próprio foi um agente do MI5 e do MI6 nas décadas de 1950 e 1960. O Espião que Sabia Demais (tanto filme como livro) aborda a espionagem de maneira muito mais realista, característica típica da obra de le Carré.

10. A carreira de John le Carré na espionagem foi destruída por conta da traição de… Kim Philby. A Spy Among Friends deve estrear no segundo semestre de 2022.


Um fato bônus e perifericamente relacionado: encontrei o livro abaixo, de 1946, capa dura, extremamente conservado, por R$ 22,61. W. Somerset Maugham (1874-1965) também trabalhou no serviço secreto inglês, mas ao longo da Primeira Guerra Mundial. O Agente Britânico (Ashenden: Or the British Agent), parcialmente autobiográfico, foi publicado em 1927.

Baú: Ben Macintyre

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Abwehr (que literalmente significa “defesa”) tinha reputação de ser o mais eficiente serviço de inteligência da Europa. Uma primeira avaliação do MI5, o serviço de segurança que controlava a contraespionagem no Reino Unido e em todo o império britânico, descreveu a Abwehr como “organização de primeira classe em treinamento e em pessoal”. Essa estimativa era claramente lisonjeira. Um dos aspectos mais importantes do serviços da inteligência nos países era como cada lado sabia pouco sobre o outro. Em 1939, o SIS, serviço secreto de inteligência britânico (também conhecido como MI6 e que opera em todas as áreas fora do território britânico), não sabia como o serviço de inteligência militar alemão se chamava e nem quem o dirigia. Em uma autoavaliação franca, escrita depois do fim da Segunda Guerra, o MI5 reconheceu que “na época da queda da França, a organização do serviço de segurança como um todo estava num estado que pode ser descrito apenas como caótico (…) tentando desenvolver meios de detectar agentes inimigos sem qualquer conhecimento interno de organização alemã”.

A Abwehr se encontrava igualmente mal preparada. Hitler não havia esperado ou desejado entrar em guerra com a Inglaterra, e a maioria das operações de inteligência dos nazistas era dirigida para o leste. A rede de espionagem da Abwehr na Inglaterra era virtualmente inexistente. Quando os dois países se enquadraram para o conflito, uma estranha dança de sombras se iniciou entre os serviços de inteligência rivais: ambos começaram a construir freneticamente redes de espiões, quase que do zero, para uso imediato. Cada um atribuía ao outro extrema eficiência e preparativos bem adiantados, e ambos estavam errados.

Ben Macintyre, Agente Zigzag, 2007 (Ed. Record, 2010).