007 e o Gângster Ciumento

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Lana Turner, Johnny Stompanato e Cheryl Crane (1958)

Aqueles familiarizados com a quadrilogia de Los Angeles do escritor James Ellroy (1948) talvez conheçam o protagonista da nossa história de hoje – e não me refiro ao 007.

Vamos ao contexto: entre a segunda metade da década de 1980 e a primeira de 1990, Ellroy resgatou a literatura policial noir e escreveu quatro romances que se passam em Los Angeles, entre 1946 (Dália Negra) e 1958 (Jazz Branco).

Todos misturam pessoas e casos reais com personagens e resoluções fictícias; aquilo que pessoas normais chamam de ficção histórica; e teóricos pós-modernos, de alguma outra coisa.

  • No Brasil, os quatro foram publicados na Coleção Negra da Record, facilmente encontráveis em sebos. O editor se encontra no terceiro (e a-man-do). Acima de tudo, trata-se de obras com caracterização invejável: amamos acompanhar seus personagens extremamente falhos.
  • Terceiro, por sinal, adaptado no filmaço Los Angeles: Cidade Perdida (1997). No momento, disponível no Prime Video.
  • Quem já jogou L.A. Noire também conhece boa parte desse universo, considerando como o jogo se inspirou na literatura noir e, especificamente, no trabalho de Ellroy.

Pois bem, assim chegamos em Johnny Stompanato, um gângster com nome de caricatura. Stompanato serviu à Marinha Americana no Japão durante a Segunda Guerra, converteu-se ao Islamismo para se casar com uma turca, teve um filho com ela, abandonou ambos e rumou a Los Angeles em 1947. Então viveu, ou melhor, correu por um outro casamento, que durou três meses.

Stompanato se estabeleceria como proprietário de uma humilde loja de cerâmica e esculturas em madeira, mas, sabe-se lá como, manteria um vínculo com o poderoso gângster Mickey Cohen, ex-boxeador baixinho (1,65 m) crescido em meio à máfia judaica de Nova York e estabelecido em Chicago – mas já deslocado para Los Angeles.

A partir desse encontro, Stompanato faria algo mais dinâmico que administrar cerâmica, consolidando-se como braço direito, guarda-costas e matador de aluguel de Cohen, líder do crime local. Ambos são figuras frequentes na quadrilogia de James Ellroy, com grande participação no segundo, O Grande Deserto (1988).

A vida de Johnny Stompanato é cheia de histórias curiosas, bem como a sua morte, isto é, esfaqueado pela enteada de 14 anos, que defendia a própria mãe – ninguém menos que Lana Turner – dos ataques do mafioso.

E como um gângster truculento chegaria a namorar Lana Turner, grande estrela da Era de Ouro de Hollywood(land)? Um misto de sorte (azar), oportunidade e decadência da atriz, que, como podemos imaginar, viveu altos e baixos com o sujeito.

Até o momento, nada do que relatamos chega perto de um James Bond, não é mesmo? Pois bem, em 1957 (portanto, para fins cronológicos, anos antes do primeiro filme de 007), Lana Turner gravava Vítima de uma Paixão (Another Time, Another Place) com Sean Connery na Inglaterra.

Stompanato não gostou da ideia de ver sua namorada contracenando com um grandalhão (1,88 m) escocês, muito menos dos rumores de que eles teriam um affair, e fez aquilo que lhe parecia coerente: voou para a Inglaterra armado e ameaçou o ator dentro do set de filmagem, em Hertfordshire. Não sem antes ligar para Turner e ameaçá-la (e, obviamente, ouvir – e ignorar – apelos para que não causasse nada disso).

Acontece que, além de grandalhão (e escocês), Connery era faixa preta em karatê e tinha história como bodybuilder. Stompanato não teve chance: seu braço armado foi torcido pelo futuro James Bond, que, enquanto neutralizava o risco do tiro, desferiu-lhe um soco suficiente para acabar com a brincadeira ali mesmo. A partir daí, a história virou problema da Scotland Yard, que deportou um gângster humilhado.

  • O desempenho de Connery no embate foi tão supremo que o agente Milton Bolotti, estupefato, logo telefonou à Eon Productions e cravou: “temos o nosso protagonista para os romances de Ian Fleming”. Ok, essa parte a Enclave inventou 100%. Não repassar.

Johnny Stompanato seria assassinado logo no ano seguinte, mas Cheryl Crane – a filha de Turner – acabaria inocentada em um caso escandaloso e tremendamente documentado. Mickey Cohen arcou com os custos do funeral e divulgou cartas de amor trocadas entre Lana Turner e seu escudeiro, tentando melhorar a imagem do morto.

Baú: John le Carré

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Breve história de George Smiley

Quando desposou George Smiley, pouco antes do fim da guerra, Lady Ann Sercomb qualificou-o, ante os seus atônitos amigos de Mayfair, de comovedoramente vulgar. Ao abandoná-lo dois anos depois por um automobilista cubano, ela anunciou enigmaticamente que, se não o tivesse deixado então, jamais poderia tê-lo feito; e o visconde Sawley fez uma visita especial a seu clube para comentar que o gato botara as unhas de fora.

Esse comentário, que durante uma curta temporada foi tomado por um mot, só pôde ser entendido pelos que conheciam Smiley. Baixote, gorducho e de índole tranquila, ele parecia gastar muito dinheiro com roupas de mau gosto, que lhe pendiam em volta da figura atarracada como a pele de um sapo engelhado. Sawley, de fato, declarou no enlace que “Sercomb se uniu a uma rã-touro numa rajada de sudoeste”. E Smiley, sem saber dessa descrição, atravessara gingando a nave lateral da igreja em busca do beijo que o converteria em príncipe.

Era ele rico ou pobre, camponês ou clérigo? De onde ela o fora tirar? A incongruência da união era acentuada pela beleza indiscutível de Lady Ann, o mistério estimulado pela desproporção entre o homem e sua noiva. Mas a bisbilhotice tem de ver suas personagens em branco e preto, atraviá-las de pecado e motivos facilmente transmitidos na estenografia da conversação. E assim, Smiley, sem escola, sem pais, sem regimento nem ofício, sem riqueza nem pobreza, viajou sem rótulos no vagão do condutor do expresso social e logo se transformou em bagagem perdida, destinada, quando o divórcio chegou e foi embora, a permanecer sem dono na prateleira empoeirada das notícias do dia anterior.

John le Carré, O Morto ao Telefone, 1961 (ed. Círculo do Livro, ano desconhecido).