Rafael Maieiro: Epístola Pueril Sem Número 34 – Zeh Gustavo: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas” (M. A.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


“(…) Não vai adiantar nada eles encostarem suas cabeças no chão e pedirem Volte para cá, querida! Vou simplesmente olhar para cima e dizer Então quem sou eu? Primeiro me digam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; senão, fico aqui embaixo até ser alguma outra pessoa… Mas, ai, ai” exclamou Alice numa súbita explosão de lágrimas, “queria muito que encostassem a cabeça no chão! Estou tão cansada de ficar sozinha aqui!’” (C., L. Alice. Zahar: 2009)

*

Porra, Zeh!

Está difícil. Qual o maior problema de um ouvidor: não ouvir ou não ser ouvido? Me encontro agora, em frente ao espelho, tateando estas linhas paralelas no celular. Não vou me estender por 34 minutos tentando criar, num velho passe de mágica, re-ReveladO por um youtuber-coach há 34 minutos atrás. Não, Zeh. Não vou, não quero. (Cantarole, deístico leitor).

Voltemos! Podia usar o nobiliárquico título de ombudsman para envenenar, mesmo com uma roupagem modernete, os leitores com uma cansativa leitura critiquíssima do RelevO. Mas aí, né… Que contratassem outro! Já faço o favor de escrever em linhas paralelas e outros formalismos: eu não uso blusa da Farm.

Não, Zeh. Não, não quero. Um jornal literário? Então, vamos lá, tentei fazer da tal da Ouvidoria um espaço da ficção. Narrar, não os fatos em si, mas a vida como ela é na sua lida — ficcionar, leitorzim, é muitas vezes mais realista do que a tentativa malfeita de descrever, detalhadamente, bobagens.

Tá, Zeh, vou. Tô te ouvindo aqui na minha cabeça. Mas por onde, pobre diabo? Merda! O espetáculo acontece a cortina, plateia apática. Fora do teatro alguém diz que não assiste a espetáculos sem banda. No fundão do teatro, quase anônima, uma moça bate uma palma como uma Deusa da Ironia e adia por alguns segundos o Apocalipse. Mas e a vaia? Cadê a vaia, o xingamento, alguma reação do Universo que não seja um xis na plataforma nazista?

Deixamos eles, Zeh?

Aguardo a sua resposta.

Beijo,

O Outro

Ainda: por enquanto, pulem esta coluna. O RelevO, este maço (martelo) de papel, pássaro voando pela rua sombria dos tempos de merda, faz algum sentido. Quem sabe ele não empastela os seus olhos para além das paralelas.

*

Mês que vem voltamos? Aguardem! Provavelmente, não teremos novidades.

*

Aguardando a resposta do Zeh:

A imagem, o som e a letra impressa

Editorial extraído da edição de março de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Quando o RelevO surgiu, em setembro de 2010, éramos pura celulose e tinta, um amontoado de páginas que se recusava a obedecer a qualquer lógica que não fosse a nossa. A cada edição — com diagramação gradativamente melhor —, fomos desenvolvendo algumas linhas de certo humor caótico, ideias que se jogavam do penhasco sem saber se havia chão. Agora, estamos prestes a expandir nosso bestiário para o audiovisual. É um novo horizonte para esse modesto balcão organizado. Mas não se preocupe: ainda gostamos do cheiro do papel e da sensação reconfortante de que, mesmo se a internet cair, o impresso continua ali, firme, na gaveta, debaixo da mesa ou servindo de apoio para aquele pé de cadeira bambo. Mais: o impresso paga contas.

Nosso jornal sempre foi um convite à leitura torta, ao texto que parece errado. Agora, queremos experimentar o peso da imagem, o ritmo do som, as possibilidades do movimento — sem perder nossa veia seletiva, satírica e, acima de tudo, inquieta. Isso significa que [quem sabe] teremos vídeos desafiando a lógica do algoritmo e um conteúdo visual que, se bobear, poderá muito bem ser desenhado à mão. Vamos estudar as possibilidades, sem esquecer que nosso porto-seguro é de papel, dobra no meio e resiste ao tempo melhor que qualquer feed.

A expansão para o audiovisual nem tem como implicar um adeus ao impresso — longe disso! É só mais uma forma de provar que a palavra não precisa ficar restrita a um formato. Vamos testar novas formas de contar histórias e provocar. Quais? Ainda não sabemos; estamos apenas confabulando. Precisamos apenas continuar nos divertindo e desempenhando algo dentro do nosso limite técnico. Nosso singelo círculo de competência. Temos o mais difícil: anos e anos de conteúdo original, não necessariamente de qualidade.

Mas calma, para quem já estava preparando o textão, quem sabe alardeando que “o RelevO se vendeu para as telas”, fique tranquilo. Nosso maior sonho ainda é perder a alma para a Red Bull e virar um cone de arrancadão. Nossa tradição gráfica segue viva e forte. Continuaremos a estampar páginas com textos que desafiam padrões, referências que só três pessoas entendem e piadas que, às vezes, só fazem sentido três edições depois. A diferença é que esses mesmos devaneios febris poderão ganhar voz, trilha sonora e até dublagem dramática.

Portanto, revisem seus conceitos de Jornalismo sério e esperem por algo que nem nós sabemos exatamente como vai ser — essa sempre foi a nossa maior especialidade. O RelevO está ampliando sua bagunça organizada. A diferença é que, agora, talvez ela tenha vinhetas.

Zeh Gustavo: ESCREVER: o diabo que mora no detalhe!

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Enfim um tema sério e que importa aos leitores? Absolutamente! A culpa é da ressaca, daquela melancolia que supõe assumir, e diante da tela em branco (porque o teto está preto?), e diante de ti, e nas tintas deste impresso, que o ano, inadiavelmente mais, começou. Arre, que não dá mais para tapar o sol da realidade com a peneira de um cavalo-branco sorvido todo, a gente de palhaço numa terça fevereira.

O mote: as Cartadas literárias da edição que passou. Como poderia me ser indiferente tal apelo: “Quer prêmio, medalha, reconhecimento, amor? Escrever é só um detalhe”.

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Acrescentei o diabo ao detalhe. Porque, para gente da minha laia — que lê o Zé Kéti para ouvir a Hilda Hilst, que tem no Abraçado ao meu rancor do João Antônio um título-lema de vida, que sente nas prosas da Tânia Faillace e da Márcia Denser os ecos da forma narrativa que irrompe o instante para chamar o tempo pra briga (ou pra cama), que crê na poesia atual, qual a do Edimilson de Almeida Pereira, como uma tremenda força-motriz de interpretação do contemporâneo —, risco é regra, o que é torpe serve de guia, erro é caminho. Escrever nos suplica, quando não impõe arbitrariamente, aquele incerto pacto imaginário e cabreiro celebrado entre vísceras e neurônios, epifanias e aflições, belezuras e demoninhos interiores.

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O voo imprescinde do rasto de falha, sangue, fluido, lágrima. Quem procura relacionamento leve com a escrita — e com a própria existência — deveria virar coach, não autor(a) de literatura. Não é fofo fazer arte. Tem momentos em que essa fixação que certa feita nos baixou beira, inclusive, o autoflagelo.

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Para não dizerem que não falei de autoficção: esse termo o cunhou Serge Doubrovsky e ele tinha originalmente muito pouco a ver com o que a linha editorial do RelevO tenta evitar ao convocar sua chamada para novos textos. Para o amigo Doubrô, autoficção intersecciona memória e rasura de linguagem, em uma espécie de bioescritura em que a vida é também compreendida como artefato, constructo estético-político, à la Foucault.

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O poema de duas páginas de Carvalho Junior encorpa de boniteza o último jornal, boniteza que não contradiz, de jeito maneira, o que antes expus sobre o fazer arte. Há outros e muitos modos de escrever — cada um se pendura no que pode, já insinuava o xô-xuá do mestre Riachão da Bahia. De ombudsmada do mês fica que O homem-tijubina demonstra, como destacado já fora pela Amanda Vital, que o RelevO pode mais em termos de generosidade de espaço para a poesia.

Ó que bela rasteira: “o homem-tijubina tem um paladar exigente. não digere o ovo do óbvio. somente silêncios de pássaros lhe passam pelos gorgomilos. (…) quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso.”

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Pode parecer, mas não tenho “o coração envolto em fuligem” — com baita texto, baitas imagens, André Miranda nos apupa em seu “Urraca”, em que pese não ter alcançado de onde vem afinal o bendito nome da personagem (será ainda a ressaca?).

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Estou em campanha: use, sempre que for publicar seus textos, divulgar livros na redessoci, a hashtag #algoritmofdp. É cair atirando, afundar com a orquestra a tocar afinada, morrer segurando o copo.

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E, se eu falei muita besteira, se o Marlon Brando não é páreo pro seu charme, se você não vai mesmo com as minhas fuças, se a Vai-Vai ofendeu a entidade Tiozão do Pavê que você carrega até no Carnaval quando põe um maiozinho, se você ama MAIÚSCULAS ou acha um ab-sur-do! a Alessandra Negrini de índia no Cacique de Ramos, para qualquer coisa, para quem precisa — o Tony revisa!

Dos manuais e guias

Editorial extraído da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O excesso é o mal da escrita americana. Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido. Quem consegue entender o linguajar cifrado usado pelo comércio americano no dia a dia, ou seja, um memorando, um relatório empresarial, uma carta de negócios, um comunicado de banco que explique o seu mais recente e “simplificado” balanço? Qual usuário de um seguro ou de um plano de saúde consegue decifrar o livreto que explica todos os seus custos e benefícios? Que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vêm junto com a embalagem? Nossa tendência é inflar tudo e, assim, tentar parecer importante. O piloto de avião que anuncia que em alguns minutos atravessaremos uma área de turbulência por causa das nuvens carregadas e possíveis precipitações nem sequer pensa em dizer simplesmente que poderá chover. Se a frase é simples demais, deve haver alguma coisa errada nela.

William Zinser em Como escrever bem.

o

céu

era açuc ar lu

minoso

comestível

vivos

cravos tímidos

limões

verdes frios s choc

olate

s. so b,

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co

mo tiva c uspi

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vi

o

letas.

e.e.cummings em tradução de Haroldo de Campos.

Jarros de polvo!

Efêmero um sonho.

Luar de verão.

Bashô em tradução de Fabiano Sei.

Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer”

Ray Bradbury em Zen e a Arte da Escrita.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 3: não faz mal, limpa com jornal

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jingle bell, jingle bell

Acabou o papel

Não faz mal, não faz mal

Limpa com jornal

Autor desconhecido

Com a diferença de que o jornal definitivamente não está caro pra chuchu. Setentinha por um ano de literatura de qualidade, pô?! Mas aviso aos navegantes, sedentos por uma boa discórdia, isso não é para definir qualquer tipo de supremacia do físico sobre o digital — essa é uma guerra longa, não cabe em 8000 caracteres. É que nessa guerra, existe uma trincheira cortando dois campos. De um lado, os defensores do “apenas digital” são os defensores de uma democratização maior e mais ampla da literatura, já que e-books e plataformas digitais podem ser acessadas em qualquer lugar do mundo, tornando conexões e intercâmbios ainda mais possíveis. Do outro, os defensores do “apenas físico” são os defensores de algo que já funciona historicamente falando (para ser um bocado mais precisa, o primeiro livro impresso do mundo começou a ser produzido na década de 1450; o primeiro jornal impresso em gráfica, em 1605) e que, caso aconteça alguma pane geral nos sistemas informáticos, o físico que já existe não deixa de existir, nem fica inacessível. E há a trincheira, de onde falo, colaborando em meios impressos e virtuais. Só defende, não ataca, observando todas as discussões, as demandas, os problemas, as qualidades, as bombas e as alfinetadas. É um nome chique para “em cima do muro”? Não, porque é uma trincheira.

E para não dizerem que aqui é só amargura, rancor e acidez, deixo aqui uma pequena lista do bem — sei que vocês adoram listas — das qualidades de cada um dos lados, observadas daqui, desse lado T (de trincheira, hehe. Sacou?):

No físico: 1. Como eu já mencionei, não corre-se o risco de, com uma possível pane nos computadores (que não, não é teoria da conspiração, calminha aí com o ceticismo, porque já existem panes informáticas em sistemas aeroportuários, governamentais…, para afetar o uso pessoal é um saltinho), os materiais se destruam — o acervo físico está sempre aí;

2. A experiência de leitura é, de fato, mais agradável como um todo — não precisa nem adicionar fontes para isso, acho, né? — porque mexe com sentidos para além dos olhos, e isso é uma experiência muito rica, sim;

3. A depender do armazenamento do acervo (biblioteca pessoal, pública, livraria, sebo…), o papel pode demorar centenas de anos para se deteriorar — ao contrário de alguns sistemas, que tornam-se obsoletos com o passar do tempo e “envelhecem mal”, com problemas de armazenamento, de memória, atualizações e essas coisas todas;

4. É sempre uma mãozinha a mais para que gráficas, tipografias e imprensas não caiam na obsolescência também — gráficas vão sempre imprimir cartões de visita, cartazes, camisetas, agendas…, mas não se restringiria apenas a esse material (e ainda há as quase totalmente especialistas em livros);

5. O impresso é democrático e agregador, muito coletivo e com possibilidade de leituras em grupo, acessível a regiões e a indivíduos com dificuldades de acesso à informática, quanto mais à internet;

6. Não seria buscado apenas por quem está procurando algo específico (um jornal sobre uma mesa de café pode ser lido por pessoas que não buscaram por aquilo — ao contrário de tablets, raramente deixados em mesas de café, ainda bem para seus donos);

7. O impresso também atravessa oceanos, tal como o virtual, e não se restringe apenas ao ambiente nacional, como fazem parecer (o RelevO, mesmo, viaja mais que nós todos juntos);

8. Mantém a história de acervos e bibliotecas sempre ativa, preservando histórias e mantendo ativo o trabalho físico também dos bibliotecários;

9. O físico tem qualquer coisa de fixo, de imutável, de perpetuar-se — isso em si já é poético, e aqui falamos de sensibilidades também;

10. Papel não acaba a bateria, nem ter de colocar para carregar, nem tem notificações pipocando ao redor (vai enganar bobo quem diz que desliga notificações e vibrações, tá? Eu vejo vocês online!), nem precisa de suportes específicos para isso, fazendo lucrar monopólios.

No digital: 1. Em um viés de qualidade de vida individual — não digo do coletivo porque as tecnologias para isso ainda estão em andamento —, organizar a biblioteca pessoal é prático (para quem sabe mexer nisso, claro), então não há estante, não há grande peso, cabe tudo na mochila, bem prático, fofo e minimalista, de fazer Marie Kondo salivar de regozijo;

2. A disponibilização de conteúdos é mais rápida, não precisa esperar por uma impressão;

3. Quaisquer correções que sejam necessárias, é só editar, corrigir e já está editado (não é uma vantagem a 100%, porque isso acaba dando margem a alguma corrupção de conteúdo pós-publicação, mas vários portais deixam uma data de edição e até alguma errata “à moda antiga”, o que é legal);

4. Pode-se manipular o texto com alguma facilidade e comodidade: fazer marcações, copiar e colar, comparar, postar aquela legendinha marota no Instagram, pegar aquela citação excelente para a epígrafe do seu livro, enfim, se rabiscar, não é fixo;

5. Tende a ser econômico, porque não tem a conta da gráfica e do envio, só da edição;

6. Essa deveria ter sido a primeira da lista logo, porque é das mais importantes: é mais acessível a pessoas cegas, com possibilidade de texto transposto para áudio;

7. Alguns suportes de leitura são à prova d’água: você pode ler na chuva!;

8. É possível aumentar a fonte para uma leitura mais cômoda;

9. Um material publicado na América Latina pode ser lido na China quase instantaneamente;

10. Das coisas mais óbvias, mas: é sustentável e bom para a preservação do meio ambiente.

Em suma, se você está num periódico impresso, vão te cobrá-lo em arquivo digital; se você trabalha em uma revista virtual, vão te cobrar a versão física dela (como já nos aconteceu muitas vezes na Mallarmargens). No primeiro, a pessoa quer um teste, uma amostra grátis para experimentar, já que “procura e não acha uma digitalizaçãozinha disso sequer, eu não sei cumé quié!”. Na segunda, não aceita que o portal tenha alguma credibilidade só por não funcionar impresso. Sempre tem alguém que não está satisfeito, nem vê como possível a coexistência das duas coisas. “Ah, eu só leio no papel, isso aí nem deve ter ISSN”. “Ah, eu só leio se tiver como favoritar, minha vida é muito corrida gerindo os imóveis que alugo a estudantes universitários falidos por 900 paus”. E muita cobrança no lombo do editor.

E para os que leem até aqui, mês passado tivemos muita coisa boa cá por essas bandas, com destaque para a arte e o trabalho de fotografia & colagem incrível de Noah Mancini; de toda a poesia publicada, o poema curto da Enilda Pacheco foi uma boa escolha de curadoria, a poesia jogando com o verbete de dicionário, que é algo atemporal e bom quando bem feito, com originalidade, sem cair no óbvio — o que acredito que aconteceu, com contraste, ritmo de quebra de versos e enjambement, contraste, tudo em três versos!; o trabalho de tradução do Degrazia é muito especial, por ser um ótimo poeta também, ele aplicou um ritmo um pouco diferente do original, fugindo da tradução literal e indo por um caminho inventivo, mas na medida, numa boa medida, só um bocadinho aqui e acolá para a transposição de sentido para português; e de prosa, o texto que mais me ficou foi “Biscoito?”, de Silva — uma esquete literária deliciosa, com os elementos do exagero e do absurdo bem-humorados e com essa comunicação mais familiar e cotidiana, que permite que a gente prossiga legal na leitura, sem se encolher na poltrona com algum cringe (em suma, texto que fala como a gente fala); com menção honrosíssima para o trecho da Tatiana Lazzarotto, que faz algo parecido, mas não com diálogo, com descrição; e para o conto de Carolina Fellet, outro que passa pelo coloquial, mas com elementos de prosa poética.

Boa ressaca de carnaval a tod_s. Sejam impressos! Mas se não quiser, não precisa.

O papel do papel, o ChatGPT, os escreventes

Editorial extraído da edição de março de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A presente edição do RelevO, de março de 2023, não foi escrita por inteligência artificial (IA), mas teve o auxílio dela. Tal qual a aparição de um craque na base de um clube decadente, o surgimento do ChatGPT no fim de 2022 trouxe à tona uma série de reflexões sobre o fazer artístico —a nossa edição especial da Copa do Mundo teve capa de IA, por exemplo. E ficou ótima. Será o fim do artista? No plano prático, diversas revistas e concursos literários espalhados pelo mundo passam pelo desafio de avaliar ou excluir textos enviados com auxílio de tais ferramentas. Logo será a nossa vez de lidar com isso.

Estamos vivendo o início do fim dos escritores e dos artistas? Certamente que não. Certamente que sim. Quem já se aventurou no ChatGPT e saiu emulando estilos de autores e autoras consagradas pôde verificar que a fluência e a beleza textual ainda são de uma carruagem no asfalto. Contudo, sabemos que a IA irá melhorar, o que nos traz outro questionamento: e os escritores? Permanecerão cada vez mais distantes das transformações do mundo e descrevendo árvores por três páginas? Lógico que exageramos. O argumento, inclusive, acabaria com Marcel Proust. Mas só tivemos um Marcel Proust…

Longe de nós querer transferir aos escritores a tarefa de avançar junto das AIs. É impossível, tanto por processamento quanto por aprendizado. O que nos interessa, na condição de veículo de curadoria de um segmento cultural, é pensar em como os escritores lidarão com ferramentas que podem escrever melhor que eles. Ou melhor do melhor: que podem ser medíocres com muito mais qualidade.

Daqui do nosso cercadinho de muitas incertezas e na continuidade de procedimentos, enxergamos com bons olhos a chegada de uma ferramenta que tensione a nossa existência. Poderá, em breve, uma IA selecionar os textos enviados para a nossa caixa de entrada apenas pelos padrões de escolha dos editores ao longo de 13 anos? Poderá a IA descartar automaticamente do processo de avaliação textos que tenham erros crassos (e involuntários) de língua portuguesa? Gostaríamos.

Diferentemente de uma IA, o ser humano é escravo e senhor de sua temporalidade – e não avança apenas com atualizações. Como medir as transformações internas de uma pessoa que teve um filho pela primeira vez? É possível quantificar (ou realmente descrever) em algoritmos a experiência do primeiro amor? E a sensação de receber uma encomenda pelos Correios? Ainda somos nós, ainda somos nós. E nunca fomos mais humanos.

Entre infinitas razões, criamos para também nos questionar sobre a nossa própria existência — e por utilidade, valor sempre em confronto com o mundo exterior. Pedimos ao ChatGPT que escrevesse um editorial que refletisse sobre a utilidade de um jornal de literatura no mundo contemporâneo. O comando foi simplório, já que poderíamos dialogar em perspectivas bem mais profundas. A resposta foi didática:

Um jornal de literatura pode ter várias utilidades no mundo contemporâneo, mesmo com o avanço da tecnologia e das redes sociais. Algumas das principais utilidades são:

  1. Promover a literatura: Um jornal de literatura pode ser uma excelente plataforma para promover a literatura, tanto nacional quanto internacional. Ele pode destacar obras e autores relevantes, estimular a leitura e ajudar a formar novos leitores.
  2. Fornecer análises críticas: Um jornal de literatura pode fornecer análises críticas de livros, oferecendo aos leitores uma visão mais aprofundada e reflexiva sobre as obras. Isso ajuda a enriquecer o debate literário e a estimular a produção de obras cada vez melhores.
  3. Divulgar eventos literários: Um jornal de literatura pode divulgar eventos literários, como lançamentos de livros, feiras de livros e encontros com autores. Isso ajuda a aproximar os leitores dos escritores e a fomentar o diálogo entre eles.
  4. Fortalecer a comunidade literária: Um jornal de literatura pode ajudar a fortalecer a comunidade literária, criando um espaço para a troca de ideias e experiências entre autores, leitores, editores e outros profissionais do mundo literário.
  5. Preservar a cultura: Um jornal de literatura pode ajudar a preservar a cultura, registrando a produção literária de uma época e documentando os eventos e acontecimentos importantes do mundo literário. Isso é importante para a posteridade e para que as próximas gerações tenham acesso às obras e ao legado dos escritores.

Para nós, não se trata de uma resposta vazia, afinal ela captura um bom tanto das identidades possíveis de nosso periódico, o que muitas vezes frustra os leitores em busca de um norteamento claro. Mas também é fria, protocolar, semelhante a um editorial cansado. Em suma, será divertido acompanhar o rumo disso tudo. Certamente continuaremos nos divertindo, aspecto básico de nossa existência (chatbots sonham com risadas elétricas?).

Uma boa leitura a todos.

Nuno Rau: (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.


Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da intransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.

Nuno Rau: A crítica está morta, mas respira relativamente bem (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.

Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da instransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo?, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.

De custo-Brasil e codependências

Editorial extraído da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todos os nossos editoriais, clique aqui.


Nos últimos seis meses, o custo de gráfica do RelevO aumentou três vezes. O custo de itens de papelaria aumentou 20%. A conta de luz quase dobrou em relação ao mesmo período de 2020, ainda antes da pandemia. Lembramos, dia desses, uma época em que fazíamos a distribuição do Jornal em oito cidades da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) com R$ 100 no tanque — o litro da gasolina saía por R$ 2,50 em 2016 e já reclamávamos de uma alta recente do período. Não bastando, os Correios, em fevereiro, aumentaram a nossa modalidade de envio, a MDPB, em 30%. Um envio simples para Curitiba, que antes custava R$ 1,60, hoje não sai por menos de R$ 2,10. Em uma escala de 1150 assinantes, trata-se de um custo a mais considerável – e que impacta diretamente nossas margens de lucro.

Não especialistas que somos, aqui não nos interessa discutir o contexto geopolítico que torna o Brasil cada dia mais caro (embora determinados fatores sejam o óbvio ululante rodrigueano), nem a própria questão dos recursos envolvidos. Acontece que este é o Brasil que se apresenta e onde queremos continuar fazendo o que fazemos. Não podemos negar que a realidade está mais complicada para projetos como o nosso por fatores que também complicam a vida de outros negócios – muito mais importantes – espalhados pelo país. Sabemos que alguns fatores estruturais dos quais somos codependentes fogem ao nosso controle, e ao menos temos a opção de pular fora de tudo isso sem comprometer a renda de famílias.

O primeiro impacto de vários aumentos simultâneos de custo é a dificuldade de manter os valores de assinatura. Carregamos a anuidade de R$ 60 da assinatura básica desde o final de 2019. Para comparação, em setembro de 2019, o litro da gasolina circundava R$ 4,50, cerca de 55% menos caro que a média atual da Região Sul, mais especificamente de Araucária, sede logística do RelevO. Aliás, foi nessa época que começamos a oferecer a possibilidade de adquirir assinaturas de patrocinador (R$ 80 e R$ 105), que contribuem para o custeio do envio a bibliotecas comunitárias e pontos culturais nacionais.

Em suma, quando aperta, transferimos nossos custos para quem nos compra. Não existe nenhum segredo nisso. Não temos um megainvestidor. Não somos ricos. Não temos cargos públicos. Não aproveitamos nosso capital simbólico para nos aparelhar no Estado. Contudo, nossa comunidade de leitores, formada principalmente por sujeitos de Humanas, não tem sido capaz de assimilar a contento o aumento da vida como um todo. Historicamente, nossa média de não renovações de vínculos sempre foi de R$ 20%. Hoje, oscila de 30 a 35%, com tendência de piora em meses de férias escolares, como janeiro e julho. Pode ser que isso também tenha relação com o nosso produto em si, mas acompanhamos em planilhas rotineiras as justificativas da não continuidade. Não é impressão nossa, mero achismo. O RelevO é um projeto cultural com uma malha de números.

Pretendemos seguir com o valor congelado da anuidade básica no mínimo até o meio de 2022, mas sabemos que, em breve, precisaremos reajustá-lo. Como sempre enfatizamos por aqui, vivemos, basicamente, de assinantes e de anunciantes. Não utilizamos ou buscamos dinheiro público, tampouco vendemos anúncios travestidos de espaço editorial. Em linhas gerais, estamos conectados ao que acontece no país e sofremos o impacto de uma crise que se estende por muitos anos – e que, naturalmente, arrasta com mais facilidade os peixes menores. Sobrevivemos ao auge da pandemia, mas a escalada de aumento de custos nos preocupa muito.

Afinal, o que estamos fazendo? Primeiro, evitamos voltar ao patamar de distribuição anterior à pandemia, quando distribuíamos em mais de 450 lugares do Brasil todo sem custo para os espaços que nos abriam as portas. Estamos com ações mais direcionadas, como a ampliação da distribuição em nosso raio de ação, e mantendo o foco na captação de novas assinaturas a partir de nossos canais digitais. Não é muito, mas é o que sempre acreditamos desde o início do Jornal, lá em agosto de 2010: ações direcionadas, contínuas e mensuráveis. Esperamos continuar.

Uma boa leitura a todos.

Osny Tavares: Quem lê, quem escreve, quem lê

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O publisher do RelevO concede ao ombudsman um espaço nobre, neste alto de página 5. Centrão entre percepções de quem faz e quem lê, ele pode ser um criador de caso ou um pacificador — se competente, as duas coisas. 

Na edição de fevereiro, a leitora Brunna Gabardo escreve longamente sobre sua experiência de leitora do jornal, distribuindo seu carinho entre o conteúdo e a plataforma impressa. Ao revelar seu próprio interesse e aspirações literárias, induziu-me a uma reflexão que, pouco depois, na coluna Editorial da mesma edição, cresceu para tema de coluna: há categorias fixas para definir o autor e o leitor deste periódico?

Porque naquele espaço, o fundador revelou o episódio de um possível assinante que exigiu ser colunista como contrapartida. A partir dele, é possível especular quais as diferentes percepções de valor que os leitores possam vir a ter sobre o produto. Também se eles creem representarem um papel específico em seu ciclo de vida. E, primordialmente, se veem as instâncias de leitor e autor no RelevO como verticais e fixas. 

Este jornal tem um pé em cada era: analógico por formação e essência, digital por espírito dialético. Da primeira traz o custo marginal. Tudo nele custa algo; e quanto mais há, mais custa. Do segundo traz a possibilidade de criar algo que os novos chamam de comunidade de fala. A literatura produzida nela sempre será a mais próxima. E, porque não, por consequência, a mais valiosa?

Embora realizar essa ideia seja uma questão de curadoria, portanto editorial, a contribuição primeira dos textos é função voluntária de um pressuposto leitor. De forma que esse é o único ombudsman que pode, legitimante, voltar-se contra os leitores que representa. E, de espírito ainda mais livre, os leitores podem rebelar-se entre si. E, ultimamente, consigo mesmos. 

Na mesma edição, o poema de Larissa Adur é um exemplo de localização (não por acaso, seu título é um endereço). O humor da página central pode ser um último estímulo para ainda acompanhar notícias. E aponto especialmente para a novidade jornalística do ensaio “Ex Nauseam”, de Algum Lucas — uma confissão de agora. 

Há no jornal um esforço pela proximidade. Cabe ao veículo torná-la mais intensa, de forma que até os ligeiros possam vê-la.