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Rafael Maieiro: Sem ou com orelhão: Pule para o último parágrafo e descubra para que serve esta seção do RelevO
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender.
O sentido da frase por vezes é difícil de atingir.Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
Uma orelha gigantesca. Você é um coelho cego andando com pressa no meio da Rua Riachuelo, na Lapa — se apoia (ou rodopia) na bengala e usa as orelhas em riste como um braço de chapeleira para manter a cartola no seu devido lugar —, desvia confuso de carros, motos e bicicletas ainda mais atordoadas. Buzinaço, caos, calor. E plaw! Olha lá você adentrando na dita-cuja, malandragem! Na orelha? Na cartola? Tanto faz. Bifurcação: orelha ou cartola? Sai do outro lado, dentro da sua própria…
p de…? São nove letras, amado e idolatrado leitor. Adivinha? Deixa de chatice!
…orelha e está sem ela. Não, calma, ela (elas?) está (estão!) aí. Então, esquece o Dedé, deixa de ser lelé, vem comigo, Zeh, e se liga no papo da presente ouvidoria. Faz algum sentido.
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— Sabe de uma coisa, meu irmãozinho, não leio um jornal impresso faz uns dez ou vinte anos — disse Diego Barboza, poeta e editor, convidado para comentar o RelevO de janeiro. — Na verdade, dou aqui meu testemunho, sou um leitor assíduo do Universal — conclui o raciocínio sem fazer nenhum tipo de ironia.
Foi logo dizendo antes de me cumprimentar ou qualquer coisa do tipo.
— Fale mais! — finjo não me surpreender e levanto a pelota.
Gosto muito de jornal impresso, continuava Diego, e tem sempre uns meninos da Igreja distribuindo o jornalzinho deles lá na entrada do metrô Maria da Graça. Aí vou, pum, meto o jornal embaixo do braço e sigo meu rumo pro trabalho. Ele puxa a cadeira, pede dois copos, uma cerveja e completa dizendo que é melhor mudar de assunto. O jornal é bonzinho, insistia, bem escrito. Eles lá com a fé deles sabem colocar palavra na frente de palavra, são jeitosos. Um dia desses vou pegar o RelevO e trocar com os meninos, aí veremos o cabrito que vai ser parido. O poeta, já sentado, acende um cigarro e abre o jornal. Fala do gosto de ler no papel e que nesses tempos parecem empedrar a aura de uma tábula. Só estamos no celular, né? Jornal, hoje em dia, precisa de porte? Aliás, é mais fácil você ver um fuzil do que um ser lendo uma jornaleta. Que doideira! E, olha, diz o nosso comentarista do mês, naturalmente, cagar lendo um jornal, na moral, não tem preço! De repente, ele pega um exemplar do Jornal que tinha deixado em cima da mesa, abre o jornal simulando um anjo terreno batendo as asas. Se levanta. Começa a discursar.
Estamos no Ximenes da Riachuelo, restaurante localizado na Lapa:
— Caros leitores, eventualmente presentes neste belo e bem frequentado restaurante, eis o jornal RelevO. Não, não é uma esquete. Estou aqui, de fato, apresentando um jornal de literatura, um impresso. Coisa boa, ficção fina, melhor que o seu maior concorrente no Brasil, o Universal. Conto, poesia, foto, artes plásticas, sem modorra de banqueiro playba, longe, bem longe da arte de cabelo bagunçado e à sombra do poder. Nessa edição, temos uma coletânea de poemas de Kay Sage. Primor! Bilíngue. Olha aqui: “cola de peixe / olhos em casas de vidro / atirando pedras.” Aqui também, na página 13, um desabafo do Sérgio Mallandro. Perdeu essa, Mad. E tem correio do amor um pouquinho pior que de festa junina. E nem me falem de aplicativo hoje, tá? Rodem este jornal por aí e vejam se eu estou mentindo!
Passou para a moça da mesa ao lado, que sorriu. Diego senta na mesa, Sou um ótimo jornaleiro, né?, ele não vai muito com o jeitão do Saramago. Mas, Maieiro, um jornal daquele, sem tirinha, é sacanagem. Tem que ter tirinha, irmãozinho!
Diego Barboza, segundo quase uma dezena de críticos do Rio, o que é uma multidão se tratando de poesia, é o poeta da geração.
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Jussara Lessa está certa, as letrinhas do jornal dificultam muito a leitura. Principalmente, dos textos em prosa. Na opinião deste ouvidor, o único defeito da diagramação do RelevO.
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Daniel Zanella, nobilíssimo editor, vou ser demitido?
Essa coluna serve como crítica aberta e sincera ao conteúdo e à forma do RelevO. O tal do ombudsman é um ouvidor, um representante dos leitores, o responsável pela crítica ao jornal dentro do jornal e sem interferência dos donos do jornal. O alvo sempre é a edição anterior. Assumi a tarefa de ser o ombudsman do jornal por um ano, comecei em janeiro. A escolha é fazer um mandato literário: de apresentar o jornal e narrar as impressões de novos leitores. Os escolhidos, em tese, serão escritores, editores ou qualquer coisa (viva, ou quase). Prometi o número de um orelhão – telefone público de rua, dá um Google aí, jovem guarda revolucionária –, mas ainda não consegui um em plenas condições de uso na Cidade Maravilhosa. Por enquanto, me xinguem, com o devido carinho, pelo e-mail contato@jornalrelevo.com. Sugiro ao editor do jornal que incentive a arte de Catarina: envie cola, tinta e canetas. Sem dúvida, Catarina vai compor uma bela colagem. Ah, por favor, mandem os jornais atrasados para o William Saab!
Rio, janeiro, dezenove do um
Sol, muito sol
Os rumos do impresso no país dos não leitores
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Em um cenário saturado pelo digital, onde o scroll infinito domina as interações e o tempo livre, mudando a percepção de foco e derretendo nossa concentração, a alternativa do impresso justifica sua existência de formas cada vez mais lógicas. Na competição diária pela atenção e na macarronada de algoritmos moldando nossos interesses, o impresso oferece uma pausa intencional e menos fragmentada, algo que a experiência digital – cada vez mais como uma roda de hamster a serviço de anúncios – dificilmente consegue (ou tem interesse de) replicar.
A recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, trouxe à tona a grave realidade do desinteresse pela leitura no país. Mais da metade da população (53%) não leu sequer parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa, independentemente do suporte. Esse dado é comovente não só por demonstrar a desconexão com o hábito da leitura como um todo, mas também por revelar um sintoma mais profundo: uma sociedade em que não ler caminha para a norma, ao contrário do uso de tecnologias cada vez mais balbuciantes. (Convenhamos, não que antes da internet o Brasil fosse o Olimpo da intelectualidade…)
Outro dado merece atenção. A predominância do celular – 75% dos entrevistados afirmam passar mais tempo no dispositivo do que com um livro impresso –, quase uma platitude, traz uma ponderação acerca do impacto das telas em outros aspectos da vida. A hiperconectividade digital não afeta só os hábitos de leitura, uma vez que transforma o modo como nos relacionamos com o tempo e com o mundo físico. Atividades que dependem de presença, como caminhar, visitar amigos, ou até mesmo o estabelecimento de vínculos íntimos como… sexo, estão em declínio, substituídas por interações mediadas por telas.
Claro que estamos falando de uma generalização a partir de dados – e que temos, sim, zonas de respiro também nas gerações nascidas já com a internet em domínio. E não esqueçamos novamente da pesquisa: apenas 17% dos adultos acima de 40 anos têm o hábito da leitura. É uma geração pré-internet. O problema é muito mais antigo. Entendemos que o impresso, nesse cenário, pode se tornar, paradoxalmente, um ato de renovação, já que o formato não se limita somente à transmissão de informação; é um retorno à experiência tátil, visual e emocional. Livros, revistas e jornais oferecem um tipo de interação imersiva e não linear, permitindo ao leitor pausar, reler e contemplar, em oposição à efemeridade do conteúdo digital. Impresso não tem pop-up. Para além da nostalgia, o impresso encontra novas justificativas para sua existência: é um meio que incentiva o foco, a introspecção e o distanciamento saudável da saturação informacional.
Assim, o desafio não é resistir ao digital, tampouco introjetar leitura em dançarino do TikTok, mas construir uma cultura em que o consumo de conteúdo impresso seja mais presente. Chamamos isso de letramento analógico. Em um país onde a quantidade de não leitores supera a de leitores, fomentar o hábito de leitura é um passo vital para formar indivíduos menos… derretidos. Não que o RelevO, especificamente, vá salvar o Brasil de seu buraco quente (não o sanduíche), mas as redes dos bilionários malucos da ideologia californiana do Vale do Silício certamente não estão aqui para nos conduzir à evolução.
No dia a dia do Jornal, conversamos muito sobre o letramento para impresso. O que isso significa? É a nossa tentativa miúda de colocar mais leitores em contato com a nossa “plataforma”. Nosso plano logístico de distribuição, que dá acesso [grátis] ao periódico em mais de 400 pontos culturais do Brasil, tem como mote o contato com o impresso. O plano é todo financiado por nossos assinantes. Também pensamos no acesso do Jornal aos escritores. Janeiro, por exemplo, é o mês em que fazemos as devolutivas dos autores e autoras que mandaram materiais no último semestre. Acredite: muitos escritores nunca folhearam uma edição do RelevO (ok) ou sequer de outro impresso (aí complica). Mesmo entre aqueles que escrevem, as trocas de mensagens são estarrecedoras. “Olá, obrigada pelo retorno, mesmo que vocês não utilizem meu material. Quem sabe na próxima! O que é periódico? Gostaria de entender melhor” ou “Estava mais interessado na publicação do que na leitura do Jornal, não precisa mandar a edição de cortesia não”. “Mas como chega o jornal? Por email?”. Todos exemplos reais, ipsis litteris.
Em outra ponta, enquanto o Brasil vê regredir sua curva de leitura rumo ao grunhido, até mesmo gigantes do setor digital tomam ações na direção do impresso. A recente decisão da ByteDance, dona do TikTok, de expandir sua editora 8th Note Press para o mercado de livros físicos, é emblemática. A gigante chinesa aposta no crescimento da comunidade BookTok para lançar livros impressos voltados às gerações Millennial e Z. Paralelamente, revistas como Vox, Vice e Saveur retornam às bancas, ao passo que o mercado americano celebra o lançamento de mais de 70 novas publicações impressas apenas no último ano. Por aqui, temos o retorno ao impresso da folclórica Capricho.
Claro: em tempos de incertezas, a nostalgia desempenha um papel importante. Objetos físicos, como livros, vinis e câmeras analógicas, carregam uma carga emocional que os torna refúgios em meio ao barulho. Revistas impressas, muitas vezes transformadas em peças de decoração ou colecionáveis, ganham espaço pela experiência sensorial de folhear suas páginas e pelo valor estético de seus projetos editoriais minimalistas. Em muitos casos, isso não deixa de ser apenas um fenômeno de boutique.
De fato, o prazer do toque, da textura e do cheiro das páginas não pode ser replicado pelo digital. Não há interrupções irritantes, anúncios invasivos ou notificações que desviam a atenção. A leitura flui em um ritmo próprio, permitindo uma experiência limpa e imersiva. Além disso, o impresso resgata a noção de permanência. Enquanto plataformas digitais adicionam e removem conteúdos sem aviso, o que mantemos fisicamente em nossas mãos reflete nossa identidade e gera memória. Livros e revistas tornam-se extensões de quem somos, objetos que não só representam nossas preferências, mas também estreitam laços e promovem a troca de ideias. Impresso não pode ser editado a posteriori.
O milésimo renascimento do impresso não significa uma rejeição ao digital, mas sim uma convivência harmoniosa entre os dois formatos. Ambos têm seus méritos: o digital para a instantaneidade e o alcance global, e o físico para a profundidade e a conexão emocional. É nessa coexistência que leitores, criadores e editores encontram novas possibilidades: estamos falando de reimaginar o século 21 antes que ele se torne o ferro-velho completo dos bots.
Edição de fevereiro de 2024
Zeh Gustavo: Crise: o que faremos depois da escrotidão?
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
A culpa não foi, tanto, minha: as cartas de janeiro é que deram a deixa. Valeu, Catarina Lara Resende (será ela parente do Otto, amigo do Nelsão, a quem este atribui a frase “O mineiro só é solidário no câncer”?) e suas Doses de escrotidão! Teve ainda o relato do apogeu e queda do Clube de Literatura Café no Cocô, por Cândido Magnus, um nome acima de qualquer suspeita. Houve as saliências de Natan Schäfer, citando José Paulo Paes: é sempre por essas que escrotos como nós geramos algo como “[…] a carne possuiu a carne” ou “nossa cabana tem furos no telhado”, em que se acusa a Lua de ser uma tremenda voyeuse. Então pediram, ah se pediram!
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O Conselho Editorial deixou passar mais esta: a terapia não está, nunca estará em dia — falta-me, além de fé na viabilidade de uma adimplência psicológica (!), o quinhentão mensal para minha autoelevação espiritual diante do mundo da classe média analisada. Mas, ao contrário da Matilde Campilho (aquieta, coração!), eu choro fácil. Isso equilibra um pouco as coisas?
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Já me apresentei, seção passada, mas faltou dizer que eu sou um cara meio escroto (e precisava?), daqueles apaixonados pelos boleros lúdicos e torpes de Aldir Blanc, pela cafajestice lírica dos filmes do Hugo Carvana, pela rouquidão gostosa da Zezé Motta e pelos palavrões da Dercy Gonçalves. Arte-xarope eu tento sequer nem comentar, quanto mais doar-lhe um roçar qualquer de meus sete sentidos.
À questão: não bastasse o sequestro de ao menos certos simulacros de escrotidão pela direita mais imbecil — a fascistada que devia estar em cana! —, noto haver ainda uma outra crise, fruto de um surto de (pseudo)moralidade nos discursos, sobretudo os virtuais. E onde falta escrotidão também há de faltar amor & arte: não há literatura sem flores de escatologia e cretinice, ou seja, escrotidão tirada a método e a quente; tampouco amor sem uma sacanagem de leve, essencial à construção de afetos, digamos, mais carnosos. A assepsia da vida, tudo controladinho como num aeroporto, é o maior dos precipícios.
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— Fiu! Já sei! Fazendo caras de intelectual fingindo que tem vida interior intensa, né, ô babaca?!
—Poupa meu saco, Passarinho, poupa meu saco! (…)
—Já sei! Fazendo caras de intelectual da geração perdida, fingindo que é agressivo e vingador, né, ô Hemingway de merda?
Carvana e Antonio Pedro riem de soslaio em certo momento dessa passagem antológica de Bar Esperança: o último que fecha, com Denise Bandeira nuíssima, Marília Pêra impecável de descolada, Pereio de Pereio e uma penca de gente-personagem em rota fácil de ser cancelada no mundo pós-escrotidão. Como a boa sem-vergonhice, acha-se grátis o clássico no YouTube.
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Bolívar vai à academia. Olho assustado, adio o quanto der a missão, mormente após trocarem o velho malhar por treinar, o que nos remete à antiga Melô do Romário: “Treinar pra quê, se eu já sei o que fazer?!”
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Erlândia taca o porrete em almas amesquinhadas pela busca do encontro flácido: somos, cada qual, um microacidente “[…] que é milagre / e desastre / na mesma medida”.
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Escrutinadores da Akadimia pululam na redessoci e amam um Jorge Aragão feito com caipirinha de 51, com um toque de análises sociológicas do novo BBB. Às vezes, misturam Belo a discurso massa-empoderadx e Bacardi Maçã. Denúncia: é no dia seguinte disso que boa parte dos artigos e papers são produzidos.
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Lembremos do que nos dizem os verdadeiros pulhas: crise é oportunidade!
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Baby, pode soar a cantada barata, mas é importante para o futuro da nossa relação: você já ouviu falar de caralhinhos voadores?
Dos búlgaros ao Brasil Poeira
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Abrimos oficialmente a temporada de rimar amor com dor, de perguntas como “com ou sem caracteres?” e das leituras de novos materiais para as próximas edições do nosso impresso, quase 14 anos circum-navegando de forma ininterrupta. Neste período (que engloba 176 edições), publicamos mais de 2 mil autores e autoras, 90% destes pela primeira vez em um veículo impresso. Alguns que por aqui passaram, inclusive, ultrapassaram a barreira da nossa inexpressividade e hoje são colunistas de jornalões e agitadores sazonais do Twitter-X, o que, muitas vezes, significa a mesma coisa (ao menos com remuneração bem melhor que o RelevO, que não volta cashback).
Não fazíamos um chamado público desde março de 2020, primeiros dias da pandemia. Recebemos, à época, aproximadamente 3 mil colaborações, o que resultou em um caos logístico e editorial. O que mudou de lá pra cá? Além de organizarmos melhor nosso fluxo de avaliações —acredite: estamos em dia com as leituras de janeiro de 2024 para trás —, também estamos muito mais esclarecidos com o que buscamos em nossas páginas. Basicamente, três fatores se desdobram em outras camadas:
- Textos bem escritos, ou seja, que respeitam as normas básicas da nossa língua ou as subvertem conscientemente, criando efeitos estéticos ou sinestésicos interessantes [geram beleza].
- Textos criativos, inesperados, imprevisíveis, que fogem das soluções mais comuns do nosso tempo. Textos que explicam menos e não duvidam da capacidade de compreensão do leitor.
- Textos simplesmente divertidos e criativos.
Naturalmente, somos surpreendidos com textos que não se encaixam nesses eixos. Conforme a nossa linha editorial, “não temos nenhuma restrição quanto ao tema, embora, a bem da verdade, estejamos um pouco cansados de literatura com a linha ‘escritor triste fumando em um bar’, ‘escritor triste escrevendo sobre escrever’, ‘poema sobre o valor da poesia’ e ‘meu amor não correspondido acaba de sair pela porta’. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados”.
Junto do chamado para publicação, também fizemos a devolutiva de mais de 700 textos recusados. Trata-se de um processo desgastante em níveis diversos: responder negativas (quem gosta de trazer más notícias?); tomar decisões injustas (e se desmotivarmos um talento genuíno?); e, naturalmente, ler – talvez o melhor verbo seja “enfrentar” – centenas de textos realmente indefensáveis. Também sabemos que um autor não selecionado tende a guardar algum rancor do veículo. Não acontece com todos, mas acontece. Resumindo: perdemos potenciais assinantes (capital financeiro), perdemos seguidores e entusiastas (capital simbólico).
Sempre reforçamos ao autor que fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser. Esclarecer isso não impede que recebamos algumas tréplicas na linha “Tudo bem, o texto x é um sucesso de público, talvez o problema não seja comigo…” ou “Sou jornalista há mais de 20 anos, tendo ganhado alguns prêmios de literatura com crônicas, contos e poesias. Escrevo diariamente crônicas esportivas para um portal parceiro da rede x, gostaria de saber mais detalhes do por que minhas obras não seriam publicadas, já que contém potencial literário”. É do jogo, é do jogo.
Escolhas editoriais, mesmo que guiadas por um farol bem estabelecido, nunca deixarão de ser subjetivas, ratificando a nossa posição de meros leitores de uma certa e vasta produção que chega até nós, de traduções de escritoras eslavas a textos que falam das ”Estradas de chão, violas, bandeiras / Terra de Tom, Tonico e Tião”.
Uma boa leitura a todos.
Edição de fevereiro de 2023
Amanda Vital: Ombudswoman 2: é preciso ter estilo
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
es·ti·lo (latim stilus, -i, instrumento com haste pontiaguda, instrumento para escrever nas tábuas enceradas)
“estilo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021
Car_s leitor_s, tem uma coisa que me pega aos pouquinhos — cada vez um pouco mais — lendo a seção de cartas do Jornal. É um argumento-questionamento que vem aparecendo intermitentemente já há algum tempo, e não me lembro se os ombudsmen/women anteriores falaram sobre isso. Se sim, venho endossar o coro. Falo desse argumento que une tanto o possível leitor que não quer assinar o Jornal (e precisa dar uma justificativa qualquer) até o autor que foi rejeitado e quer cancelar a assinatura (e não quer ver o editor nem pintado de ouro): “ah, é que o RelevO não faz muito meu estilo”. Eu não queria deixar isso passar na minha curta estadia por aqui — e ainda vou falar de rejeição de textos e sobre jornal impresso, numa outra altura, que também queria poder dar um pitaco ou dois. Mas já agora, pergunto: o que é, na realidade de um jornal literário generalista, ter um estilo? Como ele é alcançado? O que é preciso fazer para receber um rótulo de estilo? Ter esse rótulo é necessariamente saudável e bom?
Minha reflexão vale o que vale. Mas penso que a partir do momento em que um veículo de literatura define sua curadoria, e aqui simplifico bastante por ter muitas outras subjetividades embaixo disso, em 1. o material ter um traço de qualidade marcante; e 2. todos são bem-vindos, renomados ou não, cabe uma pluralidade de estilos dentro dessas duas premissas. Do soneto ao verso livre, da prosa contemporânea experimental ao fragmento de romance tradicional com ares mais clássicos, do tradutor literal ao inventivo, do ensaio acadêmico catedrático ao literário mais híbrido.
E fujamos das formas, também, e digamos do conteúdo — do esporrado que sai daquele conto erótico do escritor frequentador de sarau temporão em taberninhas (aquele que geralmente pega o microfone pra ler um Bukowski, uma Hilda Hilst ou um beat norte-americano), do poeta escrito a partir de slam de uma feminista de rua intervencionista (muitos dizem “panfletário” para tentar diminuir essa possibilidade de existência da poesia, porque “ai, meu Deus, feministas não-acadêmicas querendo espaço aqui no templo sagrado da poesia, falando de liberdade sexual, de igualdade de direitos e de pelos nas axilas, assim, como se não fosse nada de mais, isso é um absurdo”), das diferentes formas de beber de fontes — e todas as fontes são potáveis e próprias para consumo.
No veículo generalista, a literatura é viva e vai sendo universal em seu melhor, abrangente mas sem cirandinha, porque aquela premissa 1 é, no fundo, seu próprio estilo editorial. E é um passo mais à frente após décadas de suplementos literários feitos apenas por convite, restritos a elites literárias, privilegiando amigos, políticos e familiares. E que, vamos ser sinceros, esses é que publicavam sempre mais do mesmo: a seleção de textos não circulava muito, reclusa a algumas dezenas de autores.
Por isso, o conceito de “jornal generalista” me aparece em mente: porque vejo esses jornais e revistas, físicos ou digitais, como veículos amplamente democráticos e abertos a todos os públicos, que não querem ser especializados num determinado recorte (ex: publicar só autores modernistas, só autores concretistas, só autores contemporâneos, só sonetos de amor, etc), sim, mas isso tudo faz sentido em termos de estilo mesmo assim. Porque existe o fator curadoria que não deixa tudo virar farofa da Gkay, com a seleção de bons textos que as pessoas podem gostar de descobrir (e é saudável e bom descobrir coisas novas), porque são e estão fazendo o presente na literatura. Porque a curadoria editorial é e está fazendo o presente da crítica literária no país. Essa crítica que “anda tão sumida, cadê ela?”, e segue assim, nos bastidores. Esse estilo que rabisca as tábuas enceradas e vai grafando fragmentos da história da literatura.
A Camila Passatuto, excelente poeta, aparece na última edição com um ensaio — que não quero dizer “sobre a obra de”, mas que “parte da obra de” Lucas Verzola, para a dissertação, entre as diversas provocações da obra, do “consumir-produzir literatura”, da produção entre empecilhos do contemporâneo. E deu muito certo. A transição entre estilos é o necessário para canalizar um ímpeto que seria para um canal já atravessado com alguma frequência, na escrita e na reflexão, em um outro exercício que pega emprestado o traquejo do trajeto anterior. Lúcido, esclarecedor e com uma abertura bonita que a Camila tem sobre a literatura em ação.
O delicioso “brincadeirinhas”, de Camila Lourenço, é a justa medida entre a denúncia da disparidade de visão da sociedade sobre meninas e meninos da mesma idade e o alívio de uma brincadeirinha consensual das primeiras experiências — chegamos a um ponto em que se é consensual, é um alívio —, que também anda lado a lado com isso. O “eu acho que senti o arrepio primeiro”, a experiência amorosa do início da juventude descrita sem maldade, sem exagero e sem condenação (sem, no fundo, a “mão invisível” do conservadorismo enraizado), da perspectiva da menina, do domínio. Que mais meninas (acredito que o texto também possa ser lido por jovens, sem problema algum) tenham mais exemplos como esse texto, com literatura “a sério” e não só os mesmos livros de autoajuda e montagens rápidas de Instagram para alcançarmos um controle cada vez maior sobre o nosso corpo, as nossas vontades, os nossos sentimentos.
Outra decisão crítica super acertada foi a poesia da Carolina Bataier, que parece ter sido escolhida a dedo para dar mais um sacode gostoso em quem não conseguiria, por exemplo, lendo “O que fazer com um poema guardado”, enxergar ritmo (que há), originalidade (também) e trabalho (igualmente). Quantos vão passar por esse poema sem perceber o sarcasmo, a denúncia, sem se questionar “por que será que o encadeamento dessas sequências, dessas imagens entre um e outro verso, foi feito dessa forma?”. Ah, porque é quase poema-recorte atrelado à oralidade, “é tudo feito ao calhas”, como diriam em terras lusitanas. Mas Carolina pegou nas situações mais inusitadas para se depositar-ler-publicar-botar para fora um poema. Apanha-o como um boneco de papel, manipula as palavras a sua maneira. Ali, o poema disserta (ui, o perigo do poema descritivo destruidor da nobreza poética!), propõe, tira sarro. Manda na autoria, manda em tudo. E tudo, absolutamente tudo é válido, menos deixá-lo na gaveta. A metapoesia feita sem precisar de palavras mirabolantes.
Ainda em poesia, Davi Koteck — que tem uma produção excelente em poesia e em edição, com a ótima revista Rusga (se ainda não está em circulação, que isto aqui seja um incentivo para retomá-la) — flerta com o realismo mágico e o nonsense, construindo camadas para construir um ciclo que volta ao início (“Não tenho mais vontade de ser feliz”/“na minha cabeça parece que eu não mando”) nessa vivência do contemporâneo que é ora apática, ora com faíscas de qualquer coisa nova, fora do comum, que nos puxe um bocadinho mais para o estado de euforia.
Para a contracapa, foi selecionado o centenário português Eugénio de Andrade, com “Canção” (que, salvo engano, acredito que parte dele tenha virado mesmo uma canção de uma banda portuguesa), de seu livro Primeiros poemas, encerrando a edição com essa reminiscência curtinha tão bonita, uma gota dum orvalho feito de metades proporcionais entre a metáfora-imagem e o cotidiano-oralidade.
O que quero com tudo isso? Além do costumeiro costumer service, apenas provocar com algumas centelhas de birra contra o tradicionalismo excessivo e a favor do caminho bonito que a literatura tem alcançado de ora equilibrar o novo e o velho, ora mandar tudo à merda para fazer estilos do zero. Mas o que eu quero, mesmo, é desejar uma boa continuidade de começo de ano para todo mundo. E por falar em estilo, sejamos um bocadinho mais rebeldes. Mas se não quiser, não precisa.
Jornal de papel como experiência coletiva
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Tivemos quase 170 edições para observar e comprovar: um jornal impresso de papel e de literatura não existiria sem uma comunidade. Ao longo de quase 13 anos, passamos por diversas intempéries da vida: jornal com ares de jornal de faculdade, jornal de um desempregado pós-faculdade, jornal com ambições nacionais, jornal que se organiza como o esquema tático de um clube emergente, mas de pouca torcida— sabendo que briga primeiro contra a ZR e depois se estabiliza na busca por vaga em competições intermediárias. Lidamos com o aumento de custos de tudo, com uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros (inclusive colaboradores e assinantes), com a diminuição de nossa arrecadação, enfim: passamos por diversos ciclos que nos trouxeram alguns padrões comportamentais, por assim dizer, e que, sobretudo, nos trouxeram até aqui.
O RelevO não arrisca mais do que é capaz de manter. Temos dificuldades, mas você certamente nunca ouviu um “o RelevO não pode acabar”. Não queremos acabar; no entanto, também não queremos que o assinante pense que estamos prestes a acabar (muito menos que o país precisa de nós). Assim, estruturamos uma operação para tentar controlar o controlável: o tal Risco Brasil. Com operação enxuta, prestação pública de contas e uma possível retomada econômica — que podemos até constatar como certo otimismo para 2023 —, voltamos a expandir nossa circulação, o que resultou em dois meses de prejuízos (com o qual já contávamos). Aumentou nosso custo, ainda não aumentou nossa receita, porém isso era esperado.
Desde o começo de dezembro, voltamos a entrar em contato com livrarias, cafeterias e pontos culturais para fazer o envio gratuito do Jornal. Gratuito em partes: quem financia o envio são os assinantes que adquirem os planos especiais de apoio à nossa distribuição. Antes da pandemia, disparávamos o RelevO para mais de 300 pontos, algo sem dúvida acima da nossa capacidade logística de absorção. Não à toa, com a pandemia, interrompemos a circulação em pontos físicos e conseguimos, por outro lado, finalmente remunerar todas as pessoas que trabalham em nossa estrutura, da distribuição aos autores e autoras. Pagamos pouco, mas pagamos — em um meio encharcado de trocas de favores e cobranças para publicar (“todo dia um malandro e um otário…”).
A pandemia de dois anos apertou o cerco logístico e o financeiro. Tivemos queda de 20% de nosso faturamento. Ao mesmo tempo, aqui estamos, com novos planos e com aquilo que, sem dúvida, foi o que nos trouxe até fevereiro de 2023: a nossa comunidade. Atualmente, enviamos o jornal a 120 pontos espalhados pelo Brasil todo, além de 150 bibliotecas comunitárias. Nossa meta para 2023 é audaciosa: chegar a 600 pontos, mandando exemplares para todos os estados e, principalmente, para espaços fora dos grandes centros urbanos.
Entendemos que esse plano vai ao encontro de pilares institucionais muito caros para nós, como a descentralização e o acesso a quem não tem condições de nos assinar. Acreditamos que, com mais 200 assinantes, consigamos sustentar essa distribuição mensalmente — também estamos estudando a criação de uma associação de apoio à distribuição do RelevO, formada por contribuintes que sejam algo como o patrocinador master do Jornal. Em valores absolutos, precisamos de R$ 5 mil a mais para cobrir o Brasil todo com o nosso periódico.
O RelevO não é obra de um gênio, de um abnegado, de um filantropo, de um rico entediado, de quem faz cavadinha na hora de bater pênalti. Somos a soma de procedimentos com uma comunidade. Não somos uma experiência individual e não praticamos a arte do consenso, bastando verificar nossas cartas e os nossos ombudsmanatos. Acreditamos muito em produções e construções que agreguem o esforço de um grupo sem que isso represente a perda de uma suposta identidade. O grupo que representamos é o de nossos assinantes. Acreditamos que são vocês que nos escolhem, por R$ 70 ao ano ou mais, para ler um periódico de papel por mês. E agora queremos que isso chegue para mais pessoas — simples assim.
Uma boa leitura a todos.
Edição de fevereiro de 2022
Osny Tavares
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
É engraçado esse troço de pensar em direitos do leitor. Não como o Daniel Pennac, mas como uma certa matéria de direito. Que direito, de fato, tem o leitor? O consumidor tem direito que o livro comprado tenha todas as páginas encadernadas em ordem, mas o leitor tem direito a uma coerência?
Quais direitos deveriam ter, então, quem lê o RelevO?
Ler é eufemismo de bisbilhotar.
O leitor tem, sempre, o direito de ler.
E os verdadeiros românticos mandam cartas.
* * *
Esta é a última coluna deste meu segundo período como ombudsman do RelevO. Obrigado pela leitura. Nos encontramos depois.
Saber ser novo, saber ser atual
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Todo começo de ano, buscamos aprimorar, modificar ou nos esquivar de determinados comportamentos típicos da nossa estrutura. Refém de ciclos como sempre fomos — isso de ser mensal nos conecta ao tempo do calendário —, vamos, ao longo do ano, empurrando alguns problemas. Por exemplo, a dificuldade de manter em dia a leitura dos originais que nos são enviados, bem como a aversão (ou simples inaptidão) notória que temos das redes sociais.
Com relação ao nosso primeiro déficit histórico, começamos o ano lendo quase mil textos, retirando no mínimo 50 que podemos ler, reler, olhar para o lado e dizer: “aí sim, aí sim”. Ainda temos aproximadamente 500 leituras pendentes. Em 2021, tivemos um aumento de 30% nas submissões de textos, o que consideramos um excelente fator de interesse — e um dado angustiante. Mais textos lidos (e aprovados) indicam a possibilidade de prover edições mais coesas, tanto editorial como graficamente.
Entretanto, há duas questões crônicas nas não leituras. A primeira refere-se ao tamanho do nosso Conselho Editorial, atualmente composto apenas por editor, editor-assistente e um terceiro editor-leitor do meio literário, fora da nossa redação, consultado em casos de dúvidas mais complexas sobre o material submetido para análise. Somos dois (mais um, eventualmente) diante da vida e de uma pasta chamada “[0] Avaliar”, crescendo diariamente como a sede ao longo de fevereiro. Podíamos ser mais? Sim. Sem remunerar? De forma alguma.
O segundo aspecto é que recebemos muitos, muitos, muitos textos absolutamente ruins, equivocados, crus, fora das nossas normas básicas; textos que fariam corar estudantes do 4º Ano do Ensino Fundamental. São textos de política partidária mais afeitos ao cotidiano dos portais; textos sobre a primeira gestão do presidente de uma associação médica de Curitiba; textos escritos literalmente para o jornal da faculdade; textos que os autores queriam enviar para o outro jornal de literatura que também começa com a letra R; textos em que a bio (a qual sempre enfatizamos não ser necessária) parece ser mais importante que o texto.
Você deve saber por intuição ou por execução: ler diversos textos ruins, na sequência, um atrás do outro, é como caminhar descalço no asfalto; os cinco segundos intermináveis do cotonete do exame PCR no seu nariz; a sensação de acordar sem sentir o braço; o prelúdio turvo da sentença “quer ouvir algo desagradável agora ou conversamos depois?”.
Temos orgulho e medo da pasta “[0] Avaliar” e nunca negamos que somos um jornal de base. Muitos escritores e escritoras começaram suas trajetórias publicando em nossas páginas. Muitos sequer tinham passado pela experiência de ser remunerados por ligar uma palavra à outra, embora seja plenamente possível fazê-lo nos maiores jornais de literatura do Brasil sem receber um centavo. Enfim, sabemos que somos cancela de pesagem.
De modo algum negamos a satisfação de, em meio às trombadas desleais e aos jogos de corpo com vantagem para a defesa, encontrar aquele texto matador, redondo, que para em pé; o texto divertido, envolvente, estranho, porém “belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”, tal qual alegava o Conde de Lautréamont perante o que consideramos a ideia máxima de afetividade. São os textos bons que nos fazem esquecer que somos editores, que emulam a nossa velha vontade de simplesmente ler algo prazeroso (com todos os subjetivismos implícitos) e de dizer “olha isso aqui, olha isso aqui”.
Acerca da nossa aversão às redes sociais, damos alguns passos na direção de aproveitar mais os benefícios e as facilidades das novas ferramentas, mesmo que sintamos certo desconforto em ser insider daquilo que nem queremos conferir tão de perto. Paralelamente, temos algumas ressalvas em relação ao VAR. De todo modo – e mais importante que isso, ao menos para nós –, subimos todas as edições da história do RelevO em nosso próprio site. Também estamos subindo todos os textos dos diferentes ombudsman.
Antes de tudo, somos um jornal impresso, envolvido na materialidade do ciclo mensal, com custos físicos, datas-limite. Não somos um projeto paralelo ou um hobby. Temos muitas informações sobre o nosso meio e nosso público e planejamos a nossa continuidade de acordo com as intempéries que se apresentam. Em meio a isso tudo, tentamos ser novos sem ser efêmeros, tentamos ser atuais sem abrir mão da nossa forma de ser e estar no mundo. O problema do VAR continua sendo os operadores.
Boa leitura a todos.
Edição de fevereiro de 2021
Osny Tavares: Coisas para salvar do fim
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Não sei por quê, mas ultimamente andamos meio apocalípticos, escolhendo o que retirar das chamas. Afinal, a literatura é meio que um pensamento que salvamos do comum. Diante do tanto que estamos sentindo nesse período, e da impossibilidade de significar tudo agora, fazer este jornal demanda um apuro especialmente sofrido a respeito do que registrar e comunicar.
Pois um impresso pode ser um back-up da nossa produção incessante de informações. Aqui, estamos a salvo da superindexação e de tudo o que a acompanha. Não precisamos temer a má interpretação dos algoritmos, nem vigiar contra a turba de revoltosos à procura de um alvo.
O RelevO é um ambiente confessional.
A pandemia, por certo, afetou a tudo lá fora e aqui dentro. As etapas de produção e distribuição vêm segurando a bola no campo de ataque, e o conteúdo tem sustentado o jornal em sua fase madura, com uma miscelânea de novos e consagrados, lançamentos e registros históricos.
O Grande Fato de Nosso Tempo tem aparecido por aqui apenas ocasionalmente. Isso não é uma coisa nem boa, nem ruim. Talvez precisemos, mesmo, que o tempo possa realizar sua natural decantação primeiro. Ou então o certo é o oposto: precisamos escrever para nós mesmos, um para o outro, abrir a conversa que necessariamente precisaremos ter pelos próximos anos.
Os processos de produção literária — composição, tradução, crítica — obedecem a um ritmo que pouco mudou desde a invenção da imprensa (desde a invenção da leitura, talvez). Quando a marcha do tempo dá uma guinada súbita, é de forma muito cuidadosa que a arte irá absorver esse espírito. Parecer oportunista é desses medos que ainda não perdemos.
É possível engajar-se em correntes ainda não atadas ou aventurar-se na pretensão de cristalizar uma realidade ainda fervente? O RelevO e sua vocação experimental pode ser a rede a nos unir em nosso momento de dúvida.
Há sentido no que dizemos? Como saber sem dizê-lo? Esse é o paradoxo que sempre retorna ao escritor. Também é o deste ombudsman, que pontifica sobre o que desconhece.