Ricardo Lísias: Até logo!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma ou duas colunas antes dessa, defendi a impossibilidade de um professor de literatura afirmar que um aluno estaria “lendo” um texto literário erradamente. Como disse, cada um constrói um sentido conforme muitos fatores diferentes, alguns bastante pessoais. Todo mundo, por exemplo, acaba transportando sua história de vida para a interpretação de um poema. Aceitar uma leitura, mas não outra seria, dessa forma, dizer que experiências são mais ou menos válidas. Não é possível.

Na minha opinião, pode-se corrigir apenas a redação de um aluno. Muitas vezes ele não consegue se expressar com clareza. Com algum esforço – em alguns casos com muito esforço –, o professor pode sugerir novas maneiras de escrever, sanar vícios e oferecer estruturas argumentativas mais eficazes. 

Não tenho dúvidas disso. No entanto, acabei achando meu texto incompleto. Recebi algumas mensagens com perguntas. Uma delas me deixou bastante pensativo: e se um aluno, durante uma determinada interpretação, aparecer com uma interpretação racista? O professor terá ou não legitimidade para contestá-lo?

Acredito que sim. É perfeitamente razoável a discussão sobre o uso de textos discriminatórios em sala de aula de um autor como Monteiro Lobato. Entendo os grupos que acreditam que textos dessa natureza não deveriam ser usados. Eu não os usaria em uma aula do Ensino Fundamental, por exemplo. De uma forma ou de outra, se um professor optar por levar aos estudantes um texto racista, parece claro que o assunto deve ser a priori discutido.

Mas não era disso que eu estava falando. Um aluno talvez revele sentimentos racistas ao interpretar um poema. Nesse caso, o professor pode e deve intervir, no sentido óbvio de garantir a preponderância dos direitos humanos diante de quaisquer outras questões. Aqui a construção do conhecimento se dá sempre a partir do universo prévio de cada um dos alunos. Sem dúvida, para muitos leitores desse texto já deve ter aparecido o nome de Paulo Freire.

É isso. As ideias do nosso maior intelectual não se aplicam apenas à alfabetização. Todo o processo escolar, nos seus mais diferentes graus, precisa partir do universo do próprio estudante. Dele em diante, com certeza pode haver não apenas a formação de leitores aptos a expressar seus próprios sentidos, mas para construir um mundo mais próximo do que preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Esse é meu último texto como ombudsman. Agradeço a leitura de todos. Foi divertido e instrutivo. Quanto ao ataque histérico do secretário do cardeal Ratzinger na página ao lado, acho que vou deixar passar. Segundo ele, as coisas vão começar a dar errado para mim. Aguardo ansioso esse dia. O coroinha está mal informado, mas me deixou com medo: buuuuuuuuuuuuu.

Ricardo Lísias: A polícia da literatura e as polícias

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Outro dia recebi um comentário feito no Twitter sobre uma das minhas últimas colunas para o RelevO. Para indicar constrangimento ou um certo desespero cafona, a pessoa reproduzia sem aspas algo que eu teria dito aqui. Embaixo colocava a imagem de uma mulher com o rosto em desespero, as mãos na cabeça e um cigarro entre os dedos e o cabelo, quase colocando fogo no loiro oxigenado. É uma estética dos anos 1980. O espanto se dá porque eu teria dito que o “cânone literário é só reflexo do poder da classe privilegiada”. As aspas agora são minhas e indicam o que o tuiteiro afirma que eu afirmei. 

Enfim, se colocada no contexto da coluna, minha afirmação não tem absolutamente nada demais. Ela apenas ecoa as discussões de uma crítica que vai de Walter Benjamin a Jacques Derrida, passa por Silviano Santiago e Roberto Schwarz, Richard Rorty e seja lá qual outro nome o leitor quiser. Trata-se de uma das principais discussões das últimas décadas não apenas na teoria literária como em todo o pensamento de ciências humanas. Eu afirmei uma banalidade.

Como se pode ver, a figura não tem noção de coisa alguma. Trata-se de um fenômeno muito comum no mundo contemporâneo: sem nenhum conhecimento, fulano vai a uma rede social, diz qualquer negócio e logo uma manada o segue, engrossando o caldo do besteirol. Meu exemplo é singelo e na verdade serve apenas para mostrar que comportamentos como o de espalhar que uma militante de direitos humanos tinha ligação com o Comando Vermelho e uma exposição de arte promove pedofilia estão muito mais próximos da gente do que às vezes parece. E do mesmo jeito, a figura que acha estar defendendo algum tipo de tradição que jamais existiu para além de sua empáfia está bem mais perto do fascismo, como dizem Umberto Eco e Timothy Snider, do que às vezes parece.

No início de março, estive em um debate de lançamento de uma revista sobre a ditadura militar brasileira. Conversamos eu, o MC Leonardo, responsável por grandes movimentos culturais em algumas comunidades cariocas, e Rick Goodwin, jornalista que participou da equipe que criou e fez o Pasquim, um dos nossos últimos espaços de resistência verdadeira à barbárie na imprensa. Dois dias depois, enquanto esperava a esposa em uma estação de trem, Goodwin foi espancado pela polícia carioca e perdeu dois dentes. Até agora ninguém sabe os motivos da agressão. 

O que dá força e motivação para a polícia fazer isso e coisas ainda piores, como as contínuas chacinas e o genocídio da população negra e pobre do Brasil, são os micropoliciamentos que as pessoas realizam por aí. É um clichê, eu sei, mas às vezes eles servem muito bem: primeiro, é a gente que tem que mudar.

Ricardo Lísias: Para os professores de literatura

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Discordei algumas vezes das reclamações dos editores do RelevO quanto à produção do jornal. Agora, quero concordar: vi uma nota na página do jornal do Facebook sobre a situação dos Correios. Parece de fato a pior possível. Não me lembro de ver uma empresa estatal ser sucateada tão rápido. Todos conhecemos os reais propósitos do governo de Michel Temer. Obviamente, estão fazendo com que a empresa valha o mínimo possível, para depois vendê-la barato aos donos do dinheiro que o mantém em um posto que ele jamais deveria ter ocupado. Mas o caso dos Correios é escancarado demais. É lamentável, como tudo que Temer faz.

Vou ocupar o espaço dessa vez para fazer um balanço das reações às minhas leituras. Uma agressão até pode gerar algum raciocínio, mas não é o caso. Quero apenas observar a afirmação de que não entendi esse e aquele texto. Um leitor achou que eu deveria conhecer um pouco melhor uma das letras de Neil Young antes de afirmar isso ou aquilo. Para ele, então, a interpretação de um trecho deve responder ao restante da obra. Não posso, por exemplo, pegar um parágrafo de um livro e falar sobre ele o que eu quiser, se a totalidade não confirmar a parte menor.

Salvo engano, mais de um leitor acusou o fato de eu ter errado o gênero de um texto. Eu deveria ter entendido que não se tratava de ficção, quando li como um conto. Para esses leitores, existe algo pré-definido em um texto e eu tenho que obedecer a essa determinante. Do contrário, eu não entendo o texto direito.

De forma nenhuma. Não vou obedecer a determinante alguma. Não é o autor de um texto que vai me dizer se ele é de ficção ou não, do mesmo jeito que não será a totalidade de uma obra que me impedirá de achar um sentido para um trecho em separado. Quem manda na minha leitura sou eu, apenas eu e leio do jeito que quero.

Naturalmente, temos aqui um impasse: se é assim, esses leitores também estão certos ao afirmar que não entendi nada, já que eles não têm a obrigação de acatar a forma como leio? Não me resta dúvida. Estão certíssimos. Mas se eles estão certos ao dizer que estou errado, então estou errado ao dizer que eles não estão certos? 

Seria ocioso continuar a brincadeira. Jorge Luis Borges já percebeu isso faz tempo. Quando estamos diante da arte, não existe nenhum tipo de opinião errada. No máximo, alguns se expressam melhor do que outros. Na verdade, essa coluna é para os professores de literatura. Vários estão lendo esse texto. Não digam aos seus alunos, por favor, que eles não entenderam um poema. Vocês não sabem que tipo de bagagem aquela menina traz para dizer que “A máquina do mundo” fala do avô dela. 

Um professor que diz para um aluno que ele não entendeu uma obra literária é um autoritário. Não é possível ensinar o sentido de um texto para ninguém. Só dá para explicar que o estudante escreveu uma frase pouco clara, sem sentido ou truncada. O que dá para fazer é deixar as pessoas falarem o que elas bem entenderem. Se a gente não aceitar a interpretação de um adolescente para um poema, podemos estar agredindo algo de muito íntimo e importante para ele. Se não isso, no mínimo vamos afastá-lo da literatura. Imagino não ser o caso de ninguém aqui…

Ricardo Lísias: Esqueci

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Por gosto pelo experimento, resolvi que escreveria minha página para o RelevO de fevereiro assim que o primeiro texto da edição de janeiro me chamasse atenção. Como já tinha comentado o editorial e as cartas antes, decidi que pularia essas seções. Enfim, passei para a página 8, a primeira a que me detive. Acabei me desviando um pouco e fui atrás de uma das HQs citadas na introdução à entrevista de DW Ribatski. 

Quando voltei, o texto da página 10, “Meu querido melanoma”, não deixou muito espaço para indiferença. Mais uma vez, fechei a janela e saí atrás de referências. Fiquei bastante tempo navegando daqui para ali. Esqueci o que tinha vindo fazer aqui no computador. Ao me lembrar, já tinha ficado muito tarde e repeti para mim mesmo que continuaria no dia seguinte.

Na terceira tentativa, li o que me faltava do jornal de uma vez só. Eu realmente tinha me decidido a escrever esse texto naquela hora. Minha primeira distração foi a risada que me causou o texto de Felipe Pauluk. Esqueci de tudo outra vez ao ler a matéria sobre a retomada de Hilda Hilst. Acredito que estamos no momento histórico mais adequado para a leitura dessa obra estranha e eloquente. É uma autora que se livrou de qualquer compromisso que não seja a realização de um projeto estético amplo: nem mesmo a fronteira dos gêneros literários a intimidava. Tudo ali é deriva, rescaldo e liberdade.

Há uma ligação sutil entre a matéria sobre Hilda Hilst e o texto “A demonização da mulher pública”, mas tentar desenvolvê-la aqui não seria muito honesto comigo mesmo: daria a impressão de que o meu experimento inicial foi bem-sucedido. Como já ficou claro, não foi. Outra vez eu tinha me esquecido da tarefa de escrever essa coluna. Tenho lido sempre que posso os textos de Carol Rodrigues. A sua lista de compras é ao mesmo tempo divertida e intrigante. É o tipo de texto que deixa o leitor vermelho por estar gostando tanto. 

Terminei essa terceira leitura indo atrás de outros textos de Marin Sorescu. Na hora, o poema lembrou-me os melhores trabalhos de Aglaja Veteranyi. Só hoje, quatro dias depois, lembrei-me de que tinha esquecido de escrever essa coluna. Fiz uma mini antologia pessoal de Sorescu e estava com ela. A edição de janeiro ficou tão boa que a gente até esquece que está lendo, mas não do que está sendo lido. Penso que talvez seja essa uma boa definição de publicação muito bem-sucedida.

Ricardo Lísias: Argumentar é melhor

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma vez, na plateia de uma conversa entre cinco escritores latino-americanos que estava começando em Guadalajara, no México, espantei-me ao ouvir a declaração do mediador: o brasileiro não precisa se preocupar e pode discordar dos outros, se quiser. Eu tinha ido justamente porque gosto muito da obra do meu conterrâneo e lia naquele momento, bem admirado, o livro de um peruano que estaria à mesa. De fato, os brasileiros somos conhecidos internacionalmente por nunca discordar de ninguém. Depois, em Frankfurt, um tradutor observou em um debate que o brasileiro presente havia concordado com uma opinião e depois com o contrário dela.

Na mesma feira de Guadalajara, aliás, achei que um escritor, de tão exaltado, iria de fato dar uns murros no seu colega de mesa. Por mais força que faça, nesse caso minha memória não está tão afiada. Do interlocutor eu me lembro: era Mario Vargas Llosa, que havia acabado de ganhar o Prêmio Nobel. Uma hora depois, com a feira já fechada, dou de cara com os dois conversando em um restaurante. Parece que não levaram a mal.

Não é só na literatura. Outro dia vi um professor comentando que no café da universidade um colega seu lhe dissera, muito espantado, que no meio de uma entrevista uma jornalista espanhola havia discordado de uma opinião, lançando um argumento contrário. Para ele, a atitude soara como ofensiva. 

Quando recebi o convite para fazer uma coluna mensal no RelevO, sempre comentando o conteúdo da edição anterior, achei a ideia ótima. Eu já o conhecia e gostava do acúmulo diferente de vozes e formas. Talvez achasse o que dizer. Até hoje, não conheço pessoalmente nenhum dos responsáveis pelo jornal. Quem sabe algum dia a gente tome um café ou, dependendo do horário, um vinho. Sou paulistano, mas não gosto de chope.

No começo desse ano, falei uma frase ou duas a um jornalista sobre história em quadrinhos. Um pouco depois da publicação da matéria, um tradutor especializado mostrou o tamanho da bobagem que eu tinha dito. A estrutura da fala dele era a seguinte: Ricardo, você está errado, pois [e seguiam alguns argumentos]. De fato, eu me equivoquei.

Não vou conseguir vencer o assunto em uma coluna apenas. Acho que, no nosso momento histórico, é preciso muito cuidado para não falar demais. Tem muita gente dando bom dia a cavalo. Mesmo assim, paro um minuto para tentar entender como alguém pode escrever uma carta para um jornal dizendo que está cancelando sua assinatura porque agora, além de piadas, há um ombudsman. Enfim, logo se vê que é alguém de mau humor.

Até onde sei, há cartas mais agressivas dirigidas a mim. Estou meio acostumado. No caso, porém, não seria mais razoável que fossem apresentados argumentos contra as minhas ideias? Pelo jeito, a assinatura foi cancelada porque alguém discorda de algo que a pessoa gostava e isso é inadmissível. Como se sabe, sociedades sem tolerância para a crítica estão muito propensas a aceitarem ser controladas por pessoas que não gostam mesmo que os outros pensem. 

Imagino em quem essa gente que não argumenta, apenas afirma, vai votar em 2018.

Ricardo Lísias: Confusão

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Devo confessar que fiquei paralisado diante do editorial do último número do RelevO. A edição de novembro trouxe um conjunto de textos enfeixados sob um tema: a negritude, para usar um termo da própria apresentação dos editores. Edições temáticas podem ser interessantes também para contornar a fugacidade que, por definição, atinge os jornais. Um pesquisador irá procurá-lo daqui alguns anos. Os estudantes podem, desde já, usar a edição como fonte e matéria de informação. Os leitores, enfim, acabamos mais bem embasados se o tema nos interessar. Periódicos temáticos sempre me agradaram muito – por isso, aliás, lamento tanto o fim da circulação da revista Granta no Brasil.

Achei que na desnecessária intenção de se justificar, o editorial acabou se confundindo todo e lançando argumentos para lá de ultrapassados. O primeiro parágrafo, por exemplo, fala da tal “qualidade literária”. Ela não existe. O que se conhece por “cânone” é basicamente a imposição de grupos que, por ocupar espaços revestidos de poder para tanto, determinam critérios que incluem alguns textos e excluem outros. Trata-se de uma operação de violência. 

A citação de Campos de Carvalho veio bem a calhar: há algo de nonsense em dizer que “a derrota é certa”. Eu não acho. A edição está ótima, mas tem um editorial muito defensivo. As pessoas que digam o que quiserem. Se os editores admitem que fazer a seleção para o jornal é um ato crítico, criar argumentos para classificar a qualidade dos textos dele também é. Nós e os outros temos todo o direito de sermos igualmente críticos.

Já a citação de Machado de Assis me pareceu quase uma esperteza. Lançar mão do nosso maior escritor é um lance de segurança. Eu discordo do que ele diz: não acho que seja possível existir uma consciência “tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas”. Quanto a Henry James, fico com um meio termo. Penso, como ele, que qualquer experiência nunca é completa. Meu texto não vai dizer tudo o que eu quero, então ele será sempre limitado, ao contrário do que ele diz depois.

O editorial derrapa mesmo no final, quando diz que acredita ter ultrapassado o “arvoredo ideológico”. É o contrário. Se houve um ato crítico para a seleção de um tema, a única coisa que se impôs foi uma ideologia. Não há problema nenhum nisso e não poderia ser diferente. A ideologia não “priva o olhar de maior pujança crítica”, mas sim o torna menos cínico: até hoje quase que só homens brancos tiveram a possibilidade de ver seus textos medianos e chapa-branca serem publicados e, muitas vezes, considerados bem melhores do que são. No Brasil contemporâneo, é batata, como diz meu vizinho. Se desde o início tivesse ficado claro que não há nada nisso que não seja ideologia, quem sabe essa violência tivesse sido ao menos controlada um pouco.

De resto, a edição ficou excelente.

Ricardo Lísias: Win & Rock in Rio

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A edição de outubro do RelevO parece ter aprimorado algo que se mostrou um grande acerto no número anterior: as páginas centrais. O uso do humor para criticar a tendência de infantilização e de mercantilização das questões psicológicas contemporâneas foi um enorme acerto, como já tinha sido com os emails que resumiam a politicagem e a agressividade preponderantes no “meio literário”. Agora ficou ainda melhor e mais divertido, o que já deixa expectativa para os próximos. William Winner é uma grande personagem.

Do mesmo jeito, os poemas parecem ter chegado a um equilíbrio e me pareceram bem escolhidos. Outro destaque eu deixaria com a apresentação do trabalho de Robson Vilalba por Ben-Hur Demeneck, bem realizado e, ao que tudo indica, Vilalba ainda vai fazer coisas muito boas. O que eu conheço da obra dele parece das melhores produções do gênero, infelizmente ainda muito pouco praticado entre nós.

Eu esperava mais, no entanto, dos textos propriamente ensaísticos. Compreendo que uma análise do Rock in Rio possa comportar algum tipo de irreverência. Mas, diante da edição desse ano, cabia mesmo apenas a brincadeira? De longe, o menor dos problemas era a presença ali de músicos que, talvez, não fossem exatamente roqueiros. Do mesmo jeito, é verdade que nomes como “Rock in Rio USA” ou “Rock in Rio Lisboa” são cafonas, para dizer o mínimo.

O festival de 2017 foi realizado em uma cidade sitiada. Enquanto ocorria, o exército cercava diversos bairros que estavam no trajeto dos hotéis ao show. Milhares de pessoas viram seu direito de ir e vir cerceado, uma mesma quantidade de crianças não pôde ir à escola, o que aliás está se tornando um fato cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. Quantas pessoas foram assassinadas durante o Rock in Rio? Uma das universidades mais importantes do país, a UERJ, ficou agonizando enquanto o festival acontecia.

Aliás, a criação de uma bolha para a classe social privilegiada reproduziu o que já tinha acontecido durante as Olimpíadas. Como agora alguns dos responsáveis pela tragédia humanitária que se tornou a capital carioca estão presos, parece que se perdeu um pouco do pudor dos Jogos. Dessa vez, a calmaria ficou mesmo restrita às arquibancadas. Para o resto da população, foi o salve-se quem puder diário.

Considerando, por fim, que boa parte do rock sempre esteve relacionada a questões políticas – e nisso o primeiro Rock in Rio foi notável –, uma brincadeira que anima a conversa com os amigos no bar não é o mais adequado para discutir os verdadeiros problemas que cercaram o enorme evento em um jornal impresso dirigido ao público literário. O mundo não foi tão livre durante o festival, como queria Neil Young, que aliás já esteve em uma das edições e arrasou. E é por isso que faltou rock, não por causa desse ou daquele músico ou estilo mais deslocados.

Ricardo Lísias: Incômodo

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acabei em uma posição incômoda. Eu deveria, para cumprir com certa razoabilidade minha função de ombudsman, apontar o que me parecera ruim na edição anterior, de setembro, do jornal. Só que me diverti bastante com a leitura do RelevO de agosto. A página central, com um conto formado por trocas de emails entre o editor e alguns leitores, acabou me gerando umas boas risadas. E realmente valorizo coisas engraçadas, até porque vivemos em uma realidade cada vez mais indigesta, o que torna o humor raro e também difícil de fazer.

O projeto gráfico parece também ter sofrido uma alteração, tornando-se um pouco mais leve, o que é um ganho. E o jornal continua superavitário, o que também nos tranquiliza bastante. 

Quanto ao conto citado, achei que faltou apenas algo a mais no trecho da personagem Gabriella Feden. Não ficou claro se Daniel Zanella a estava paquerando. A resposta, enfim, parece ter sido promissora em caso positivo. Mas acho que, ainda que as coisas tenham se encaminhado para certa intimidade entre os dois, faltou para o leitor ao menos algum tipo de esclarecimento. 

Do mesmo jeito, não entendi muito bem por que o primeiro interlocutor, o mais divertido de todos, não recebeu um nome, mas sim a alcunha de Amargo. Evidentemente, ele está mesmo bastante amargurado, mas como os outros não ganharam apelido, parece que ele é o que mais irritou o narrador. Pelo tom das mensagens, porém, a personagem Daniel Zanella se irrita mesmo é com Ulisses Louzeiro, chegando inclusive a agredi-lo verbalmente.

Não são defeitos, porém, que comprometam o conto. A parte da Suzana César, por exemplo, está muito bem feita. Sinto falta, no contexto contemporâneo, de textos de ficção que sejam formados por essas novas maneiras de interação como o email, as redes sociais e outras. O fato ainda da personagem Zanella insistir, no ambiente virtual do conto, que está lidando com um jornal impresso acaba causando uma fricção também curiosa.

Eu tomaria ainda um pouco de cuidado com o título. Ao afirmar que está criando um diálogo com o meio literário, parece que apenas um dos interlocutores faz parte desse ambiente, quando obviamente não é assim. Aqui, também sublinho que é muito difícil ver os veículos assumindo-se como personagens de uma trama e enfim se colocando não como centro ou suporte de uma narrativa, mas parte dela.

Acredito, inclusive, que o autor deveria ampliar o conto, pensando mesmo em um romance. Mas aí não sei se estou reivindicando algo para me satisfazer: apenas sublinho que é esse o tipo de ficção que me parece a mais relevante hoje.

Ricardo Lísias: Heroísmo

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O editorial de agosto do RelevO me pareceu bastante ilustrativo de um certo abuso na utilização das palavras. Mais do que isso, é como se utilizar um termo para determinada situação seja suficiente para que ela ocorra. O jornal se declara um ato de subversão, basicamente por existir de forma impressa. 

Em todas as discussões sobre o livro virtual, por exemplo, um detalhe se repete: os autores parecem sempre ansiosos para ver seus livros também impressos. É como se o ebook fosse apenas uma segunda possibilidade, bem-vinda, mas apenas secundária diante do verdadeiro reconhecimento que é ver o texto impresso. Todo mundo que quer publicar, deseja publicar um livro. Nem todos, porém, fazem questão de que o mesmo texto seja publicado sob a forma digital. Apenas em ebook, acho que quase ninguém. 

Muita gente que adora ler fala com clareza que jamais vai aderir ao suporte digital. Os argumentos vão desde o cheiro do papel até a possibilidade de escrever um comentário na margem das folhas. Fala-se simplesmente de um hábito que, por ser tão agradável, não deve ser deixado para trás. Raros, por outro lado, são os leitores que dizem recusar a folha em nome da tela.

Fica então aqui a minha primeira inquietação: o que pode ter de subversivo em existir sob uma forma que todo mundo deseja? Do mesmo jeito, posso listar uma série de veículos impressos sobre literatura ou arte em geral que circulam com significativa desenvoltura no Brasil contemporâneo. Evidentemente, sei que muitos jornais e revistas de literatura ou cultura acabaram nos últimos anos. Outros apareceram e alguns continuam existindo. Aqui e ali a gente vê a reclamação: somos os resistentes! A palavra resistir, já gasta, vira um troféu. Só não listo dez resistentes subversivos para não ficar constrangedor demais. 

Somos todos subversivos?

Depois, mais surpreendente ainda foi ver o orçamento do jornal: se não entendi errado, ele é superavitário! Houve em agosto um lucro de 300 reais. Não há de fato nenhuma subversão em ter lucro. Certo, não é o lucro do Itaú, mas não vejo nenhum tipo de grande heroísmo em publicar textos de qualidade elevada, fotografias interessantes e um poema realmente excelente (o de Ismar Tirelli Neto) e ainda não perder dinheiro com isso.

Pode-se dizer que a doação pessoal dos responsáveis pelo jornal é o seu tempo. Ora, é evidente que eles gostam de literatura. Fica claro que sentem prazer em fazer o RelevO. Subversão não combina muito com isso. Que risco vocês estão correndo? Nem dinheiro perdem…

Acho que no caso houve um nítido abuso da palavra subversão. Parece que se declarar subversivo já é suficiente para que essa condição se realize. Não é o caso. Inclusive, os verdadeiros excluídos da ordem contemporânea não têm sequer o interesse em estabelecer com o status quo algum tipo de medida. Dizendo de outro jeito, talvez o verdadeiro subversivo esteja tão afastado da ordem que sequer mensure o seu espaço. 

O que eu senti foi uma espécie de gozo em se declarar subversivo. Mas em setembro de 2017, acho que não é tão fácil assim. Mais razoável é se enxergar um bom jornal. Qual o problema disso?