Ben-Hur Demeneck: Arte do efêmero

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O ombudsman recorre ao método de Bertolt Brecht para derrubar a “quarta parede” deste jornal literário diante do público. Para facilitar a demolição dos discursos, o representante dos leitores traz consigo um machado típico dos ancestrais vikings desse cargo escandinavo.

Convidados a se manifestar, os editores saem da sua condição de personagens para explicar como criam seu jogo de cena. MÉTODO: encadeamento de falas do núcleo editorial, obtidas a partir de um questionário comum e de entrevistas exclusivas. ELENCO: Daniel Zanella (DZ): o editor-chefe; Ricardo Pozzo (RP): o editor; Marceli Mengarda (MM): a diagramadora; e Mateus Ribeirete (MR): o revisor do jornal e editor da newsletter Enclave.

 

  1. Jogral autoral 

Primeira cena: o elenco olha para a plateia e responde ao subtexto: quais foram os autores que lhes tiraram a paz diante da literatura? Preparação dos atores: sessão de grito primal. Sequência das falas (que podem ser intercaladas): MR: Jorge Luis Borges, Douglas Adams, Valencio Xavier; DZ: Rubem Braga, Júlio Verne, Paulo César Pinheiro; MM: José Saramago, Fiódor Dostoievski; RP: Raduan Nassar, George Orwell; MM e RP, em uníssono: Guimaraes Rosa.

 

  1. O menestrel 

“Não gosto do ideal de jornalismo cultural como haute culture, seriedade de fraque, literatura de doutorzinho. Não deve existir um totem que não mereça ser derrubado. Ninguém e ‘inzoável’, nada e sagrado – principalmente nos mesmos (…) O que jamais faremos: usar dinheiro público” (DZ). 

“[Nossa] transparência de método e de finanças veio a partir da constatação de que muita gente do meio cultural vive a se lamentar de condições subumanas, mas não abre suas contas. Gosto de saber do tamanho do fracasso dos outros também. Não são poucos os casos de reclamões culturais de vida mansa” (DZ).

 

  1. Teatro épico

“A postura amadora e desapegada do RelevO nos favorece a não ter rabo preso, e isso atrai um público fiel. Somos uma várzea organizada, e essa leveza agrada – principalmente no meio literário, cujo senso de humor é inferior ao de uma endoscopia” (MR).

“Volta e meia entro em crise com esse chamado mundo literário, levado por alguns fatos como o de perceber que a literatura não tem importância alguma no correr cotidiano do mundo – a não ser para os que foram ou serão seduzidos por ela” (RP).

“A coisa menos ‘desperdiciosa’ da minha vida, até agora, foi a literatura e o que ela me trouxe. Concordo muito com o Leminski, quando ele diz que a poesia e um inutensílio. Acho que a literatura, no geral, é isso aí – um inutensílio” (MM).

“O escritor e um ser carente e o fracasso e sua moeda. O que fazemos, nos, do circuito cultural, e perfumar o fracasso. Isso deve incomodar aqueles de vida mais matemática, por assim dizer” (DZ).

 

  1. Fábula líquida 

“O mundo atual é cada vez mais superficial. E não se deve culpar as pessoas por isso, [pois] o sistema biológico não foi feito para essa avalanche de informações e imagens a qual estamos sendo submetidos – o que pode levar as pessoas a terem comportamentos contraditórios ao seu discurso” (RP).

“É legal o quanto recebemos de retorno dos leitores, mesmo (e talvez principalmente) o negativo. E bom saber que alguém se importa [com o nosso trabalho], a ponto de entrar em contato (…). Porém, sinto que o diálogo entre a newsletter e o jornal poderia ser melhor aproveitado” (MR).

“O que interessa para o RelevO e veicular trabalhos bons e relevantes [esteticamente] (…). Até me surpreendi de não ter tido mais feedback horrorizado de capas alegadamente chocantes. A exemplo da edição de dezembro de 2015, que não ficou nem no ISSUU de tanta imagem de vagina [estampada] na capa (…). No fundo, acho que temos pouco a perder. Então, dá para arriscar mesmo” (MM).

 

  1. Papel do jornal

“Ainda acredito no impresso como um organizador do cotidiano. Em meio a uma enxurrada de informações, excitações, vaidades e desejos por atenção, o impresso pode ser este espaço de concentração, de comunicação mais dirigida, de diálogo” (DZ).

“E preciso encorajar e incentivar mais mulheres a escrever (de preferência, sem dizer que são loucas), porque a diferença quantitativa e clara e, talvez, deva-se ao fato de que as mulheres nunca tenham tido muito espaço para isso” (MM).

“[Você acredita que o impresso continuará por muito tempo um eixo, um centralizador da movimentação cultural nesse mundo em que há tanta dispersão virtual?] Sim. Principalmente quando O EDITOR RESOLVER A MERDA DO ISSN! CARALHO, ZANELLA.” (MR).

 

  1. Olhando nos olhos 

O narrador expõe as respostas do núcleo editorial diante de um questionário feito sobre transparência. O recurso havia sido proposto, em 2007, pela Universidade de Maryland através de seu International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA).

Cabe aos leitores se posicionar diante do autorretrato pintado pelos editores, que relacionaram de forma unanime o RelevO a três dos cinco procedimentos identificados a “Accountability”: (a) Correção de erros: existe disposição para reconhecer e retificar os erros cometidos; (b) Politica editorial: os leitores conseguem reconhecer quais são os valores que orientam o trabalho dos editores; e (c) Interatividade: os leitores têm canais para expressar seus comentários e críticas.

O quarto tópico – transparência publicitária – recebeu a maior parte dos votos (“o jornal expõe eventuais conflitos de interesses”), enquanto que a questão relativa a propriedade ficou próxima da marcação zero entre os editores (“os leitores sabem quem são os ‘donos’ do jornal”). Nesse momento, o apresentador discursa a plateia sobre a materialidade do mundo: segundo o estudo de Maryland (“Openness & Accountability”), apenas 11 dos 25 canais globais pesquisados publicavam ou transmitiam correções de matérias de maneira clara, e somente sete mantinham ombudsman. Uma realidade cruel e anunciada: “quando o assunto e transparência, até a BBC pode tomar umas aulinhas com o RelevO brasileiro”.

 

  1. Desfecho

Literatura, transparência e humor. Em sua última colaboração como ombudsman, o narrador afirma que é com essas três palavras que resume o jornal RelevO. Para ser mais claro, ele disserta: (a) literatura como cultura – antes mesmo de ser pensada como arte; (b) transparência como a exposição das escolhas editoriais em estética e “gestão”; e (c) humor – ora autoderrisório, ora ferramenta de liberdade de expressão.

O locutor convida ao palco seu substituto, o jornalista Silvio Demétrio. Elogia o “formalismo psicodélico e esquizoanalítico” de Demétrio e lhe entrega em mãos o machado viking dos ancestrais ombudsman. Embora tal cargo e objeto não estejam relacionados na Escandinávia, rendem uma metáfora para quem precisa invocar o poder dos leitores antes de partir ao meio as couraças da imprensa. O novo personagem recebe o amuleto e logo o tropicaliza, ao metralhar um discurso sobre Xangô na obra de Jorge Mautner. Cai o pano.

Ben-Hur Demeneck: Os satélites

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Além da edição de março, dois outros objetos voadores foram identificados na órbita do RelevO: a newsletter Enclave, que chega a seu número 31, e o especial “Escritoras da Geração Beat”. Ou seja, a crise criativa passa longe daqui. Sem contar as atividades que surgem por iniciativa ou por inspiração do periódico, como oficinas e saraus. RelevO está deixando de ser um jornal para virar uma “jointventure” que divulga o WikiLeaks.

 

  1. Os números 

Em 2016, o jornal publicou 25 páginas de poesia e 14 de literatura em prosa. Comparando com janeiro e fevereiro, a edição de março teve 35% menos poesia e o dobro de anúncios de página inteira. Os gêneros mais estáveis (e os menos presentes) seguem sendo a crítica literária e o humor, que recebem, respectivamente, uma e duas páginas só para eles.

 

  1. Ombudsman bom

Falta fazer uma consulta aos ombudsmen na Suécia, na Noruega e na Dinamarca. Diante do impulso da globalização em transformar tudo em espetáculo, tudo em mercadoria, talvez mesmo por lá ser “representante dos leitores” seja uma causa perdida, seja também considerado algo semelhante a espetar um tridente em colaboradores e concorrentes. Para resumir a recepção da ouvidoria na “República de Curitiba”: a cada coluna que publicamos, alguém pede para pregar nossa cabeça numa estaca.

 

  1. Leitor consumidor?

Dando mais um motivo para pedirem minha cabeça: não concordo que assinante cobre uma regularidade típica de grande imprensa para o RelevO. É quando faço duas perguntas: A edição não chegou até a primeira semana do mês? O conteúdo do jornal lhe decepcionou depois que chegou? Só vejo motivos para o assinante reclamar aos editores quando as duas respostas forem “sim”. Imprensa alternativa já faz muito em circular. Perdão pela franqueza.

 

  1. ISSN, a lenda

Há quem idealize a volta da Colônia Cecília. Há quem fantasie com a utopia   pintada em tela por Pieter Bruegel. Lá, o vinho jamais terminava, ninguém envelhecia e tudo era de graça – sexo, doces e refeições sem glúten. Eu, entretanto, não tenho tantas ambições. Meu sonho é bem singelo, prático. Ele é quase patético – eu só quero que o RelevO tenha um ISSN!

Afinal, se até o Charlie Hebdo tem um código de identificação – logo uma publicação que se arrisca por ignorar as convenções –, por que nós, “os diferentões”, não podemos ter? É só para dizer que somos alternativos ao mundo dos adultos? Que traumas cultivamos contra os bibliotecários e arquivistas para dificultar tanto o seu trabalho? Devido ao fato de eu já ter entrado na fila três vezes para cobrar o ISSN, eu mesmo me disponho a dar entrada na papelada. É só me passarem a procuração – juro que essa será a penúltima vez que vou cobrar.

 

  1. Precisa-se de críticos 

Nós precisamos de você, crítico literário inédito, no RelevO. Para começar, procure estar habilitado para descrever, comparar e interpretar sua leitura. Se você já faz isso, compartilhe conosco seus artigos. Se você souber relacionar publicações ao ambiente cultural em que elas surgem, saia da inércia: o Brasil precisa de você. É sério mesmo.

 

  1. A recusa

Os desaforos mais típicos contra a redação (comentam os editores) surgem diante do adiamento ou recusa de publicação. Caro e sensato leitor, conte para todos como você reagiria numa situação típica às vésperas da publicação – ter 30 poemas para dividir em 8 páginas e dispor de outros 15 contos para encaixar em 6 páginas? Resolva esse teorema. Você tem um mês para dar a resposta.

 

  1. Barril de pólvora

Por ser uma questão delicada, aviso que não estou dando recado a ninguém e nem endossando a crítica originária de setor limitado dos leitores. De um lado, um dos editores explica que desde 2014 o jornal tem forçado a mão para equilibrar a representatividade de mulheres neste tabloide. Ou seja, se um editor tiver de escolher seis poesias para publicar, tenderá a escolher aquelas que considera as três melhores escritas por homens e outras três que sejam assinadas por mulheres. De outro lado, alguns leitores homens têm reclamado com frequência do nível de poesias criadas por mulheres. Alguns deles acrescentam que haviam enviado material, mas acabaram preteridos por conteúdos que julgam menos interessantes. 

Questões estéticas à parte, que sempre merecem discussão, devemos evitar tentativas de desqualificação de pontos de vista legítimos – e que pode ser o caso. Diante de tais objeções, lançamos duas perguntas: (1) Se as mulheres são mais assíduas na leitura que os homens, segundo indicam as estatísticas de “Retratos da Leitura do Brasil” (Instituto Pró-Livro), por que as leitoras do RelevO não estão se queixando das autoras publicadas? (2) Será que homens ilustrados (assim como eu) têm problemas em reconhecer que há uma “perspectiva feminina”, igualmente importante tanto quanto é a nossa? Em outras palavras: Seja lá o que signifiquem “perspectiva masculina”, “perspectiva feminina” e “perspectivas etc”, é fato que há nuances entre os gêneros e que cada um deles merece visibilidade.

 

  1. Serviço?

A constelação de atividades e de publicações do RelevO favorece a emergência de uma “agenda cultural” que nos conte onde é que o Paraná está mais literário mês a mês. Não seria tal localismo que desacreditaria nosso título de publicação nacional. Pelo contrário, pois todo jornal possui o seu entorno imediato – é claro que ninguém aqui defenderia aquele provincianismo característico dos jornalões paulistanos, onde jornalistas costumam ficar com saudades de São Paulo quando saem do “centro expandido”. Em nosso caso, convenhamos: Curitiba já merece o reconhecimento de metrópole literária – mesmo contra a nossa vontade.

 

  1. Forma como conteúdo

Para descomemorar tamanha fragmentação do conhecimento de nossa era digital, também fatiei minhas colaborações em várias lâminas de presunto. Desejo aos convivas uma boa digestão dos frios.

 

  1. A penúltima

Tal como o boêmio em mesa de bar solicitando sua “penúltima”, anuncio à roda de conversa que escrevo minha “penúltima”. Depois de um ombudsmanato e de sua prorrogação, minhas críticas findam na edição de maio. Depois, o RelevO só terá notícias minhas a partir dos sinais enviados por minha caneleira eletrônica.

Ben-Hur Demeneck: (NÃO TÍTULO: [In.(ter)] dependente FC)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um dos experimentalismos do RelevO está em admitir um crítico editorial entre as páginas de um jornal literário. E mesmo tal temeridade parece pouco aos diretores, que convocam o colunista a se vestir de apicultor para apreciar ninhos de marimbondos como se fossem aqueles globos terrestres dos professores de Geografia.

Desta vez, o nosso alvo e o culto ao “jornalismo independente”. Afinal, como e que um valor profissional foi se transformar em recurso de marketing? Antes de abordarmos o problema, exibimos um making of: pela metade de cada mês, o editor envia a este ombudsman um relatório. A iniciativa favorece o diálogo entre os agentes da publicação e evita que um texto escrito remotamente perca de vista o “chão da fábrica” do veículo.

A lista dos temas assinala comentários de leitores, impasses de ordem administrativa, projeções editoriais e, em menor medida, duvidas filosóficas. As sugestões ambientam o ombudsman ao calor das repercussões em vez de o enclausurar em sua solidão de articulista. Em fevereiro, enquanto jurados cariocas concediam mais um “deeeeeez” a Estação Primeira de Mangueira, a caixa postal da ouvidoria recebia as provocações do editor Daniel Zanella. Uma delas saltou para fora da tela:

– O que é ser independente?

Quando se deixa de ser independente? Um veículo que já circulou com verba pública, via leis de incentivo, é um veículo totalmente independente? Tecnicamente, um veículo que depende de assinantes e anunciantes – como e o nosso –, e dependente deles. E se [o jornal] fosse feito só com o meu dinheiro? Ainda assim seria dependente de mim.

Para entender o porquê desse encadeamento de inquietações do editor, basta lembrarmos como seria fácil listar umas três dezenas de redações, coletivos e agencias de jornalismo que buscam colar sobre si o rótulo de “independente” – embora nenhum deles seja o RelevO. Mas o que se esconde detrás de palavra tão cobiçada e tão maltratada pela mídia? A coluna deste mês visita o saboroso pomar da imprecisão e da multiplicidade para saber por que a independência editorial pesa tanto aos ombros.

 

A interdependência 

Professores universitários da UnB, da UFSC e da UEL aceitaram compartilhar conosco o que pensam da independência editorial. Confira os comentários exclusivos para leitores do RelevO, a começar por Gustavo de Castro, docente de Estética na Universidade de Brasília:

“A independência é um mito. Um belo mito a ser cultivado – o que o assemelha a liberdade. Na prática, todo mundo depende de todo mundo. E todo mundo independe de todo mundo. Mesmo os jornais, quando querem ser independentes, ficam na ‘dependência’ do reconhecimento, ou na dependência dos patrocinadores, ou da Lei Rouanet. O que existe mesmo e a interdependência”.

“O uso [indiscriminado] do termo ‘independente’ se complica num contexto em que não existe jornalismo cultural brasileiro. Ele é uma piada. Está mais para um ‘negócio entre amigos’ (para usar um termo do Juremir Machado, professor da PUC-RS) do que para uma cobertura honesta, distanciada e profunda”, conjectura Gustavo de Castro, que e também poeta, jornalista e escritor. Ele publicou, em 2015, a biografia da poeta Orides Fontela – O Enigma Orides (Hedra).

 

Só os nômades

Silvio Demétrio, professor de Comunicação da UEL e colaborador da Revista Cult, busca o abrigo da filosofia para opinar: “a independência pode ser pensada como que remetendo aos domínios da singularidade, do ímpar. Em certa medida, romper com o senso comum é constituir-se como independente. É uma ação para sempre ad hoc [argumento usado com o objetivo de defender uma teoria]”.

“A independência e instável por ser essencialmente moderna. E um ato de acatarmos que o tempo nos perpassa. Ela age como se fosse um solvente de tudo que é fixo. Só nômades são independentes. Só o são aqueles que encontram satisfação na impureza do risco. Penso, por fim, na relação de esvaziamento que as palavras de ordem do marketing e do espirito de rebanho produzem sobre toda e qualquer ação – e o que ocorre com uma publicação não é diferente ”.

“Como não encarar o enunciado ‘jornalismo independente’ como um oximoro? [Expressão na qual se combinam palavras de sentido oposto]. Padecemos com um retorno ao publicismo – recalque histórico do romantismo revolucionário –, que agora ressurge numa versão despotencializada porque a serviçoo da redundância, da manutenção dos estados de coisas e do sempre igual. [Portanto,] viva a diferença! O múltiplo! Viva o Singular porque sempre outro!”, arremata Silvio Demétrio, que foi também o mentor intelectual do suplemento Gazeta ALT (2008-2009), em Cascavel (PR).

 

Garantia de autonomia

Para Elias Machado (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC), este nosso colóquio literário permite perscrutar a cultura dos jornalistas: “a discussão sobre independência serve para destacar a existência de diferentes tipos de jornalismo: partidário, empresarial, público, cidadão, etc. E cada um deles detém princípios e orientações deontológicas bem distintas. O que me parece importante é que, devido as diferenças existentes entre as instituições, a sociedade ‘funciona’ melhor quanto maior for a garantia de autonomia entre suas diferentes instituições”.

“É evidente que as instituições se influenciam. No entanto, não é recomendável que uma se submeta aos interesses da outra. Seria mais ou menos como se um deputado evangélico subordinasse os interesses do Estado – necessariamente plurais – aos interesses da Igreja a que pertence. Do mesmo modo, quanto mais partidário for um impresso, menor será sua capacidade de difusão para um público mais amplo e ideologicamente diferenciado”, compara Elias Machado, jornalista e doutor em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona.

 

Contra o quê?

Jornalismo não é matemática – ainda não. No entanto, se houvesse alguma equação que o aferisse, a “independência” seria uma de suas “variáveis dependentes”. E que para saber se um veículo e independente, a primeira pergunta que se faz e: contra o que se é independente? Afinal de contas, almejar a autossuficiência subverte as regências e, em vez de justapor, nós nos contrapomos.

Não basta “ser livre” e “ser contrário”: a publicação precisa identificar o colonizador de consciências que ela rejeita. Senão, carece de ela buscar outro grafismo para gravar feito tatuagem em sua pele. Mesmo que não queira, o RelevO pode ser encarado como independente. Ao menos, o periódico resiste em tratar a literatura como aquela soja ou aquela carne de frango que enviamos ao Porto de Paranaguá para trocarmos por produtos da Apple.

Ben-Hur Demeneck: Resenhas sob ataque

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O RelevO consagra um espaço para resenhas nas páginas anteriores à contracapa. Dois leitores foram convocados a opinarem sobre essa seção crítica. Como aqui queremos jornalismo em vez de propaganda, avisamos estar atrás da circulação das ideias em vez de vereditos. Dito isto, vamos aos pontos de vista dos convidados:

COMENTARISTA 1: “O jornal acerta quando publica críticas de livros novos, mas peca quando as críticas não contribuem ao aprofundamento e leitura dessa mesma obra. Em alguns casos, parece que o RelevO cai na mesma vala dos periódicos que publicam críticas de livros dos amigos. Ainda assim, como no caso do livro do Alexandre Guarnieri, Corpo de Festim, foi importante caminho para que eu conhecesse o livro, o lesse e o achasse incrível”.

COMENTARISTA 2: “[a crítica deste periódico está] há algum tempo repetitiva e adepta da brevidade (ou preguiça) intelectual. […] Se um texto está pronto para ser denunciado ao público, que o seja sem tropelias enviesadas, disfarçadas de impressão poética sem critérios e à margem de qualquer vocação mediadora”.

A experiência de leitura dos comentaristas tira qualquer dúvida sobre o quanto nossos resenhistas e críticos são acompanhados de perto pelo público. Corre, aliás, uma lenda de que escritor “tem o direito de ser ruim”, mas não o crítico. O motivo seria que o primeiro estaria autorizado até mesmo a se sabotar, enquanto o segundo carregaria um rosário de responsabilidades tão pesado quanto fosse o seu reconhecimento público.

Com o objetivo de embasar sua crítica, o segundo comentarista propôs um “pequeno exercício” e compartilhou conosco um inventário das palavras que estariam promovendo um carnaval de termos vazios e de mau gosto nas críticas do impresso. No grupo dos adjetivos, haveria um abuso de “autêntico”, “relevante”, “inusitado”, “extremo”, “maior”, “impactante”, “significativa”, “maduro/madura”, “atraente” e “interessante”.

Quanto aos verbos, abundariam os insossos “reflete”, “revela-se”, “reside”, “insere-se”, “constrói”, “desconstrói”, “traduz”, “destaca-se”, “nota-se”, “trata-se de”, “apresenta”, “dialoga com”, “flerta”, “soa”, “questiona”, “demonstra”. É como se fosse proibido o emprego de outros verbos dicendi. Nas expressões, parece haver um compromisso com o emprego de “deixou a desejar”, “intimamente relacionado com (…)”, “vale ressaltar que”, “vai da (…) a (…)”.

O COMENTARISTA 2, após listar a repetição de lugares-comuns, faz um diagnóstico severo de como têm sido escritas as análises literárias neste veículo. “A insuficiência de meios verbais para uma formulação estética minimamente sustentável, conteudística e formalmente falando, deriva da imediatez do crítico – e não da crítica”, arremata.

Mediante os comentários 1 e 2, esperamos que os críticos entendam este texto como um sinal de apreço a seus serviços. Voltaremos ao tema das resenhas em outras colunas, porque precisamos de guias para nos localizarmos entre as torres de livros e as nuvens de links. Para apaixonados por publicações como nós somos, as releituras nos causam muito efeito. Jamais ficamos indiferentes a elas.

Agradeço ao editor Daniel Zanella por fazer a ponte com leitores especializados, os quais compartilharam conosco seus pontos de vista. Na condição de jornalista, faço uso do meu direito de preservar as fontes. Ou seja, atesto que os comentaristas existem, enquanto aceito seu pedido por anonimato. O fato de eles não se identificarem publicamente não desabona suas críticas, elas apenas certificam que as retaliações pululam no meio literário.

 

Nazismo sob edição

Adolf Hitler quer entrar pela porta da frente do mercado editorial brasileiro. Diante de tal expectativa, peço licença aos leitores desta coluna para dar minha contribuição ao debate. Considero um dever intelectual opinar sobre qualquer tentativa de publicação de obras de inspiração racista.

Nossa imprensa, respirando por aparelhos, enquadra as iniciativas de edição de Hitler como “polêmica”. E se assiste à transformação do nazista em peça de liberdade de expressão. Se, na prática, sempre haverá gente disposta a publicar Hitler; uma pergunta de natureza ética estala em nossas mentes: sempre os valores do mercado devem preponderar sobre os da sociedade civil?

Hitler se tornou um ícone da “banalidade do mal”. Em termos literários, sua obra ora é totem, ora é tabu – mas nunca deixa de ser um discurso de ódio. Diante dos traumas do Holocausto, fica difícil contemporizar com o genocida.

Para começo de conversa, um livro amaldiçoado como Minha Luta não deveria ser editado e divulgado para figurar semanas a fio na lista de best-sellers da Veja. Recordemos que a corrida ao ditador se seguiu à liberação de seus direitos autorais. Ou seja: “são apenas negócios”.

“LIBERDADE DE EXPRESSÃO”: Seria muita sorte nossa se os liberais (aqueles que estão empenhados em “defender a publicação até de Hitler”) empregassem sua energia para denunciarem a violência contra jornalistas e a “censura judicial” dirigida à nossa imprensa, ambas repetidamente noticiadas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Segundo o Comitê de Proteção dos Jornalistas (CPJ), nosso país é mais perigoso para o exercício do jornalismo que o Iraque. Apenas por apurarem informações, seis jornalistas foram mortos no Brasil em 2005; na terra de Saddam Hussein, houve cinco vítimas.

Lembremos que uma das editoras, que é alvo da “polêmica”, presta enorme contribuição à nossa imprensa. Lamentavelmente, na hora de desarmar os espíritos e mostrar serviço de sua “edição duramente crítica a Hitler”, ela tenha optado por uma campanha publicitária a dois passos da apologia ao facínora.

PRATELEIRAS DO ÓDIO: Uma vez que Hitler está sendo reeditado, nada impede que tal “produto” venha a “aquecer esse segmento do mercado” e sejam criadas “prateleiras de ódio” a médio prazo. Sob o manto da “liberdade de expressão”, as editoras podem querer ampliar seu escopo de “documentação histórica” e, por exemplo, democratizarem o acesso aos infames “Protocolos dos Sábios de Sião” e “A História Secreta do Brasil”, de Gustavo Barroso, membro fundador do Integralismo.

MORAL DA HISTÓRIA: “Então quer dizer que você é a favor da censura de livros, caro ombudsman?” Nada disso. Eu sou contra Hitler e o que ele representa. Sou contra o Holocausto. “Você acha que uma lei deveria impedir a edição de um livro?” Não. Mas também não quero que Hitler crie jurisprudência para “prateleiras de ódio”. Quero que a cidadania valha mais que o consumo.

Para finalizar, penso que publicar Hitler não pode ser imediatamente associado à “liberdade de expressão”. O episódio demanda discussões éticas que superem o campo falacioso da “polêmica”. O fato dele estar morto e enterrado não isenta de responsabilidades quem “democratize” sua obra. Notas de rodapé não substituem o miolo de um título icônico na transformação do racismo em política de Estado.

Ben-Hur Demeneck: O preço da ousadia

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A capa de dezembro do RelevO fez com que alguns pontos de distribuição boicotassem a edição. A plataforma de digitalização de impressos ISSUU também censurou o conteúdo. Ela impôs um limite de idade para os usuários.

O episódio é exemplar para questionar as fronteiras entre experimentalismo e sensacionalismo, e para perguntar como se forma o “pacto” entre público, distribuidor e meio de comunicação.

Não que a capa de dezembro seja escandalosa. Não que seja destituída de conceito. Não que uma vulva (ou a sugestão dela) não seja algo tão lindo de se admirar como a paisagem do Grande Canyon ou que não seja tão misteriosa como fazer um passeio pelo Vale Sagrado dos Incas, partindo de Ollantaytambo. Nada disso.

A vulva está para a cotidiano como dunas estão para o vento. São paisagem, mas também movimento que compõe a geografia humana. A ilustração de Gustavot Diaz, quando elevada à condição de imagem da capa, dá a cara da edição – premia a ousadia à custa do consenso.

Paga-se o preço de lidar com um tema tabu de modo tão aberto. Quando um ponto de distribuição recusa receber o material, parece que algo se quebrou no pacto editorial entre veículo e aquele conjunto de leitores que iam àquela localidade pegar sua edição do mês e que deixaram de ter acesso a textos altamente vibrantes como “Coitus interruptus”, “Mulher é tudo louca”, “Amor Inconsútil”, “As Fantasias Eletivas (trecho)” e ao ensaio fotográfico feito por Ricardo Pozzo.

Os pontos que recusaram a edição provavelmente foram os mesmos que receberam as edições de junho e agosto deste ano, ambas com alta voltagem erótica. A primeira com fotografia de Isabella Lanave (R.U.A. Foto Coletivo) e a segunda com ilustrações de Maria Lima.

O olho da capa do RelevO de dezembro lembra o LP de Tom Zé, chamado “Todos os Olhos” (Continental, 1973). A capa resultou de uma parceria com Décio Pignatari e Reinaldo Moraes e faz parte da iconografia dos anos de resistência à ditadura. O troféu de quem bolou a capa cifrada e, naqueles anos de tantas indiretas, era afrontar o moralismo (e a hipocrisia).

A imagem em questão resultara de uma sessão fotográfica feita a partir de vários closes de uma bolinha de gude equilibrada num ânus de uma moça. Há versões que contam até que, apesar das sessões, o que acabara entrando na edição final fora um lábio que imitara a mucosa supracitada. Não importa. O troféu era fazer essa camuflagem para que os iniciados a reconhecessem no jogo de palavras com “olhos”.

Em termos estéticos, poderíamos falar que a capa de dezembro peca por tornar explícito algo cuja sutileza tem um poder expressivo superior. Afinal, em arte, faz parte da interação as pessoas “acabarem” a obra. Se o interesse é ser experimental, deixar o leitor alijado desse processo, no limite, pode parecer mais “vontade de aparecer” e “pretensão de chocar”, do que instaurar uma provocação no olhar.

A capa de dezembro provoca e, enquanto experimenta, anda na linha suave próxima ao sensacionalismo. Por outro lado, pode representar uma guinada editorial em busca de fortalecer a cumplicidade com leitores cativos. Para um segmento dos leitores, mais identificados a questionamento frontais, pode ser uma oportunidade de vínculo, de empatia inéditos. Nosso desejo para 2016 é que os pontos de distribuição do “boicote” reconsiderem sua posição. Os leitores não merecem ter que ir mais longe para pegar sua edição de janeiro, fevereiro e março para ler o jornal mais provocador da nova literatura brasileira!

 

O nome da autora

O RelevO trocou o nome de um colaborador. Agravante: identificou um transexual por um nome masculino em edição dedicada à diversidade sexual.

Em primeiro lugar, um jornal não pode errar nome dos seus colaboradores. Trata-se de um erro crasso. Em um jornal literário, a revisão de um nome deve ser tão minuciosa quanto o das regências e das concordâncias. Se for um nome cheio de consoantes, nesse estado marcado pela imigração eslava e por sua alcunha fantástica de “Rússia brasileira”, eu não criticaria quem contasse as letras e rabiscasse uma após a outra na conferência final. É que o patrimônio do autor é seu nome e suas circunstâncias.

Em segundo lugar, não basta “corrigir” o nome de alguém que optou por trocar de nome por sua condição de gênero. Por eu não saber o que sugerir, optei por entrar em contato com um especialista em gênero e política, o professor universitário Almir Nabozny, que é doutor pela UFRGS e professor na UEPG. Após um tempo de conversa, ele esclareceu que um dos problemas mais comuns a transexuais seria o contraste entre o seu corpo feminino e um nome masculino em situações públicas. Exemplo comum seria quando um médico o chamasse de tal maneira numa sala cheia de pacientes, causando um constrangimento desnecessário. Ou de quando se vai a banheiros de estabelecimentos comerciais e a prédios públicos. Luta pela qual Laerte Coutinho tem feito grandes batalhas.

Por outro lado, não se pode perder a visão ampliada do episódio. Um jornal que se preocupa em tratar da diversidade de gênero, em dar voz em que a vive, é uma publicação que está disposta em corrigir seus erros. 

Portanto, merece todo o nosso respeito. O azar é que tal deslize faça tanta diferença. Talvez a lição a se tomar é que em casos em que a representação se torne tão importante quanto o texto em si, convenha pedir assistência a quem esteja mais ligado à temática para supervisionar a página finalizada. Seria um modo de contornar a complexidade do tema para quem não tem familiaridade com assunto (até por isso é que eu, como representante dos leitores, busquei um estudioso).

Como canta o grande trovador de São Miguel Paulista Edvaldo Santana – “errar é consequência do que pode ser mudado”. Portanto, tal erro é antes uma tentativa de fazer certo: abrir espaço a vozes que aparecem pouco, mas que integram a diversidade de nossa sociedade. Em termos de reparar simbolicamente o que houve, a sugestão do professor Nabozny seria convidar a autora para se manifestar ficcionalmente sobre a importância dos nomes masculino e feminino em quem vive a condição transexual. Fosse uma autoficção ou ficção completa, não importaria. Fica a sugestão ao editor e à autora.

 

Autocrítica 

Na última coluna faltou eu enquadrar melhor a minha explicação de citar Aílton Krenak e outros expoentes da literatura dos povos originários. Ficou assim solto, sem a devida contextualização, a ponto de parecer até que Krenak havia escrito na edição prévia. No entanto, tratava-se de uma sugestão de nomes para nos aproximarmos do pensamento e da experiência de autores que, mais que sua visão pessoal, apresentam uma visão de etnia e de nação existentes desde antes de Cabral sonhar em ser marinheiro. Prometo ser mais cuidadoso na próxima coluna.