Espionagem, traição, adaptação

Extraído da edição 102 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Selo soviético em homenagem a Kim Philby, o traidor (muito) inglês. [WikiCommons]

1. O livro A Spy Among Friends, de Ben Macintyre, vai se tornar uma minissérie estrelada por Guy Pearce (L.A. Confidential; Memento) e Damian Lewis (Billions; Era uma vez em Hollywood).

2. Nunca publicado no Brasil, A Spy Among Friends é um belo livro. Trata do agente duplo Kim Philby (mais sobre ele logo abaixo) e de sua amizade com Nicholas Elliott. Ambos eram espiões do MI6 durante a Guerra Fria. Portanto, a notícia é animadora.

3. Já usamos um trecho de Agente Zigzag, do mesmo autor, na Enclave #78. Este cobre a história de Eddie Chapman, agente duplo durante a Segunda Guerra Mundial – e foi publicado no Brasil pela Record, em 2010. Chapman era um marginal beberrão e picareta extremamente ativo: todas esses traços o transformaram em um grande espião a serviço dos Aliados, enganando o serviço secreto alemão com consistência. Agente Zigzag também é um baita livro de não ficção.

4. Também já tratamos de outro livro de Macintyre na Enclave: Adam Worth: O Napoleão do Crime, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2000. Worth foi um ladrão absoluto – não só o Napoleão, mas também o Pelé do crime. Brilhante, calculista e incrivelmente não violento, ele estendeu seu portfólio de atividades irregulares a diversos países ainda no século 19, inspirando o prof. Moriarty de Arthur Conan Doyle. Detalhamos a trajetória de Adam Worth em duas partes: 1 e 2. Naturalmente, consideramos O Napoleão do Crime outro ótimo livro.

5. Agora sim, de volta a Kim Philby. A sua história é uma das mais espetaculares do século 20, afinal Philby é um dos maiores traidores da história. Também já a detalhamos neste enclave, mais especificamente na edição #15. Com o perdão do autoplágio:

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos.

6. A trajetória de Philby (e dos “Cambridge Five“) exclama por uma adaptação digna. Se a minissérie anunciada dará conta disso, não sabemos; mas o ânimo é justo. Desde que li A Spy Among Friends, torcia para que alguma produtora endinheirada abraçasse a tarefa.

7. Sobre espiões na Guerra Fria, O Espião Inglês (The Courier) foi finalmente lançado este ano, após uma leva de atrasos por conta da pandemia. Dirigido por Dominic Cooke e estrelado por Benedict Cumberbatch, o filme se ancora na história real de Greville Wynne, empresário-tornado-espião que chegou a ser descoberto – e preso – pela KGB. No momento, está disponível no Prime Video. É um belo filme, ao menos para quem se anima com a temática.

8. Curiosamente, O Espião Inglês é o terceiro filme em que Cumberbatch se envolve com espionagem – que eu me lembre. N’O Jogo de Imitação (2014), no qual interpreta Alan Turing, inclusive, há uma mistureba narrativa com os espiões-traidores de Cambridge, nesse caso envolvendo John Cairncross (“mistureba narrativa” porque, ao contrário do que o filme retrata, a relação de Cairncross com os soviéticos só viria a ser descoberta muito depois da Segunda Guerra).

9. O outro filme? Nada menos que O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), uma beleza contemplativa – ou seja, lenta – adaptada do romance homônimo (1974, publicado no Brasil pela Record, 2012) de John le Carré (1931-2020), uma lenda da narrativa de espionagem. Como se sabe, ele próprio foi um agente do MI5 e do MI6 nas décadas de 1950 e 1960. O Espião que Sabia Demais (tanto filme como livro) aborda a espionagem de maneira muito mais realista, característica típica da obra de le Carré.

10. A carreira de John le Carré na espionagem foi destruída por conta da traição de… Kim Philby. A Spy Among Friends deve estrear no segundo semestre de 2022.


Um fato bônus e perifericamente relacionado: encontrei o livro abaixo, de 1946, capa dura, extremamente conservado, por R$ 22,61. W. Somerset Maugham (1874-1965) também trabalhou no serviço secreto inglês, mas ao longo da Primeira Guerra Mundial. O Agente Britânico (Ashenden: Or the British Agent), parcialmente autobiográfico, foi publicado em 1927.

Adam Worth, Napoleão do crime (parte 2)

Extraído da edição 81 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Georgiana, Duquesa de Devonshire (1785-87), por Thomas Gainsborough. “Eu poderia acender meu cachimbo nos olhos dela”, irlandês bêbado desconhecido.

Na parte 1, começamos a narrar as peripécias de Adam Worth pautados pelo livro O Napoleão do Crime (1997), de Ben Macintyre.

Hoje, acompanharemos Henry J. Raymond, a identidade abraçada por Worth após deixar os Estados Unidos e rumar à Europa, em 1869. Se você tem a sensação de já ter ouvido esse nome em algum lugar, é porque Henry Jarvis Raymond (1820-1869) foi um dos fundadores do New York Times. A nova alcunha de Worth, portanto, já partia de uma piada com o recém-falecido – e homem ilustre da época.

Adam Worth e Piano Charley (agora Charles H. Wells), literalmente parceiros em crime, desembarcaram em Liverpool para morar no hotel Washington, onde se interessaram (ambos!) por uma funcionária do bar.

A irlandesa Kitty Flynn, uma ambiciosa jovem de origem pobre, passaria anos envolvida num triângulo amoroso que pareceu funcionar muito bem a um trio eternamente descolado dos padrões éticos ou morais vigentes. Em Liverpool, Worth roubaria as joias de uma loja de penhores após distrair o dono e copiar sua chave em cera. Moleza.

Ansioso, o trio se moveu para Paris no final de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana, onde (e quando) “uma mulher podia ser presa por fumar nos jardins das Tulherias, porém a imoralidade pessoal era quase de rigueur. A superfície era magnífica, mas a corrupção e a libertinagem desregradas”.

Lá, o trio abriu um bar, cuja engenhosidade era tão cinematográfica que merece ser detalhada:

O American Bar era uma operação dupla. O segundo andar do prédio foi transformado numa espécie de clube para norte-americanos em visita à cidade, completo com as últimas edições dos jornais dos Estados Unidos e escaninhos de onde os expatriados podiam apanhar sua correspondência. (…) Nos andares superiores da casa, entretanto, a cena era bem diferente. Ali Worth e Bullard montaram uma operação de jogo em grande escala, bem equipada e totalmente ilegal. Importando crupiês dos Estados Unidos e especialistas em bacará, deram ao covil um lustro cosmopolita, mas foi Kitty quem acabou sendo a principal atração, porque “sua beleza e seus modos cativantes atraíam muitos visitantes norte-americanos” (…).
Havia um botão de alarme discreto, instalado atrás do bar, “que o barman apertava, tocando uma campainha nos salões de jogos acima sempre que a polícia ou qualquer pessoa suspeita entrasse”. Segundos depois de ter soado o alarme, Worth podia apresentar os andares superiores do número 2 da rue Scribe de forma tão calma e respeitável quanto os inferiores.

O ambiente, hoje um dos hotéis mais caros de Paris, funcionou por três anos, durante os quais a dupla mantinha roubos esporádicos (de diamantes, por exemplo) e o trio galgava espaço na nobreza local. Quando começaram a dar bandeira de suas atividades paralelas, os três venderam o bar e zarparam para Londres.

“Henry Raymond”, “Charles Wells” e Kitty Flynn se estabeleceram no Western Lodge, uma bela mansão onde Worth atingiria sua maturidade picareta e se converteria num verdadeiro líder do submundo, sempre marchando conforme a própria batida.

Personagem de traços peculiares – “orgulhava-se de um regime pessoal severo, abstinha-se de bebidas fortes, levantava-se cedo, trabalhava duro na profissão escolhida, fazia donativos às instituições de caridade, talvez até frequentasse a igreja e, ao mesmo tempo, quebrava todas as leis que pudesse encontrar e enriquecia-se com a riquesa dos outros” –, ali se concretizava o Napoleão do crime.

Usando seus associados de maior confiança, ele distribuía serviços criminosos, em geral em bases contratuais e através de outros intermediários, para homens (e mulheres) selecionados do submundo de Londres. Os vigaristas que executavam os trabalhos sabiam apenas que as ordens eram passadas de cima para baixo, que os lucros eram bons, o planejamento impecável e que os alvos – bancos, caixas de estações ferroviárias, residências de indivíduos ricos, correios, armazéns – eram selecionados pela mão de um grande mestre. O que eles nunca ficavam sabendo era o nome do homem no topo, nem mesmo o daqueles no meio da pirâmide de comando que Worth estruturara. (…) Worth estava praticamente imune  (…). Sempre fanático pelo controle, Worth estabeleceu sua própria forma de omertà por força de sua personalidade, de sua rígida atenção aos detalhes, de sua supervisão severa mas sempre anônima de todas as operações e do gasto de uma proporção de seus lucros para garantir, se não a lealdade, pelo menos o silêncio. (…)
Sóbrio, trabalhador e leal, Worth era um criminoso de princípios, os quais impunha a sua quadrilha com disciplina rígida. Com exceção de Piano Charley, os bêbados eram excluídos e a violência terminantemente proibida. “Um homem com cérebro não tem o direito de carregar armas de fogo”, ele insistia.

Nesse contexto, Adam Worth roubou a Duquesa de Devonshire, tela de Thomas Gainsborough que você vê na abertura deste texto, em 1876. A duquesa havia sido perdida por décadas, então foi reencontrada, depois adquirida por William Agnew – o maior preço já pago por uma pintura, à época – e exposta na galeria do comprador na Old Bond Street, para deleite do público. O quadro já era objeto de disputa entre os Rothschild e os Morgan nos Estados Unidos.

Desesperando todos eles, de madrugada, Worth/Raymond subiu pela frente da galeria com auxílio de um capanga e se apoiou no parapeito da janela. Tudo isso enquanto o vigia dormia (bons tempos…).

Com um pé-de-cabra, forçou o batente da janela e entrou. Cortou o retrato da moldura com uma lâmina, enrolou-a cuidadosamente e saltou nos ombros de seu assistente para sumir com a duquesa e causar um alvoroço sem precedentes.

O quadro permaneceria com o Napoleão do crime por 25 anos, durante os quais ele a levaria em suas inúmeras viagens. Nesse período, Worth/Raymond, cada vez mais a figura viva da duplicidade, criaria uma enorme obsessão pela duquesa e se envolveria em uma negociação extremamente peculiar para devolvê-la.

Mas este texto já se estendeu muito: os detalhes, somados ao desfecho de Adam Worth e às suas influências na (Mori)arte, estão todos lá n‘O Napoleão do Crime (1997), que obviamente recomendamos.

Adam Worth, Napoleão do crime (parte I)

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Leitores das aventuras de Sherlock Holmes já ouviram – ou melhor, leram – essa descrição. Não é por acaso, afinal trataremos da maior inspiração para o arquivilão prof. Moriarty.

O criminoso mais brilhante do século 19 foi um baita cavalheiro, de certa forma. Adam Worth, possivelmente nascido Wirth, provavelmente nascido Werth, certamente nascido na Alemanha (em 1844), migrou cedo com sua família para os Estados Unidos.

Quando a Guerra Civil Americana estourou, em 1865, Worth já era um adolescente promissor na arte da falcatrua: ele se consolidou como um bounty jumper (saltador de recompensa, em tradução livre). Ou seja, sua atuação consistia em alistar-se tanto na União como na Confederação, e então sumir.

Conforme relata Ben Macintyre em O Napoleão do Crime (Cia. das Letras, 2000), fonte das informações e das citações deste texto:

Durante os meses seguintes, Worth estabeleceu um sistema: ele se alistava num regimento qualquer, sob nome falso, recebia a gratificação que estivesse sendo oferecida, em seguida desertava. Assim foi que vagou de um lado do esparramado exército a outro, mudando de nome a cada parada e desenvolvendo um talento para a farsa que, mais tarde, tornar-se-ia uma profissão em tempo integral.

A prática, além de obviamente malvista, era criminosa. Bounty jumpers costumavam utilizar tantas identidades quanto possível, e Worth havia contado com a sorte ao ser erroneamente declarado morto, quando ainda lutava (a princípio, de verdade) pela União, em 1862.

Após a guerra – encerrada em 1865 –, Worth se estabeleceu em Nova York, que acolhia quilingues e sevandijas de todos os tipos (o filme Gangues de Nova York, baseado em livro homônimo de não ficção de 1927, se passa basicamente nesse cenário).

As coisas começaram a decolar para Adam Worth. Primeiro praticando pickpocketing (crimes de carteirista), depois como líder de gangue. Logo foi preso, e mais rapidamente ainda fugiu. Um universo se abriu para o malandro quando Fredericka Mandelbaum o acolheu.

Poderosa matriarca do submundo, “Marm” era uma receptadora/interceptadora extraordinária, servindo como um verdadeiro sistema de conexão entre mercadorias roubadas e eventuais compradores. Perfeitamente encaixado nessa equação, Worth passou a roubar bancos, atividade na qual se destacaria pelo resto da vida.

Nesse ramo, compôs sua obra-prima (até então, vamos com calma!) em 1869, ao lado do parceiro americano Charles Bullard, o Piano Charley, e do irlandês Big Ike Marsh. Juntos, eles assaltaram o Boylston National Bank, em Boston. Para fazê-lo, elaboraram um plano engenhoso:

Fazendo-se passar por William A. Judson e Co., negociantes de tônicos de saúde, os parceiros alugaram o prédio adjacente ao banco e puseram uma divisória na frente da janela na qual estavam expostas “umas duzentas garrafas contendo, segundo os rótulos, quantidades de ‘Tônico Oriental Gray'”. “As garrafas tinham o um propósito duplo (…); o de mostrar o negócio e o de evitar que o público visse o lugar” (…).
Depois de calcular cuidadosamente o ponto onde a parede da loja era contígua ao cofre de aço do banco, os ladrões começaram a cavar. Durante uma semana, trabalhando apenas à noite, Worth, Bullard e Marsh empilharam o entulho nos fundos da loja até que, finalmente, “o cofre ficou exposto”.

Restou cortar o cofre, o que não foi tarefa fácil, tendo sido pacientemente realizada com a realização de inúmeros furos pequenos, os quais formaram um buraco de apenas 45 x 30 centímetros, pelo qual Worth entrou. De lá, começou a retirar o tesouro, que dormia guardado em baús de lata. Pela manhã, os três sumiram em uma carruagem, então pegaram um trem para Nova York.

O roubo – de cerca de 200 mil dólares – foi, sob qualquer critério, estrondoso, chocando a sociedade (e, naturalmente, trazendo dores de cabeça para a dupla protagonista na ação). Marsh logo retornou à Irlanda, onde bebeu seu dinheiro. Então voltou aos EUA e foi preso tentando assaltar outro banco.

Worth e Bullard, cientes dos riscos envolvidos – a agência Pinkerton, precursora do FBI, passou a persegui-los – decidiram rumar à Europa. Antes disso, colheram os frutos do roubo ao Boylston National Bank:

Agindo com rapidez, o par despachou os papéis roubados para um advogado (…) com instruções para esperar alguns meses, depois vender os títulos por uma fração do valor real e remeter os lucros no tempo devido. Na época esse era um método amplamente aceito de se recuperar propriedade roubada, sob as vistas da polícia, que muitas vezes ajudava a negociar o retorno dos títulos, para vantagem tanto dos donos quanto dos ladrões. “Tudo que [os ladrões] precisam fazer é entrar ‘num acordo’, o que significa abrir mão de parte dos lucros, e depois dedicar suas horas de lazer a planejas novas vilanias”, observou o Boston Sunday Times.

No Velho Continente, a vida dupla de Adam Worth começou, ou melhor, desenvolveu-se como nunca. Ali ele morreu novamente: o gentleman Henry J. Raymond – um bon-vivant, um aristocrata – tomou seu lugar. E a história de Worth/Raymond ainda notabilizaria diversos episódios, todos pitorescos.

> PARTE 2 <

Baú: Ben Macintyre

Extraído da edição 78 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Abwehr (que literalmente significa “defesa”) tinha reputação de ser o mais eficiente serviço de inteligência da Europa. Uma primeira avaliação do MI5, o serviço de segurança que controlava a contraespionagem no Reino Unido e em todo o império britânico, descreveu a Abwehr como “organização de primeira classe em treinamento e em pessoal”. Essa estimativa era claramente lisonjeira. Um dos aspectos mais importantes do serviços da inteligência nos países era como cada lado sabia pouco sobre o outro. Em 1939, o SIS, serviço secreto de inteligência britânico (também conhecido como MI6 e que opera em todas as áreas fora do território britânico), não sabia como o serviço de inteligência militar alemão se chamava e nem quem o dirigia. Em uma autoavaliação franca, escrita depois do fim da Segunda Guerra, o MI5 reconheceu que “na época da queda da França, a organização do serviço de segurança como um todo estava num estado que pode ser descrito apenas como caótico (…) tentando desenvolver meios de detectar agentes inimigos sem qualquer conhecimento interno de organização alemã”.

A Abwehr se encontrava igualmente mal preparada. Hitler não havia esperado ou desejado entrar em guerra com a Inglaterra, e a maioria das operações de inteligência dos nazistas era dirigida para o leste. A rede de espionagem da Abwehr na Inglaterra era virtualmente inexistente. Quando os dois países se enquadraram para o conflito, uma estranha dança de sombras se iniciou entre os serviços de inteligência rivais: ambos começaram a construir freneticamente redes de espiões, quase que do zero, para uso imediato. Cada um atribuía ao outro extrema eficiência e preparativos bem adiantados, e ambos estavam errados.

Ben Macintyre, Agente Zigzag, 2007 (Ed. Record, 2010).

Kim Philby: traição do século

Extraído da edição 15 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos, tornando-se um dos traidores mais famosos da história. “Para trair, você primeiro precisa pertencer. Eu nunca pertenci”, afirmou ele próximo de sua morte, em 1988. Uma das carreiras arruinadas pelo agente duplo foi a de John le Carré, que se utilizaria dessa experiência para escrever O Espião que Sabia Demais (1974), muito bem adaptado ao cinema em 2011.

Conturbado, enigmático ou apenas consistentemente filho da puta, Kim Philby comandou tragédias familiares, envolvendo várias esposas e várias esposas somadas a tragédias familiares. Sempre fiel à União Soviética, ele passou seus últimos anos em Moscou, supostamente melancólico e desiludido – e certamente embriagado.

Repleto de medalhas (e sem arrependimentos), teve um funeral de herói. Ele fazia parte do círculo hoje conhecido como Cambridge Five, cujos agentes duplos haviam sido recrutados ainda antes da Segunda Guerra Mundial (uma trama que perpassa o enredo do filme Jogo de Imitação, 2014, porém sem grande precisão histórica).

Sobre Philby, A Spy Among Friends (2014), de Ben Macintyre, é um belíssimo livro. O ex-colega John le Carré assina o posfácio.