“O Brasil é uma ilha continental, e a gente é isolado pela nossa língua. Ao mesmo tempo, a gente consome a nossa própria cultura. A gente tem total interesse por nós mesmos, porque nós somos uma potência de 200 milhões de pessoas. Somos um país complexo – a gente não é um país periférico. A gente tem as nossas próprias questões. Eu conheço a cultura francesa, a americana, a russa, a alemã, a italiana, mas eles não conhecem muito a brasileira. E às vezes eu tenho pena de quem nunca leu Machado de Assis, de quem não conhece o Eça de Queiroz. Agora as pessoas descobriram a Clarice Lispector e escrevem assombradas. Como é que eu posso falar com alguém que não sabe quem é Nelson Rodrigues, que não sabe quem é Candeia? Então, ao mesmo tempo, o Brasil tem esse complexo de vira-lata dessa não comunicação com o mundo; por outro lado, o Brasil tem pena de o mundo não saber o que a gente sabe. Quando alguém fura a fronteira e leva algo que nos é pessoal para fora, é essa espécie de sentimento de ‘olha o que a gente tem de rico’. É um sentimento de orgulho nacional bacana, bom de sentir.”
O que o senhor diria a um jovem poeta que deseja ‘construir seu objeto’?
Essas coisas são muito difíceis. Primeiro, que evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta. Eu acho que a palavra maracujá é muito mais poética do que melancolia, porque maracujá você sabe o que é. Se eu ponho num poema maracujá, estou pondo um objeto diante de sua vista; se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro. Cada pessoa chama tristeza, melancolia, depressão e essa coisa de um estado diferente. Porque usando essas palavras abstratas você não pode ser preciso. Você dilui a poesia porque usa uma palavra que tem dez sentidos, cada pessoa dá o seu sentido a essa palavra, ao passo que maracujá ninguém confunde com manga.
João Cabral de Melo Neto. Revista ISTOÉ Senhor n. 1059, 3. janeiro de 1990.
Gustave Flaubert se perguntou: “Seriam os escritores muito mais que papagaios sofisticados?”. A maioria dos artistas conhece esse sentimento – de que estamos sendo conduzidos por algo alheio a nós mesmos. Todos nós escolhemos nossos estilos, materiais, modos, meios, ferramentas etc., mas a obra que criamos não é inteiramente uma questão de escolhas conscientes. Eu nunca sei bem o que vou escrever até que o escreva – e, ainda assim, não tenho certeza de onde veio o que escrevi. Essa é a alteridade da arte. Ela é tão poderosa que você às vezes pode se perguntar se a arte está nos usando para se reproduzir – se ela seria uma força cósmica autorreplicante (ou um fungo?) que nos colonizou em um serviço simbiótico.
Isso pode ser emocionante, mas também desconcertante. “É como se um fantasma estivesse escrevendo”, disse Bob Dylan, “só que o fantasma me escolheu para escrever a canção”. Não deixe que isso te apavore. Pelo contrário, aprenda a confiar nessa alteridade.
Jerry Saltz. Como ser artista, 2020 (ed. Seiva, 2024).
Acorda esse homem inesperada e injustificavelmente cedo, sem saber direito onde está, mas inteiramente certo de que aquela cama não é a sua. O despertar de quem dorme fora é sempre assim e a primeira sensação é uma desconfiança: terei sido raptado? Aos poucos, as ideias se arrumam, a inconsciência do sono vai cedendo lugar à lucidez das coisas exatas e a realidade se comprova na cor da parede, no desenho dos móveis, no cheiro da fronha e dos lençóis, que é uma agradável novidade olfativa. Esse homem chega à simples conclusão de que é um hóspede. Tem um dia grande e vadio pela frente. Poderá, se quiser, continuar na cama, lendo, tramando, cochilando e, mais que tudo, gozando a perspectiva do tempo sem horários e sem tarefas. Mas decide levantar. Antes, faz sua reza íntima de todas as manhãs, a que diz: “Não te deixes tomar pelo pequeno êxito e não te eleves acima do conhecimento que tens da tua frequente fragilidade” etc. Abre a janela. A bruma baixa desfigurou a silhueta dos montes. Vai chover e o dia terá um céu triste. Mas o vento frio da serra e as flores, que são tantas — amarelas, vermelhas, azuis — trazem uma alegria completa, uma impressão de salvamento, em que os cansaços e desgostos aparecem como penas já cumpridas. Dali por diante, esse homem está quite com os castigos e lhe chegam — como nos domingos da meninice — as esperanças, o ânimo, a ideia tranquila de existência. Esse homem não sabe se está apaixonado por uma mulher ou simplesmente pela vida. Mas, em seu coração, há um amor indefinido, que por si, pelo bem que faz, poderá ficar sem alvo certo, sem reciprocidade. Basta-lhe a manhã de vento frio, o perfume das flores e o verde do capim viçoso. Deve ser este um grande momento de sua vida, porque a sensação constante de saudade não está, pela primeira vez, entre os seus sentimentos.
Antônio Maria. Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp. 130-131. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 07/11/1954.
(…) Eu jamais poderia ser autossuficiente nos Estados Unidos; aqui tenho os melhores médicos completamente grátis e, com crianças, isto é uma verdadeira bênção. Além disso, Ted [Hughes] vê as crianças uma vez por semana e isto faz com que se sinta mais responsável na hora de pagar a pensão. Simplesmente, terei que continuar aqui me virando sozinha.
(…) Agora as crianças precisam de mim mais do que nunca, de modo que durante mais alguns anos tentarei continuar escrevendo de manhã e dedicando-me a elas durante a tarde, e verei meus amigos ou lerei e estudarei de noite.
Começarei a ir à consulta de uma doutora, também a cargo da Seguridade Social, que me recomendou um médico do bairro muito bom que conheço, e confio que me ajudará a superar esses tempos difíceis. Mande meu beijo carinhoso a todos.
Contexto: “Uma semana separa a última carta de Sylvia Plath (1932-1963) da noite, segunda-feira, lua quase cheia, em que abriu a válvula de gás do forno e enfiou ali a cabeça até morrer intoxicada. Seu ex-companheiro, o poeta Ted Hughes, havia definido a escritura de cartas como ‘um excelente treinamento para aprender a conversar com o mundo’. Não sabia que também servia para se despedir dele. Excelente escritor de cartas, Hughes redigiu textos secos e frios para comunicar a notícia fatal” [no link].
Meu pensamento vagueou por várias semanas em busca de um modo de começar. A vida de uma pessoa é algo inexplicável, eu dizia a mim mesmo, o tempo todo. Não importa quantos fatos sejam relatados, quantos detalhes sejam oferecidos, o essencial não admite ser contado. Dizer que fulano nasceu em tal lugar e foi para tal cidade, que fez isso e aquilo, que se casou com fulana e teve tantos filhos, que ele viveu, morreu, deixou tais e tais livros, ou essa batalha, ou aquela ponte — nada disso nos diz muita coisa. Todos queremos ouvir histórias e as ouvimos do mesmo modo que fazíamos quando éramos pequenos. Imaginamos a história verdadeira por dentro das palavras e, para fazê-lo, tomamos o lugar do personagem da história, fingindo que podemos compreendê-lo porque compreendemos a nós mesmos. Isso é um embuste. Existimos para nós mesmos, talvez, e às vezes chegamos até a ter um vislumbre de quem somos realmente, mas no final nunca conseguimos ter certeza e, à medida que nossas vidas se desenrolam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós mesmos, cada vez mais conscientes de nossa própria incoerência. Ninguém pode cruzar a fronteira que separa uma pessoa da outra — pela simples razão de que ninguém pode ter acesso a si mesmo.
Paul Auster, A Trilogia de Nova York, 1987 (ed. Companhia das Letras, 2010).
Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?
Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca… uma taça quebrada…)
eu só tenho um valor estimativo. [1]
Wim Wenders produziu grande beleza, e dessa vez em Tóquio. Este alemão é o diretor de Paris, Texas (1984) e de outros quatro filmes que seu amigo formado em Cinema te recomendou à toa (incluindo O Sal da Terra). Sua última obra, Dias Perfeitos (2023), acompanha um zelador japonês a viver uma rotina mundana — o que, logo questionaremos, talvez não seja um pleonasmo.
Hirayama, o protagonista (Koji Yakusho no mais alto nível), limpa banheiros. Com esmero, capricho, atenção. Ele acorda sempre do mesmo jeito; toma o mesmo café da manhã; locomove-se da mesma forma; mantém os mesmos hábitos (fotografia, jardinagem); descansa na mesma praça; banha-se no mesmo lugar; bebe o mesmo highball. Suas tecnologias já pararam no tempo, o que não demove seu prazer, uma vez que ele permanece entusiasta dos alimentos da alma, como música e literatura. [2]
Ao sair do cinema – pela primeira vez, pois acabei reassistindo dois dias depois –, os pômulos tremendo na contenção de lágrimas, retomei alguns questionamentos a que recorro com frequência. Isto é, sabendo que nosso tempo é finito, por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida?
Em outras palavras, em que consiste uma vida bem vivida? Algumas alternativas óbvias e cumulativas: viajar pelo mundo. Conhecer um grande amor (ou vários). Conquistar poder. Acumular dinheiro.
Qualquer indivíduo que já tenha vivido mais de meia hora neste planeta tem a humildade de não subestimar nenhum desses fatores e, ao mesmo tempo, reconhece que acima de todos eles reside o bem-estar volátil, intempestivo e eternamente angustiado de cada um. Viajar pelo mundo com um grande amor e muito dinheiro certamente ajuda, mas não garante satisfação alguma — não para sempre. Se Anthony Bourdain se matou, por que eu não me mataria?
Com maestria técnica e, principalmente, uma sensibilidade absurda, Dias Perfeitos nos permite absorver como “felicidade” é uma ideia complexa, contraditória e transitória. Mais que isso – a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada, isto é, aquilo que não pode nunca ser planejado, esperado, calculado (seja o efeito do vento nas folhas, seja o frescor do contato com alguém indiferente às convenções sociais). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.
Não se trata de um filme sobre “a beleza das pequenas coisas”, algo assim. Seu grande mérito é expressar de maneira tão singela como a alegria está contida na tristeza e vice-versa. Não há nada além do agora – o que não é uma frase motivacional, apenas descritiva – e nada existe além da nossa tão esquecida atenção.
E afinal, em que consiste uma vida bem vivida? Por ora, paramos para um interlúdio.
Interlúdio: sobre a redução da ética de trabalho
Aqui, vale mais do que nunca lembrar a anedota do pescador e do estudante de MBA, com tradução via DeepL e revisão nossa. A versão original dessa historinha partiu de outro alemão (!), Heinrich Böll. [3]
Um empresário americano estava no píer de uma pequena vila costeira mexicana quando um pequeno barco com apenas um pescador atracou. Dentro do pequeno barco havia vários atuns albacora grandes. O americano elogiou o mexicano pela qualidade do peixe.
O MBA americano de Harvard: quanto tempo você levou para pegá-los?
Pescador mexicano: só um pouco.
MBA: por que você não fica mais tempo fora e pega mais peixes?
Pescador: tenho o suficiente para atender às necessidades imediatas de minha família.
MBA: mas o que você faz com o resto do seu tempo?
Pescador, respondendo com um sorriso: durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com meus filhos, tiro uma siesta com minha esposa, Maria, passeio pelo vilarejo todas as noites, onde tomo vinho e toco violão com meus amigos.
MBA, interrompendo impacientemente: olhe, eu tenho um MBA de Harvard e posso ajudá-lo a ser mais lucrativo. Você pode começar pescando várias horas a mais todos os dias. Depois, você pode vender os peixes extras que pescar. Com o dinheiro extra, você pode comprar um barco maior. Com a renda adicional que esse barco maior trará, em pouco tempo você poderá comprar um segundo barco, depois um terceiro, e assim por diante, até ter uma frota inteira de barcos de pesca.
Orgulhoso de seu raciocínio aguçado, ele elaborou com entusiasmo um grande esquema que poderia trazer lucros ainda maiores:
— Então, em vez de vender seu pescado para um intermediário, você poderá vender seu peixe diretamente para o processador, ou até mesmo abrir sua própria fábrica de conservas. Eventualmente, você poderia controlar o produto, o processamento e a distribuição. Você poderia deixar esse pequeno vilarejo costeiro e se mudar para a Cidade do México, ou até mesmo para Los Angeles ou Nova York, onde poderia expandir ainda mais seu empreendimento.
Pescador: mas, señor, quanto tempo isso vai levar?
MBA, após um rápido cálculo mental: provavelmente cerca de 15 a 20 anos, talvez menos se você trabalhar muito duro.
Pescador: e depois, señor?
MBA, rindo: essa é a melhor parte. No momento certo, você anunciaria uma IPO (Oferta Pública Inicial), venderia as ações da sua empresa ao público e ficaria muito rico, ganharia milhões.
Pescador: milhões, señor? E depois?
MBA, lentamente: depois, você se aposentaria. Aí se mudaria para uma pequena vila costeira de pescadores, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com seus filhos, tiraria uma siesta com sua esposa, passearia pela vila à noite, onde poderia tomar um vinho e tocar violão com seus amigos.
Assombrados
Morrer de trabalho, como sugere a anedota acima, é apenas um dos caminhos. A verdade é que desperdiçamos a vida em jogos de vaidades, travamos diante do risco e congelamos por medo de aceitação. Por fim, preenchemos a existência com ruído e feiura. [4]
Não existe fórmula, tampouco algo mais solúvel que “felicidade”. [5] O que diabos é a felicidade? Quem disse que devemos perseguir felicidade? A vida é o que é, os seres humanos são humanos e fazemos o que fazemos — simplesmente. A magia acontece nas pequenas e inesperadas fissuras, nas grandes sensações de momentos discretos, minúsculas quebras da nossa percepção viciada. Repetição e rotina – seja para o zelador de Dias Perfeitos, seja para o editor do RelevO – não são um problema, e definitivamente não são o problema. Toda concentração traduzida em movimento é bela, e o que nos mata é a falta de atenção.
Eis algumas premissas pessoais para tentar, afinal, responder à pergunta principal deste texto. Adoraria “conhecer o mundo”, já uma simplificação (é possível conhecer o mundo?), e certamente associaria esse traço a uma vida bem vivida. Por lógica, isso significa que alguém imóvel leva uma vida menos interessante? Não necessariamente. Vastidão não implica profundidade.
É perfeitamente possível estar em outro lugar e não se submeter a nenhuma ruptura (o famoso brasileiro no estrangeiro procurando churrascaria). É perfeitamente possível se arriscar em uma novidade e continuar apenas um mala em diferentes continentes.
Mas esses são só dois exemplos. Estar em outro lugar favorece pequenas e grandes rupturas, e rupturas em geral favorecem a sensação de estar vivo – o que, por fim, favorece crer que não desperdiçamos a vida. É perfeitamente possível ter rupturas no próprio bairro onde se vive (e, claro, ir para longe tende a refrescar nossa visão local). A mera ideia de experiência já foi tão commoditizada que, por si só, cada um só pode ser seu próprio avaliador de genuinidade.
Como no poema de T.S. Eliot, “o fim de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida”. [6] Explorar o mundo externo é ótimo, mas e aí? Há todo um universo interior para cavucar. Encarar o banquete de consequências é duro porque nossas vidas intrinsecamente carregam um conjunto de vidas não vividas. O que nos aflige são as portas não abertas, principalmente aquelas já trancadas – ainda mais quando vemos outros abrirem. Somos assombrados por elas todos os dias.
Aceitar isso é, de fato, complicadíssimo. Se fosse fácil estar em paz consigo mesmo, não existiria… na verdade, não existiria muita coisa – quase nada! O que cabe a nós é não desperdiçar a nossa atenção, externa e interna. Preparar o café da manhã; limpar o banheiro; conversar com um desconhecido; fundar uma empresa; escalar uma montanha: não se trata do que fazer, mas como. Dias Perfeitos enriquece esse impasse.
De banheiro em banheiro – sem respostas –, seguimos.
Notas
[1] “A imagem perdida”, Mário Quintana.
[2] Aqui, o parágrafo inteiro do editorial: “O RelevO, este zelador sensível que chora de alegria sozinho no carro e de tristeza ao abraçar a família, sabe que a alegria reside na tristeza; e a tristeza, na alegria. Não somos os anjos de Asas do Desejo que leem pensamentos e se solidarizam com a melancolia humana — somos banalmente humanos e periódicos. Não há muito o que fazer além de, bom, continuar fazendo. Afinal, nosso tempo é finito: por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida? Em que consiste uma vida bem vivida?”.
[3] Somando com Wim Wenders, eis a agradável surpresa de que ao menos dois alemães parecem compreender que a vida é mais que eficiência.
[4] Compartilhamos o Universo com aberrações como museus de cera; bonecos Funko Pop; Blink 182; programas de auditório de TV aberta e memes corporativos.
[5] “What is happiness? It’s a moment before you need more happiness.
[6] Aqui a versão traduzida por Ivan Junqueira.
Segundo Renato Archer, com poucas exceções, nenhuma chefia tradicional da época falava em desenvolvimento, planejamento, quilometragens. De repente, a população começou a ouvir expressões como quilowatt per capita que assustavam os políticos tradicionais de todas as correntes. É conhecida a frase do coronel maranhense Vitorino Freira: “Quero lá saber de quilowatt, quero saber é de meus amigos”. Juscelino usava outra linguagem. Queria quilowatts, luz, força, estradas. Queria tirar o bolor de Minas. Os rotineiros o chamavam de leviano, mas o povo gostava que estivesse de bem com a vida, da sua gargalhada franca e ruidosa, do seu desassombro em face da inveja, de como saboreava as viagens e serestas.
Em Poços de Caldas, Juscelino entrava nas serestas do prefeito Agostinho Junqueira. Em campanha, era capaz de fazer cem quilômetros para garimpar um voto no distrito de Capim. Gostava de desarmar os espíritos, não perseguia, fazia visitas a ex-adversários da UDN, gostava de flores e de mulher bonita, mas graduava sua sensualidade e galanteria, aquém da concupiscência, pela prudência política, pelo background religioso, pela crença de que “quem escolhia era a mulher”. Mais importante ainda: não atendia políticos só interessados em nomear inspetores de quarteirão e transferir delegados e professoras. Seu clientelismo era de resultados.
Claudio Bojunga, JK: o artista do impossível, 2001 (ed. Objetiva).
Se você pensar cuidadosamente, criteriosamente, reconhecerá poucas verdadeiras motivações do ser humano antes de qualquer ação concreta. Para se mexer, um indivíduo muito provavelmente busca (1) conquistar alguém, (2) impedir o sono de um sem-teto ou (3) inserir um anúncio em algum lugar. Quase todo o desenvolvimento do planeta na Idade Contemporânea pode ser explicado a partir dessas três fontes de motivação.
Se ou quando o ser humano morar em Marte, será para impedir mendigos de dormir de graça lá. [Ou para inserir anúncios.]
Aqueles com pouco mais ou pouco menos de 30 anos tendem a se lembrar da internet com nostalgia. Usávamos essa ferramenta para nos distrair do mundo real, enquanto hoje precisamos do mundo real para escapar da internet. Nesse aspecto, as limitações ajudavam: o fato de você estar obrigatoriamente fechado em algum espaço – isto é, sem internet móvel – configurava uma mudança clara de estado. Ou você estava conectado (e preso a algum espaço físico para, afinal, conseguir estar conectado) ou estava desconectado e, portanto, na vala comum daquilo que chamamos de vida real.
E então esses dois universos começaram a se misturar, para a alegria do nerdão ex-hippie de jeans e gola rolê preta.
Como já é sabido, nascemos tarde demais para explorar o planeta e cedo demais para explorar a galáxia. A única janela mágica de exploração a que tivemos acesso foi a virtualidade, a internet como uma passagem lúdica de vivenciar o outro (lugar, personalidade, comportamento) e vislumbrar o desconhecido. Acreditávamos – filosófica ou intuitivamente – que criaríamos [ou estávamos criando] novas estruturas. Enquanto isso, no contrafluxo, as velhas estruturas de mídia acordaram, aprenderam e tomaram conta do nosso espaço mágico.
Ademais, envelhecemos e, pasmem, gente ainda mais velha passou a ocupar (mas, principalmente, estragar) nossos espaços. Hoje, já somos os intrusos de novos espaços, estragando-os para nativos mais jovens que nós.
Ah, sim, os anúncios.
Sem grandes soluções para o velho problema da rentabilização – e uma vez ocupada a terra de ninguém, quando não havia estruturas para combater pirataria e/ou fazer valer qualquer copywright –, a internet se encheu de anúncios.
Hoje, abrir qualquer página nova na internet sem um bloqueador de anúncios é uma tarefa estressante. Um pop-up, uma caixa de cadastro (nosso site também tem!), um anúncio rolando para cima, um banner embaixo. Vídeo, autoplay, mais pop-up. E os aplicativos em geral não são tão diferentes.
Talvez não haja exemplo mais simbólico desse senso de derrota que o da Netflix. Estamos falando de um sucesso da virada digital que desestabilizou até hoje toda a sua indústria. Um ícone de sua era e a vanguarda entre seus concorrentes. A imaterialidade em pleno funcionamento (mesmo que a empresa tenha começado com DVDs). A companhia que arrotou por anos sua superioridade por não depender de anúncios.
E a Netflix adotou os anúncios. Ou seja, copiou o que há de mais tradicional e menos imaginativo na televisão mais arcaica. E, obviamente, deu certo. Obviamente (de novo), seus concorrentes vão todos correr atrás. Então… é isso. Essa é a solução. Essa é a disrupção entrando na própria bunda. A grande ideia consiste em… anúncios. Eis a deprimência.
Modismos de mercado sempre impressionam, embora nunca surpreendam. Já reparou em novos cartões ou máquinas de pagamento atendendo por “rosinha” ou “laranjinha”? Caramba, de onde será que isso saiu?
O problema em questão é muito mais estético que ético, ao menos no que tange aos meus incômodos. Não me perturba a tentativa de me empurrarem um produto ou serviço (e se deveria fazê-lo, mas meu cérebro já definhou na configuração mercadológica da sociedade, é outra discussão). Há propagandas e propagandas; anúncios e anúncios. Já me emocionei com propagandas: de imediato me lembro de uma da Mastercard (!) que envolve Pelé e álbum de figurinhas. É (ou pode ser) uma arte — não adentraremos essa discussão, porque, mais que inútil (nada contra), não é divertida.
Nota inserida após a publicação: infelizmente, só assistimos a isso aqui depois de dispararmos o texto. A sensação de refrescância (mesmo diante de uma propaganda de banco) deriva da tentativa genuína de pensar e executar algo realmente criativo, não “meme-da-semana” criativo. Óbvio que estamos falando de uma produção, mas esse é um problema de quem controla o orçamento. Enquanto espectador e possível cliente, é um acerto claro. Tardiamente, também nos lembramos deste ótimo exemplo aqui. Quando forma e conteúdo se conectam com um propósito claro, magia acontece — em qualquer contexto.
E não há nada novo em expor produtos. Tomemos como exemplo a “Anunciação” (~1564) de Ticiano. De acordo com [Sir] John Hegarty, ali já temos uma notória publicidade indireta: o vaso de vidro no canto inferior direito da tela – discreto, sutil, desnecessário – indica aos rivais romanos e florentinos que o vidro veneziano era o melhor entre os produtos.
Outro caso: “Um Bar em Folies-Bergère”, de Édouard Manet (1882), com as garrafas da cerveja Bass (também referenciada por Picasso). Puta product placement, mêo.
Inclusive, a suposta pureza de intenções é uma das balelas mais superestimadas na história de qualquer arte. Se alguém produziu beleza porque se encantou com o por do sol ou porque vendeu sua visão ao dono de uma franquia da Cacau Show, o Universo é indiferente.
É sabido o quantoDostoiévski escreveu essencialmente por dinheiro, isto é, por precisar dele (até passamos por isso em nosso texto sobre apostas). Crime e Castigo não seria necessariamente um romance melhor em outras condições – é até mais fácil argumentar o oposto. Toulouse-Lautrec foi contratado pelo Moulin Rouge (permuta!) para desenhar seus tão copiados cartazes, que se tornaram icônicos do mesmo jeito. Um dos mais belos discos de Tom Jobim foi encomendado pela Odebrecht. É menor por isso? Não. Tanto faz.
Apenas um grande artista é funcional o suficiente para não depender de motivações puras ou algo assim… O capricho absoluto é o desapego. No frigir dos ovos, o que fica é o que foi feito, e não sua motriz.
Enfim, os anúncios.
Telas favorecem anúncios, e hoje tudo é tela (o que aconteceu com os táteis, ágeis e intuitivos botões?). Temos telas nas ruas, nos ônibus, nos aviões, nos elevadores. Portanto, temos anúncios em todos esses espaços. Não existe AdBlock pessoal, ao menos por enquanto. Fechar-se em qualquer espaço público praticamente presume a companhia de alguma subcelebridade gritando sobre um fundo colorido. Fechar-se em seu próprio mundo, com fones de ouvido, também – ao menos enquanto você não paga. Eficaz ou não, trata-se de um desfecho deprimente.
E por que tudo é tela? Bom, vale lembrar da regra 3 do início do texto (e, claro, do fato de a tecnologia das telas ter avançado drasticamente em 20 anos – lembra como monitores e TVs eram tenebrosos, pesados e cansativos aos olhos? [Não somos luditas!] –, além de ter ficado muito mais barata). Aqui preferimos a explicação pelo viés da sociologia de boteco e, portanto, afirmamos, sem qualquer base, que se a tecnologia das telas avançou e se elas ficaram mais baratas é tão somente porque houve um esforço maior em fazê-lo justamente pelo fato de telas comportarem anúncios.
Um problema essencialmente estético. A distopia não é uma placa de néon, a oferta cansativa de produtos ou a solidão em meio às cores vivas de um arranha-céu reluzente. É tudo isso somado e deformado em seu grau mais pobre: o som constante do celular alheio num ambiente apertado; marcas dialogando entre si como adolescentes; o eterno fluxo de interrupções visuais; a confirmação de que o novo envelheceu mal e, na garupa dele, você também.
Depois do jantar entrei no saguão às escuras. Ainda era o “happy hour” e o lugar estava apinhado de moradores locais. Não vi socialite alguma. Tive dificuldade pra conseguir um dos banquinhos sem encosto no bar porque toda vez que algum deles vagava eu esperava um ou dois minutos deixando-o esfriar, pra que o carlo do corpo se dissipasse da almofada de plástico, mas aí outra pessoa se sentava. A multidão escasseou quando os preços ficaram mais caros e aí eu meio que tive o bar inteiro só pra mim. Vi um homem de pé na ponta do balcão escrevendo uma carta com um lápis. Ele estava rindo do seu próprio trabalho, um bandido solitário escrevendo insultos cruéis pro chefe da polícia.
Pedi uma caneca de cerveja e dispus minhas moedas sobre o balcão, em colunas divididas de acordo com o valor. Quando a cerveja chegou, mergulhei o dedo nela e umedeci cada uma das pontas do guardanapo de papel pra ancorá-lo, de modo que não subisse junto com a caneca toda vez e eu parecesse um pateta. Bebi do lado da caneca que uma pessoa canhota usaria, na crença de que menos bocas tinham estado desse lado. Essa também é a minha política com xícaras, qualquer recipiente com alça, mas geralmente é de se esperar que as xícaras sejam lavadas com mais esmero do que canecas de bar. Uma rápida chapinhada na água aqui e ali e essas belezinhas estão de volta na prateleira!
À minha frente do outro lado do balcão havia um espelho escuro e acima dele uma cabeça de veado com um cigarro na boca. Na área das mesas uma mulher tocava um órgão elétrico. Ninguém estava berrando pedidos pra ela. Eu era a única pessoa do lugar que aplaudia sua música — uma bravata de viajante. E depois de algum tempo eu também parei de aplaudir. Eu não tinha a menor personalidade. Se os outros fregueses de repente decidissem atacar a pobre mulher com garrafadas, com aquelas garrafas quadradas de gim, creio que eu teria me juntado a eles. Isso era uma coisa nova. Todos nós sabemos do aristocrata que entra em derrocada, mas ali estava algo que Jefferson não havia antevisto: um serviçal decadente.
Charles Portis, O Cão do Sul, 1979 (ed. Alfaguara, 2015, trad. Renato Marques).
Lutar em uma guerra mundial, deslocado em outro continente.
Ser ferido e capturado, então passar anos na prisão do inimigo em condições deploráveis.
Sobreviver, mudar de país e consolidar-se como roteirista em Hollywood.
Escrever filmes clássicos e aclamados da Era de Ouro americana.
Obter sucesso também como diretor.
Por fim, conquistar a literatura com romances épicos que, a despeito de suas mil páginas, tornam-se best-sellers mundiais.
Algumas pessoas realmente fizeram de tudo, e James Clavell é uma delas.
Sobre viver e sobreviver
[por Deus, que jogo de palavras tenebroso de sarau de poesia adolescente – “escrevi um poema; que ler?”; não, lógico que não! eu pararia de ler aqui. mas não desistam do texto.]
Na última Enclave, do fim de novembro, mencionamos brevemente a alegria de ter encontrado Tai-Pan (1967), romance deste escritor/roteirista/diretor/veterano/prisioneiro de guerra. Britânico, Clavell nasceu na Austrália, uma vez que seu pai, que servia à Marinha Real, lá estava designado. Ainda bebê, James – apelido de infância, pois seu nome era, na verdade, Charles Edmund Dumaresq [Clavell] – retornou à Inglaterra com a família, tendo crescido em Portsmouth.
Recrutado pela Artilharia Real aos 19 anos (queria ser piloto na Força Aérea, mas sua visão não era perfeita para tal), já com a Segunda Guerra estourando, Clavell foi enviado a Singapura em dezembro de 1941 para enfrentar japoneses após o ataque a Pearl Harbor. O navio em que viajava naufragou, e sua tripulação foi resgatada por um barco holandês que rumava à Índia. A série de problemas mal havia começado.
Após desembarcarem no porto mais próximo possível, Clavell levou um tiro no rosto e vagou na selva por alguns dias. Foi resgatado por uma aldeia malaia, mas foi capturado pelos japoneses. Direcionado a uma prisão de guerra em Java, Indonésia – então ocupada pelo Japão –, depois foi transferido à Prisão de Changi, em Singapura.
Quem lembra de Merry Christmas, Mr. Lawrence, com David Bowie e Ryuichi Sakamoto? Trata-se da mesma prisão representada no filme. O longa-metragem foi baseado no relato de Laurens van der Post, preso lá – assim como James Clavell. Não sabemos se eles conviveram juntos, até porque Clavell passou mais tempo na prisão de Singapura. Mas é o suficiente para enfiarmos Bowie & Sakamoto em qualquer coisa. Nota sobre a nota: van der Post pode ter exagerado boa parte de seus relatos.
Lá permaneceu até o fim da Guerra. Sua joss ajudou e Clavell sobreviveu – algo estatisticamente muito improvável (1 em 15, aproximadamente), uma vez que a Prisão de Changi não era um complexo muito bacana, que dirá numa guerra mundial, que dirá nas mãos de seu inimigo.
Na entrevista à BBC que linkamos mais acima, fica evidente o desapego cósmico de Clavell no que tange à sua sobrevivência, atribuindo-a continuamente a mero karma (ou joss).
De volta à Inglaterra, James Clavell iniciaria a segunda parte de sua vida. Após se envolver (e se casar) com a atriz April Stride, ele se interessaria pelo cinema, área em que não daria certo por alguns anos. Sem conseguir produzir ou vender roteiros, mudou-se primeiro para Nova York, depois para Los Angeles. Enquanto isso, pagava as contas como carpinteiro.
Então Clavell conseguiu vender alguns roteiros. Embora nenhum tenha sido filmado, isso ao menos lhe permitia sair da etapa zero. A virada de chave viria com o roteiro de The Fly (1958), baseado no conto de ficção científica de George Langelaan. Robert L. Lippert, que comandava a produtora – Regal Pictures, subsidiária “lado B” da Fox –, apostara em Clavell justamente por conta de um roteiro não filmado que o britânico havia escrito.
The Fly: a mesma história que Cronenberg gravaria a seu modo em 1986, estrelando Jeff Goldblum.
The Fly, primeiro roteiro de James Clavell a sair do papel, foi um sucesso considerável de público. O trabalho renderia outras oportunidades com Lippert e Kurt Neumann, que havia dirigido The Fly. Pouco a pouco, Clavell começava a dirigir seus próprios filmes.
O início da década seguinte mudaria este britânico de patamar. Em 1960, durante uma greve de roteiristas, Clavell decidiria escrever suas memórias de prisioneiro de guerra. Estas foram publicadas em 1962 sob o título King Rat (Rato Rei no Brasil).
Clavell o fez em 12 semanas, basicamente obrigado pela mulher, que num primeiro momento o trancou no quarto até que ele começasse a escrever seu livro (ou supostamente por isso…). Previsivelmente, ela tinha razão.
King Rat vendeu bem, abriu portas e aparentemente despertou o gênio literário de Clavell. No ano seguinte, sua provável maior contribuição ao cinema: escreveria nada menos que The Great Escape (Fugindo do Inferno), dirigido por John Sturges e estrelado por Steve McQueen.
Por si só, viver não deve garantir a qualidade da escrita. Mas alguma alma honesta há de duvidar que ajuda?
Diante do acúmulo de sucessos, James Clavell parou para escrever. Realmente escrever. “O segundo romance separa os meninos dos homens”, dizia. Com o dinheiro de King Rat, ele sentou, pesquisou, viajou e compôs as 800 páginas que (finalmente) nos trazem à Enclave de hoje: Tai-Pan, publicado em 1966.
Tai-Pan, Tai-Pan, Tai-Pan!
Conforme explicamos na Enclave anterior, cheguei em Tai-Pan ao procurar romances que se passassem em Hong Kong. Me surpreendeu nunca ter ouvido falar em James Clavell até então, tendo em vista que seus livros – principalmente Xogun (1975) – foram verdadeiros fenômenos ocidentais.
Diante da proporcional baixa quantidade de conteúdos a respeito de sua obra na internet (críticas, vídeos, análises, punhetagem em geral), senti certo descompasso entre o sucesso passado e o reconhecimento presente. Isso costuma indicar que (1) o autor está em baixa por quaisquer motivos da nossa cultura mutável e frenética [normal e natural] – talvez até pelo cansaço do próprio sucesso – e, em algum momento, será redescoberto; ou (2) sua obra já chegou onde podia chegar e é isso mesmo, não haverá retorno triunfante.
Enfim, este nem é o ponto principal, embora tenha atiçado a curiosidade. O fato é que Tai-Pan, na opinião deste editor (portanto desta newsletter, portanto deste planeta), é um livraço, que já nos convenceu completamente a nos afundarmos em toda a Saga Asiática de Clavell, um notório apaixonado por esse continente (tal qual Trevanian).
No livro em questão, acompanhamos Dirk Struan, taipan da Casa Nobre em Hong Kong, 1841. Um taipan é um grande comerciante estrangeiro, líder de seu negócio na China ou em Hong Kong.
Relacionado: ‘The Taipan’, por W. Somerset Maugham, 1922.
Assim, também acompanhamos a colonização de Hong Kong, recém-entregue à Inglaterra após a Primeira Guerra do Ópio e o Tratado de Nanquim (hoje considerado pela China como um dos Tratados Desiguais, marcando o início de seu “século de humilhação”). Há um elemento náutico permeando toda a narrativa, inclusive com um belo trecho relacionado à adoção dos barcos a vapor. Assim, sentimos como é navegar em 1841: o cenário, a tensão, o nojo (imagina o cheiro…).
Naquele ambiente, vivem ingleses oportunistas, chineses oportunistas, piratas, visionários otimistas, proselitistas cretinos, mafiosos locais, comerciantes genuínos. Ou seja, quem diria, uma sociedade – tão bem representada neste romance histórico.
O escocês Struan, macaco de pólvora com apenas sete anos na Batalha de Trafalgar, é por si só um protagonista fantástico. Essa mistura de CEO, comerciante, traficante de ópio e político resulta em um sujeito duro e resoluto, mas perspicaz o suficiente para abraçar costumes locais antes de qualquer outro inglês.
Tal configuração – um ocidental adotando costumes chineses a despeito do absoluto julgamento de seus pares – é um dos elementos mais envolventes do romance. Struan é apaixonado por uma chinesa, toma banho, usa roupas limpas e obriga sua tripulação a lavar as mãos (e a bunda…). Para seus conterrâneos, isso faz dele um diabo pagão. Entre os chineses é mais um bárbaro.
Seu maior concorrente é Tyler Brock, taipan da Brock & Sons. Ambos têm filhos, e o crescimento destes é um dos grandes enredos da trama. Casas, dinastias, sucessão, comércio e politicagem: a sensação é parecida com a de ler Duna, de Frank Herbert, lançado um ano antes. Sem minhocas gigantes…
Tai-Pan é apaixonante porque transborda capricho. Recriar toda uma sociedade num romance histórico é ainda mais difícil que inventar uma do zero. É preciso manter alicerces históricos e hábitos coerentes. Inclusive, entre vários outros problemas, por exemplo, a malária é um grande desafio daquela civilização.
Em sua saga, Clavell visivelmente se esforçou. Estilisticamente, não se trata de um Nabokov (e quantos Nabokov existem, não é mesmo?). Ainda assim, Tai-Pan conquista de imediato – na página 40 você já sabe que ficará até a 800ª –, impondo-se pela robustez de seu universo, tão detalhado quanto amarrado, e pela caracterização impecável.
[Xogun, de 1152 páginas] não é um livro longo, porque meu ponto é: [o livro] é chato? E a resposta é: absolutamente não. Tem algo que te faça continuar a virar a página? E as pessoas me dizem que, quando pegam o livro, se assustam com o tamanho – “eu nunca vou terminar isso, meu Deus!”. E eu falo: “ok, por favor, tudo que te peço como contador de história é – por favor – me dê 15 minutos de sua atenção plena. Se eu não te persuadir em 15 minutos, então falhei”. (Fonte)
Seguimos entusiasmados com James Clavell. Já nos estendemos e permanecemos, agora com Casa Nobre (1981), narrativa que se desenvolve em 1963. Que boa joss.
Contexto: “Em novembro de 1942, durante a batalha de Guadalcanal, que se estendeu por três dias nas ilhas Salomão, o USS Juneau foi atingido por dois torpedos japoneses e afundou. Morreram 687 homens, entre eles os cinco irmãos Sullivan, que se alistaram dez meses antes, todos ao mesmo tempo, acreditando que, juntos, serviriam melhor ao país. Dois meses depois de seu falecimento, tendo ouvido rumores preocupantes sobre eles, sua mãe, Alleta Sullivan, enviou ao Departamento Pessoal da Marinha uma carta comovente, solicitando informação. Logo recebeu resposta, mas não do Departamento, e sim do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. A tragédia dos Sullivan levou à criação da Política do Sobrevivente Único, segundo a qual as Forças Armadas americanas dispensam do serviço os irmãos de um soldado morto em combate”.
Prezados senhores:
Escrevo-lhes porque parece que meus cinco filhos morreram em combate no mês de novembro. Uma conhecida minha recebeu uma carta do filho, contando que ele ouviu dizer que meus cinco filhos tinham morrido.
A notícia se espalhou pela cidade, e estou preocupada. Meus cinco filhos se alistaram juntos um ano atrás, em 3 de janeiro de 1942. Estão no cruzador USS Juneau. A última vez que eu soube deles foi em 8 de novembro. Quer dizer, a carta era datada de 8 de novembro, Marinha americana.
Eles se chamam George T., Francis Henry, Joseph E., Madison A. e Albert L. Por favor, digam-me a verdade. No dia 12 de fevereiro, devo batizar o USS Tawasa, em Portland, Oregon. Mesmo que tenha acontecido alguma coisa com meus cinco filhos, vou batizar o navio, porque essa é a vontade deles. Sinto muito incomodá-los, mas estou muito preocupada e preciso saber a verdade. Por favor, digam-me. Foi duro dar cinco filhos para a Marinha de uma só vez, mas estou orgulhosa de meus meninos por eles poderem servir e ajudar a proteger o país. George e Francis serviram durante quatro anos no USS Hovey, que tive o prazer de visitar em 1937.
Estou muito feliz, porque a Marinha me concedeu a honra de batizar o USS Tawasa. Meu marido e minha filha vão a Portland comigo.
Atenciosamente,
De Alleta Sullivan para a Marinha Americana, 1943 (Cartas Extraordinárias. Org.: Shaun Usher. Trad.: Hildegard Fest, Companhias das Letras, 2013).
Alguns conservam grandes acervos de itens lidos e/ou não lidos. Outros compram apenas o que leem, então repassam. Alguns preferem a praticidade e a versatilidade da leitura digital. Outros – os mais cafonas em um mundo já dominado pela breguice – compram livros apenas para decoração. Essas estratégias não são autoexcludentes, muito menos definitivas para toda uma vida.
Da mesma forma, a leitura em si é um ato cuja ordem proporciona múltiplas decisões. Isto é, alguns mantêm listas fechadas para os próximos 76 anos; outros são mais espontâneos; alguns caçam por métodos próprios, outros confiam em recomendações de confiança.
Por fim, outra grande variável no que tange à leitura é o abandono dos livros. Podemos demonstrar graus muito variados de resistência, a depender da nossa expectativa, do desprazer e do orgulho envolvido1.
Com isso em mente, vamos partir de três perguntas:
Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)
Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)
Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)
Nesta Enclave, tentaremos dissertar sobre alguns métodos e lógicas pessoais, apenas pela diversão do relato. Para tanto, contamos com o auxílio de dois grandes colaboradores do RelevO: Marceli M. (Burocrata Carimbos) e Bolívar Escobar (Cartas do Bolívar). Escolhemos esses dois indivíduos porque, além de leitores experientes e indivíduos atentos ao mercado editorial, porque… porque… bom, porque a essa altura eles são nossos únicos amigos…
Sobre (anti)bibliotecas
Aqui, vamos partir de um trecho de Nassim Taleb, em referência a Umberto Eco, n’A Lógica do Cisne Negro (2007):
O escritor Umberto Eco pertence àquela classe restrita de acadêmicos que são enciclopédicos, perceptivos e nada entediantes. Ele é dono de uma vasta biblioteca pessoal (que contém cerca de 30 mil livros) e divide os visitantes em duas categorias: os que reagem com: “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria muito pequena — que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa. Livros lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros, taxas hipotecárias e o atualmente restrito mercado de imóveis lhe permitam colocar nela. Você acumulará mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não lidos nas prateleiras olhará para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de antibiblioteca.
Usamos o trecho em questão como ponto de partida porque obedecemos (isto é, este editor, especificamente, obedece) a uma lógica semelhante. Afinal, não consigo atender à ideia de comprar apenas o que tenho certeza de que lerei – ou ao menos no curto e médio prazos.
Inclusive, isso tende a trazer problemas, uma vez que podemos entender o ato de comprar livros como estressante a partir de dois (ou três) vieses:
Financeiro: bom, comprar – livros ou qualquer outra coisa – custa dinheiro. Se seu dinheiro é finito, como acreditamos que seja, é preciso fazer escolhas.
Espacial: livros demandam capacidade de armazenamento e, a partir do momento que você não a tem, qualquer aquisição se torna estressante. Se seu espaço também é finito, como também acreditamos que seja, é preciso fazer mais escolhas.
Metafísico (bônus!): se você compra um livro e não o lê, sua consciência pode arder ao cruzar o olhar com uma lombada nunca aberta, um plástico nunca removido, e assim por diante. Pode haver um rebote dos outros dois problemas: se não li, por que diabos gastei dinheiro e espaço?
Minha lógica de compra e acúmulo de livros é mais ou menos a seguinte: ajo ao mesmo tempo como um olheiro e diretor de clube de futebol, se livros fossem jogadores, se o tamanho do elenco não fosse um problema e, por fim, se jogadores não envelhecessem nem fossem únicos (isto é, se houvesse toda uma tiragem de Haalands no mundo e tanto o clube Eu como o clube Você pudéssemos ter um ou vários Haalands e Mbappés no elenco).
Essa explicação certamente não ajuda muito, a não ser uma óptica bastante específica e talvez deturpada de funcionamento de mundo. Mas o ponto é – não, pera lá, os pontos são:
Expandir constantemente a lista de “livros de interesse”, isto é, aqueles que pretendo [acredito que vou] ler algum dia.
Monitorar preços (listas em Amazon, Estante Virtual e sebos específicos, basicamente).
Comprar diante de preços abaixo da média ou oportunidades raras (edições antigas que, se esgotarem, já era, ou ao menos vão encarecer a ponto de inviabilizar).
Furar a fila diante de grandes descobertas ou urgências de interesse (“isso eu preciso ler agora”).
Em suma, se em algum momento sei (ou acredito com alguma convicção) que vou ler X, mas neste momento X se encontra em um ótimo preço (ou parece realmente próximo de esgotar, afinal a quantidade de Haalands, mesmo maior que no futebol, ainda é finita), compro sem dó. Nem que leve anos para eu abri-lo – já passei da fase de dor na consciência. Aqui não tem metafísica alguma.
Um exemplo recente: comprei Heat 2, de Michael Mann e Meg Gardiner, continuação do filme que tanto adoro. Quando vou ler? Sei lá, mas o preço em algum momento diminuiu e sei que eventualmente vou ler.
Sob a mesma lógica, não hesitei nem por um segundo quando encontrei, ano passado, NA LIXEIRA DA GARAGEM, a coleção COMPLETA (50 volumes!), capa dura, de Imortais da Literatura Universal da Abril Cultural. Precisei reorganizar a estante, mas não tenho dúvidas de que valeu a pena. Se até o momento li 10% deles, pouco importa. A assimetria é muito favorável – trata-se de clássicos, afinal, então tenho o efeito Lindy a meu favor –, principalmente levando em conta o custo zero.
Vejamos as constatações de nossos amigos:
Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)
Marceli: Em geral, vou pela autoria (quero ler alguém e aí procuro a obra que seja mais representativa) e, em alguns casos, pela editora (por exemplo, confio na linha editorial da Todavia porque costumo gostar de tudo que leio deles, aí compro mesmo que desconheça o autor); mas também acontece de seguir indicações de amigos (normalmente, as situações em que furo a fila, a depender de quão efusiva seja a recomendação ou de quanto eu confie na pessoa). É comum também ler o livro baixado no Kindle e mesmo assim querer ter a cópia física e comprá-la depois (também posso comprar um livro principalmente porque ele é bonito, ou tem uma capa bonita).
Bolívar: Acho importante diferenciar as motivações para comprar e para ler. O que mais me motiva a ler um livro é quando pessoas de grupos diferentes de amigos me recomendam o mesmo título. É quase um sistema: se um livro marca três pontos, então é porque preciso ler. Já para comprar, acho que a principal motivação é conhecer o(a) autor(a) e querer fortalecer a iniciativa. Ocasiões especialíssimas são os livros desses dois universos se encontrando.
Listas, ordem, progressão linear
Assim, adentramos em outro tópico: como organizar a ordem de leitura? Do lado de cá, essa lógica é bem mais variável, uma vez que está sempre sujeita a descobertas acidentais. É como jazz, exceto por não envolver técnica ou talento. Em cima de um tema, vario conforme acidentes do dia a dia (ter lido, escutado ou assistido alguma coisa que despertou interesse em outro assunto), então viro a chave completamente, num processo helicoidal que eventualmente volta ao ponto de onde partiu.
Isso acontece organicamente. Um exemplo real: entre idas e vindas, Hong Kong é por si só um tema de interesse. Procurei narrativas que se passam lá, vasculhei e comprei – gradativamente, não ao mesmo tempo – tantos livros relacionados. Li alguns, abandonei outros, não abri os demais. Recentemente, me interessei de novo pelo tema e comecei Tai-Pan (1967), de James Clavell (por sinal, fantástico). Daqui a pouco, naturalmente, por cansaço ou pelo despertar/relembrar de algum outro tópico, o interesse retorna para “Guerra Fria”, “detetives dos anos 1940”, “ficção científica”, “Brasil colonial” etc., e assim a roda vai girando.
Nesse aspecto, nossa lógica e a de nossos amigos parece convergir:
Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)
Marceli: Tenho sempre uma pilha de livros que pretendo ler, mas não tenho muito sistema com eles – pode acontecer de ele ficar ali na estante por anos e pegá-lo aleatoriamente pra ler (ou, menos aleatoriamente e mais por uma vibe inexplicável, tipo sentir que chegou a hora de ler tal coisa). Mas se tem um lançamento legal ou se eu comprei algo, é comum furar a fila e mesmo pausar algo que eu esteja lendo pra passar o outro na frente. Acho que, nos últimos anos, engajar num livro e não ter vontade de olhar o celular é tão raro que, quando acontece, eu me emociono muito e quero aproveitar a onda. E também rola de eu começar a ler algum autor e empolgar e emendar dois ou três outros livros dele.
Bolívar: A vida acadêmica faz a gente se embrenhar em leituras muito mais por obrigação do que por liberdade de escolha. Tenho uma lista ancestral de livros no GoodReads que gostaria de ler algum dia, mas que nunca volto pra consultar. No geral, o que acontece é receber alguma recomendação e já, sem pensar muito, começar a leitura. Tenho alguns autores de interesse também cujos livros vou deixando no radar para começar quando sobrar tempo. Ou quando a vergonha na cara atingir níveis muito altos. Em resumo, é um sistema bastante volátil, aleatório e pouco previsível.
Largar ou não?
Abandonar um livro traz uma culpa moral, uma sensação de farsa. A presunção “o problema só pode ser eu” banhada na estranha sacralidade da palavra escrita ou da consagração do(a) autor(a). Além da dúvida: se abandonei um livro de 500 páginas na centésima delas, posso dizer que eu o li? Vaidade de vaidades!2
Pois livros devem ser abandonados sem dó. O famoso “cagar ou sair da moita”. Não vale se arrastar. Nunca. Isto é, a partir de uma tentativa honesta – e apenas o leitor, em sua prática, saberá discernir o que é uma tentativa honesta. Só no segundo semestre, abandonei A Identidade Bourne (Robert Ludlum); Kowloon Tong (Paul Theroux); Da Rússia, Com Amor (Ian Fleming); e O Alfaiate do Panamá (John le Carré). Somente o último trouxe algum peso na consciência, por gostar do autor e por não ter considerado o romance propriamente ruim, apenas desinteressante para mim, no momento, diante de outro problema seríssimo, e na verdade ponto nevrálgico do abandono de livros: nosso tempo é escasso.
A vida é muito curta para não gostar dos livros que se lê, uma vez que há um universo gigantesco (na prática, infinito) de opções que nos tragam prazer (nem que um prazer desconfortável, angustiante, mas que, enfim, valide a atividade da leitura). Simplesmente não vale a pena. (Inclusive, se eu não tivesse decidido largar sem dó alguns dos romances mencionados, não teria iniciado Tai-Pan a tempo de levá-lo para uma viagem de 18 dias, o que literalmente faria minha vida pior).
Tenho certeza de que li Stanley Kubrick defender o abandono veloz de livros que não cativaram o leitor. Acredito com alguma convicção que essa fala consta no Conversas com Kubrick (que não abandonei), de Michel Ciment, mas, ironicamente, não o tenho em mãos, porque este ficou na casa dos meus pais desde que saí de lá, há uns bons anos, a fim de poupar espaço.3
Curiosamente, nossa amiga Marceli Burocrata não concorda com essa lógica: “nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez; sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois”. Marceli está errada. Não se deve dar chances até o final: é preciso falar mal do livro antes. Inclusive, em alguns casos, antes mesmo de abrir! Quem dera eu nunca tivesse lido [dois terços de] Da Rússia, Com Amor…
Já Bolívar, que abandonou Graça Infinita, afirma que precisa “começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado”, portanto sua resposta não ajudou em nada. Brincadeira. Ambas as respostas foram mais complexas que o recorte sujo da mídia enclávica:
Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)
Marceli: Em geral, é quando outro livro fura a fila mesmo; mas procuro voltar e terminar, não gosto muito de deixar livro abandonado (e acho que tem a questão também de eu sempre pegar livros que me interessam pra ler, aí nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez, sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois).
Bolívar: Não sinto como se eu tivesse um “gatilho” ou coisa do tipo que me faça desistir de livros. Quando acontece é por uma convergência de motivos. Por exemplo, comecei a ler Graça Infinita, o tijolão do D.F.W. em 2015 e está lá parado na página 200 até hoje. A sensação foi que eu estava começando uma leitura para a qual não estava preparado. A mesma coisa com O Pêndulo de Foucault, do Eco. Teve outros casos, mas não lembro agora. Preciso começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado.
Essas foram as nossas considerações sobre comprar, acumular e abandonar livros. Entre galhofas e modelos mentais possivelmente replicáveis, também queremos saber a sua opinião, principalmente se você for um metódica compulsivo, uma acumuladora caótica ou um absoluto desapegado.
Não é surpresa que as pessoas vulneráveis […] não reconheçam o quanto pessoas estúpidas são perigosas. Essa falha é apenas uma expressão de sua vulnerabilidade. O fato realmente impressionante, entretanto, é que pessoas inteligentes e bandidos também costumam não reconhecer o poder de causar danos inerente à estupidez. É extremamente difícil explicar por que isso acontece, e é possível apenas observar que, quando confrontados com indivíduos estúpidos, pessoas inteligentes, assim como bandidos, costumam cometer o erro de se permitirem ter sentimentos de complacência e desdém, em vez de secretar quantidades adequadas de adrenalina e erguer defesas imediatamente.
Fica-se tentado a acreditar que um homem estúpido só vai causar mal a si mesmo, mas isso é confundir estupidez com vulnerabilidade. De vez em quando, alguém pode cair na tentação de se associar a um indivíduo estúpido para utilizá-lo em seus próprios esquemas. Tal manobra só pode ter efeitos desastrosos, porque a) ela se baseia em uma incompreensão absoluta da natureza essencial da estupidez e b) dá à pessoa estúpida um escopo aumentado para o exercício de seus dons. É possível ter esperanças de tirar proveito do estúpido, e, até certo ponto, é realmente possível fazer isso. Mas devido ao comportamento instável do estúpido, não se pode prever todas as suas ações e reações, e em pouco tempo a pessoa vai ser pulverizada pelos movimentos imprevisíveis do parceiro e estúpido.
Isso fica claramente resumido na Quarta Lei Fundamental, que afirma que:
“Pessoas não estúpidas sempre subestimam o poder de causar danos dos indivíduos estúpidos. Em particular, pessoas não estúpidas se esquecem constantemente de que em todo momento e lugar, e sob qualquer circunstância, lidar e/ou se associar com pessoas estúpidas resulta infalivelmente em um erro altamente custoso”.
Ao longo dos séculos e milênios, tanto na vida pública quanto na vida privada, inúmeros indivíduos deixaram de levar em conta a Quarta Lei Fundamental, e essa falha acarretou perdas incalculáveis para a humanidade.
Carlo M. Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1976 (Ed. Planeta, 2020).
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
Faz anos que este humilde editor quer escrever sobre Ho-ba-la-lá – não a música, mas o livro do alemão Mark Fischer (não confundir com Mark Fisher, aquele). Por um motivo ou outro, isso nunca aconteceu, isto é, até agora, quando o universo me forneceu sinais suficientes para retomar o assunto.
Estava em um aniversário (de um grande colaborador do Jornal, inclusive, e que justamente por isso terá sua identidade e credibilidade preservadas), quando me dei conta de que toda a roda, movida por um espírito de esquema de pirâmide (iniciada por mim; o mérito é meu), havia lido Ho-ba-la-lá, um livro esgotado e fora de circulação, portanto caríssimo (apenas quatro edições, preço mínimo R$ 230 na Estante Virtual) e [portanto de novo] obtido apenas por métodos não legais, porém gratuitos1. Ho-ba-la-lá certamente não foi uma bomba, ao menos não em Curitiba, então havia alguma relação de causa e efeito ali.
Pois bem, a premissa do livro é muito simples: Mark Fischer, um alemão, quer porque quer encontrar João Gilberto, o brasileiro, e ouvi-lo tocar ‘Ho-ba-la-lá’, a música. Apenas isso. Porém, qualquer cidadão deste país minimamente cônscio da mitologia nacional sabe que encontrar João nunca foi tarefa fácil ao longo da vida deste gênio. Fischer sabia disso.
Para que encontrar um homem que, evidentemente, não deseja ser encontrado? Para que fazer contato com quem não quer contato nenhum?
Razão nº 1: Porque João Gilberto é um enigma. Porque não está claro o que o instiga, ou se alguma coisa ainda o instiga em seu quarto de hotel — ou onde quer que ele more no momento. Porque circulam histórias estranhas a seu respeito, e não se sabe quais são verdadeiras e quais são estapafúrdias, fantasiosas, inventadas:
Dizem que toca violão o tempo todo, sempre as mesmas canções.
Dizem que conversa com gatos.
Dizem que fala com os mortos.
Dizem que uiva para a lua.
Dizem que, mesmo com os parentes, ele só se comunica por intermédio de bilhetes que lhe são passados por debaixo da porta.
Dizem que, em resumo, ele não se comunica.
Dizem que pratica uma religião estranha.
Dizem que odeia tanto as pessoas que não consegue suportá-las.
Dizem que ama tanto as pessoas que não consegue suportá-las.
Para abordar o problema, Fischer tomou a melhor solução criativa possível. Pois antes de mais nada, o gênero do livro, em sua essência, é um romance policial. Tem o formato, a estrutura, o cheiro. Estruturado em primeira pessoa, tem até um Watson, “que na verdade não se chama Watson coisa nenhuma, e aliás não é homem. Trata-se da minha fiel companheira Rachel, o cão rastreador mais rápido do mundo e a intérprete mais habilitada do Rio de Janeiro, porque, claro, não falo uma palavra de português. É uma judia líbano-brasileira com um diabo tatuado na panturrilha; pesa duas vezes mais que eu, prefere mulheres a homens e desde o primeiro instante eu soube: aí está meu Watson”.
Fischer, que leva a tarefa muito a sério (alemães…) sem se levar muito a sério (cariocas!), oferece-nos uma narrativa deliciosa, extraordinária, entrevistando figuras como João Donato, Miúcha, Marcos Valle, Roberto Menescal e outros indivíduos menos conhecidos, mas ainda mais marcantes. A conversa com o garçom Garrincha – já publicada na Enclave, tal qual o trecho que abre este texto – é surreal e sintetiza a complexidade de tentar decifrar o indecifrável:
Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.
Portanto, há situações e personagens um tanto absurdas, e a leitura do autor é sempre apurada – como, de fato, a de um detetive noir. O trecho abaixo parece extraído de Raymond Chandler ou do Vício Inerente de Pynchon:
Watson veste uma blusa vermelha bem decotada e traz brincos enormes nas orelhas. Parece uma Mata Hari mais avantajada. Eu a trouxe comigo e sugeri o estilo sexy porque, depois de um minuto ao telefone com Otávio, logo vi que seu inglês não era suficiente para ser compreendido e que ele era o tipo de sujeito que, com homens, fala pouco, mas, diante de uma mulher, não para de falar.
E, caso a presença de Watson não bastasse, eu tinha trazido algo mais, uma arma secreta: o baseado que João Donato me dera e que eu, em razão do inesperado progresso das investigações, ainda não conseguira fumar. Ele seguia guardado no meu maço de cigarros — a salvo, sequinho e muito eficaz.
Independentemente da direção, Mark Fischer parece se deparar com uma conclusão comum: João Gilberto é uma espécie de vampiro, um ser de outra dimensão capaz de alterar a consciência (e a lucidez) daqueles que convivem com ele. Trata-se de um padrão: ninguém – quase ninguém – passa ileso, como alertaria Menescal.
O que traz um elemento extremamente doloroso, mas ainda mais complexo para Ho-ba-la-lá: Fischer se matou pouco antes do lançamento do livro.
Pois é.
Respostas que trazem perguntas, dúvidas que trazem indagações2. Sua morte é um paratexto assustador da obra, o que – numa leitura completamente irresponsável, favor não levar a sério – parece salientar a tese do autor. Assim como Fischer, numa tarefa hercúlea e impossível, queria entender João Gilberto, queria eu entender Mark Fischer. Agradecê-lo e abraçá-lo antes de mais nada.
Ho-ba-la-lá é extraordinário, obra-prima mesmo, porque consegue contar uma história envolvente no melhor formato possível para desenvolvê-la. Mais do que isso, é extraordinário por ser muito, muito pessoal. Nada cativa mais que uma tarefa quixotesca, incapaz de ser justificada para além de uma coceira individual e (via de regra) ilógica. Não é preciso conhecer ou gostar de João Gilberto para ser puxado por esse vórtice.
Com todas as suas particularidades, o livro também é o caso típico de obra que não só não perde por partir de uma mente estrangeira, como provavelmente só poderia ter sido escrito por um estrangeiro. O olhar externo intrinsecamente permite rupturas e permissões inalcançáveis àqueles que vivem dentro do contexto retratado.
Se Mark Fischer encontrou João Gilberto?
Leia Ho-ba-la-lá.
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