Ukiyo-e

Extraído da edição 48 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

A gravura é a arte de impressão que surge na China no século 9 (e você ainda achava que o primeiro livro impresso do mundo tinha sido a Bíblia de Gutemberg…) e marca a Idade Média no Ocidente. Feita pela criação de uma matriz única, cria a possibilidade de cópia em grande escala, funcionando como um grande carimbo. Entre as inúmeras técnicas de gravura, a primeira a ser desenvolvida foi a xilogravura.

A xilogravura é a arte de trabalhar com a madeira, primeiro lhe entalhando e em seguida passando camadas de tinta no alto relevo produzido, que ao ser prensado sobre um papel transmite a imagem “desenhada” na matriz. Cada cor a ser usada deve ser passada separadamente para o papel, o que, junto do tempo de espera da secagem de cada mão, torna grande o tempo gasto com cada trabalho.

No Ocidente, o maior exemplo que temos de gravura japonesa é certamente a Grande Onda de Kanagawa:

 

Essa xilogravura é uma ukiyo-e e foi criada em torno de 1833. Foi gravada por Katsushika Hokusai e faz parte de uma série de 36 obras que representam o Monte Fuji. Hokusai demonstrava um grande amor pela paisagem japonesa e criou centenas de ukiyo-e nesta temática.

Ukiyo-e, em português “Retratos do Mundo Flutuante“, são xilogravuras feitas no Japão do período Edo – marcado pelo isolamento drástico do Japão ao resto do mundo e que serviu para o aprimoramento e desenvolvimento de novas técnicas artísticas. As ukiyo-e geralmente representavam a beleza da mulher, momentos históricos, o teatro Kabuki, paisagens, enfim, o cotidiano japonês deste período. Por mais que hoje sejam exibidas em belas exposições nos mais importantes museus ao redor do mundo, quando surgiram eram comuns e de fácil acesso, muitas vezes servindo como papéis bonitos para enrolar peixe.

A beleza desta arte está dividida em muitas partes, literalmente, pois não era feita por um único par de mãos, mas por várias pessoas trabalhando juntas. Pelo menos três: o artista, o talhador e o impressor. Essa técnica se tornou um dos mais famosos estilos artísticos japoneses e muitos historiadores da arte chegam a descrever a história da arte do Japão com base unicamente no estudo das ukiyo-e, o que, claro, corresponde a um reducionismo.

Mesmo assim, o papel dessas xilogravuras na identidade artística nacional é tamanho que as ukiyo-e foram a principal referência estética do japonismo, tendência na pintura europeia do século 19 em que artistas, sobretudo impressionistas franceses como Degas e Monet, se inspiraram nas cores vivas e no movimento da arte japonesa para compor suas obras e para estudar. Van Gogh, por exemplo, copiou diverssos trabalhos de Hiroshige e pintou árvores que claramente homenageiam as cerejeiras nipônicas. Outros pintores, como Felix Valloton, Paul Gauguin e Edvard Munch, chegaram a experimentar com essa técnica diretamente e foram precursores de seu uso no Ocidente. Já quase no século 21, a obra de Hokusai ainda é fonte de releituras, como em Uma Súbita Rajada de Vento, do fotógrafo canadense Jeff Wall.

Outra curiosidade sobre as ukiyo-e é que elas são as responsáveis pelo surgimento dos mangás. E o precursor dessa ideia foi o próprio Katsushika Hokusai. Em 1814, ele desenhou uma série de 15 ukiyo-e, as encadernou e batizou de Hokusai Manga, ou “esboços de Hokusai”. Nela estão cenas do dia a dia, paisagens, estudos sobre animais, plantas e também histórias de fantasmas.

Para ler mais a respeito, admirar e até participar de leilões de ukiyo-e originais, visite o site da Fuji Arts — e nos agradeça depois!

[por Flávia Rhafaela]

Leão do Castelo de Gripsholm

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No século 18, as relações diplomáticas entre Suécia e Argélia eram bastante próximas. Os escandinavos enviavam vários presentes valiosos aos argelinos e em troca tinham garantida a passagem segura e gratuita de seus navios pelo mar mediterrâneo. Em retribuição, em 1731 o Rei Frederik I recebeu do Dey (uma espécie de regente) da Argélia alguns mimos, que incluíam: um leão, três hienas e um escravo liberto, que se tornou o cuidador dos animais. Todos viveram suas vidas no luxuoso Djurgården, o parque real.

Alguns anos após o leão morrer, o rei enviou os restos do felino (a pele e os ossos que haviam sobrado) para que um taxidermista o reconstruísse em toda a sua glória. O leão seria exposto no castelo como um símbolo da força da Coroa sueca. O problema era que o taxidermista nunca tinha visto um leão pessoalmente e teve que se basear em relatos escritos e brasões de armas. Como é de se imaginar, o resultado ficou uma bosta:

Essa espécie de Ecce Homo animal está em exposição no castelo de Gripsholm, hoje um museu, e é um dos muitos exemplos de animais exóticos sendo mal desenhados por artistas europeus. Nas iluminuras medievais, principalmente nos bestiários, eram comuns as representações bizarras de animais como elefantescrocodilos e corujas.

O tempo passou e pouca coisa mudou: em 1840, Londres renovava a Trafalgar Square, sua principal praça, e encomendou, além de uma coluna imensa, esculturas de quatro leões. O encarregado pelos leões foi Sir Edwin Landseer,  pintor especializado em retratar animais como cães, cavalos, touros… mas não muito familiarizado com esculturas. Ou leões.

De fato, o único espécime desse animal que o artista conhecia era o leão do zoológico da cidade, e quando este morreu, Landseer pediu para que deixassem o corpo em seu ateliê para que ele pudesse estudá-lo. Mas, dizem, ele demorou tanto para terminar seu projeto que os restos  do bicho começaram a se decompor. Faltando ainda as patas a serem esculpidas, Edwin usou seu cachorro como modelo e terminou a obra.

resultado final lembra mais um esfinge do que um leão propriamente dito e causou estranhamento aos olhares mais críticos na época, mas não chama tanta atenção dos transeuntes e turistas que passam pela praça hoje em dia. Ao menos não a ponto de as pessoas deixarem de tirar fotos e escalar os bichanos de bronze. De todo modo, se for esculpir ou empalhar um leão, talvez a relação entre perfeição e pressa tenha que ser reconsiderada.

Tony Garnier

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No início do século passado, Lyon, na França, passava por uma grande industrialização. Centro metalúrgico, a cidade, cuja linha férrea com início em St. Étienne havia sido asegunda da história do país, já se adaptara a uma nova realidade de produção. Somam-se a isso a primeira fábrica de automóveis da França – uma Berliet –, testes com os primeiros aviões e a invenção do cinematógrafo. (Lembra do primeiro filme exibido ao público? Aquela fábrica se tornou o Instituto Lumière.)

Lyon, enfim, compunha um contexto agitado, modernizado e propício a especulações. Isso provavelmente borbulhava na cabeça de um arquiteto local, o talentoso Tony Garnier. Nascido em 1869, Garnier estudou na École des Beaux-Arts, em Paris, e retornou a Lyon, onde projetou aquela que seria, para ele, a cidade ideal. Seu projeto, Une cité industrielle, refletia o planejamento de uma utopia.

Une cité industrielle foi publicado em 1917 após vários anos de estudos. Preocupado com a monotonia do trabalhador em seu ofício, Garnier visou ao lazer e à acessibilidade de áreas verdes — cada casa de família, por exemplo, teria um jardim. A cidade foi idealizada para 35.000 habitantes e continha as seções industrial, agricultural, universitária, sanitária, residencial e pública, esta última dividida entre setores administrativo, cultural e esportivo.

A utopia projetada por ele não continha delegacias, tribunais, prisões ou igrejas. Porque capitalismo. Não obstante, existe ali um legado arquitetônico mais rico do que a ignorância arquitetônica do editor permite enxergar – como a existência de edifícios de concreto armado – portanto permanecemos na apreciação estética. Se você entende algo de francês, vale se atentar a este documento aqui. Se não entende, fique pelas imagens e dificilmente se arrependerá.

Baú: David Kelley

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É por isso que precisamos de virtudes, antes de mais nada: nós não conseguimos atingir nossos fins com ações mágicas, fantasiosas ou aleatórias; nós precisamos levar em conta fatos sobre a natureza humana, o mundo em que agimos e a relação causal entre ações e resultados. Uma virtude envolve o reconhecimento de tais fatos e o compromisso de agir de acordo com eles. Assim, o orgulho é o reconhecimento do fato de que ‘o homem é um ser cuja alma se faz’: nós não conseguimos alcançar a autoestima sem que ajamos de forma com que a mereçamos. A racionalidade é o reconhecimento do fato mais básico de todos – fatos são fatos, A é A e a razão é nosso único meio de conhecimento.

David Kelley, Unrugged Individualism, 1996