Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
— E a menina trabalha?
— Trabalho sim senhor, todos os dias. Estou trabalhando agora mesmo.
— Mas no que trabalha?
— Eu sou assistente editorial em uma editora brasileira.
— Então está cá temporariamente?
— Não, eu moro aqui em Portugal, mesmo. Já vai fazer uns quatro anos.
— E como é que trabalha para uma editora brasileira?
— Por trabalho remoto. Faço tudo pelo computador.
— Ah! É como os nómadas digitais?
— Não, não é como os nômades digitais.
— Como não?!
— É que esse tipo de trabalho que eu faço sempre foi pelo computador. Quer dizer… pelo menos nos tempos digitais, informáticos.
— Pois então! É nómada digital.
— Mas eu não sou.
— Trabalha em outro país e pode fazer tudo pelo computador? É nómada digital, sim.
— Mas não sou. Eu não tenho o estilo de vida do nômade digital.
— Que estilo de vida?
— Sei lá. Supergentrificar países, comprar trocentas casas e terrenos ao preço da chuva e cobrar aluguéis caríssimos, não contribuir com a economia local?
— Mas o nómada digital não precisa necessariamente fazer isso. Até tenho um amigo britânico que…
— Foi só um exemplo.
— Ainda acho que a senhora é nómada digital.
— Não sou, não. Eu nem tenho o visto para nômades digitais!
— Mas muitos não têm! Esse meu amigo não tem.
— Ele pode pedir.
— E a menina, não?
— Não, eu não posso, porque eu não sou nômade digital.
— E o que é que a desqualifica enquanto nómada digital?
— Minha renda mensal é inferior à quantidade mínima de euros que os serviços pedem.
— Mas isso é o valor estimado. Acho que eles aceitam mesmo assim.
— Mas eu não sou nômade digital, senhor.
— Ainda acho que é nómada digital.
— Eu não trabalho no que os nômades digitais costumam trabalhar.
— E no que eles trabalham?
— Não sei bem ao certo, para falar a verdade. No que esse seu amigo trabalha?
— Ele explicou-me uma vez. Não me recordo.
— Pois então. Acho que há trabalho remoto que se qualifica como nômade digital e outros que não.
— Mas ele mexe com o computador assim como você.
— Mas há muito poucos assistentes editoriais, senhor. Não somos assim tantos. E ele pode mexer no computador com, sei lá, programação. Processamento de dados. Essas coisas.
— E o seu não é esse coiso?
— Não, não é.
— A menina está aí com planilha aberta, e-mail aberto… isso é tanga. Faz o mesmo que o meu amigo.
— Olha aqui um livro aberto em PDF. Ele abre livros no computador?
— Por acaso não.
— Então. São coisas diferentes.
— E esses livros aí são virtuais? E-book?
— Não, a maioria vai só para impressão. Esse aqui não vai ter e-book.
— E imprime cá?
— Não mando imprimir, eu só verifico tudo para ir para a gráfica. Eles é que imprimem lá no Brasil.
— Então seu trabalho é só virtual. Digital. É nómada digital, vê?!
— Mas que mania! Eu não sou nômade digital. Para ser “nômade” eu precisava morar em mais de um lugar. Eu só vim do Brasil para cá.
— A menina migrou. É nómada, é.
— Mas eu nem vim a trabalho, vim estudar! Eu só quis ficar aqui depois dos estudos, só! Acho que o nômade tem essa coisa de ter contrato para trabalhar nos lugares específicos, não?
— Não. Esse meu primo não tem isso, não.
— Afinal, ele é primo ou amigo?
— É os dois. A menina é nómada e ponto. E que há de mal nisso?
— Eu não sou neoliberal para ser nômade digital. Não quero ser confundida com um neoliberal.
— Mas que eu saiba não tem nada a ver com política. Vocês, também, a meter a política em tudo… — Tem razão. Me desculpe.
— Estrangeira, ainda por cima. É nómada, é.
— Eu sei lá, eu… olha, não tenho o Instagram de um nômade digital.
— E como é o Instagram de um nómada digital?
— Ah, tipo… cheio de fotos de viagem. Comida chique. Gente saradona.
— Nada, essas pessoas estão nos cafés a trabalhar. O meu vizinho não faz isso do Instagram.
— Mas ele não era seu…? Ah, deixa estar. Olha, pode ser, mas eu tenho que estar ativa para o trabalho o dia todo. Os nómadas têm metas e essas coisas.
— Mas se terminam cedo, podem usufruir dos momentos de lazer. Já vi a menina a fazer isso.
— É claro que eu faço. Mas eu não sou nômade! Eu não sou neoliberal!
— Não é sobre política!
— Tá bem, tá bem! Fogo!!!
— Ai, que disparate!
— O senhor não para de me encher o saco com isso.
— Por que é que está tão nervosa?
— Porque eu não sou nômade digital. E nem quero ser.
— Se a menina não queria ser chamada de nómada digital, era só dizer.
— E faria alguma diferença? Tiraria isso da cabeça?
— Não. Eu estaria a mentir para si.
— Olha, senhor, eu não sou responsável pelo aumento do preço da habitação de Lisboa. Eu moro de favor, inclusive. Não tenho um MacBook nem um iPhone. Essas coisas, sei lá.
— Mas nem todo nómada… até tenho um colega que…
— Ah, não. De novo, não.