Osny Tavares: Pode o jornal literário ser moral?

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Os manuais de Jornalismo afirmam que a função do ombudsman é questionar o jornal sob a perspectiva do leitor — que é exatamente aquilo que o ombudsman é. Ou seja, a função do ombudsman é questionar o jornal sob a perspectiva de si mesmo.

E a questão que mais me rói a barba desde há muito é a questão moral. 

Como é produzido e distribuído para quem o solicita mediante troca monetária, é inegável que o RelevO seja um bem. 

Mas pode o jornal ser bom, em sentido moral? 

Pode estar a serviço de algo? 

Amplificar algum discurso? 

Referendar alguma ideia? 

Dizer-se representar o que seja? 

Lecionar? 

Quem se deixará lecionar por um jornal literário? 

O que deve fazer o jornal literário, então? 

Destruir? 

Agredir alguém de alguma forma? 

Quem se sentiria agredido por um jornal literário? 

Então, literário é somente o que um jornal literário pode ser.

Osny Tavares: Ensaiemos!

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um amigo me contou de seu rápido encontro com Umberto Eco em uma praia italiana, e eu imagino a cena conforme descrita: o célebre escritor estirado numa cadeira com a pança peluda ao sol, na qual apoiava uma revista do Pato Donald. Para o meu amigo, e para mim, a visão é um símbolo prosaico dos caminhos nem sempre óbvios pelos quais o pensamento sobre a cultura pode enveredar.

O RelevO é abrangente: vai de Homero a Hermes & Renato. Uma vez mais, retrata a diversidade formada pela nossa comunidade de leitores. A aculturação não é um domínio sobre o repertório do outro, mas o encontro de novas conexões e possibilidades. 

Ensaio é gênero investigativo por excelência. Espécie de crônica acadêmica, tateia pubescente pelas áreas do saber especulando sobre o novo. É literário em seus recortes e filosófico em seus objetos. Este ombudsman é um grande fã do gênero, e encontraria alguma felicidade em vê-lo com mais frequência neste jornal.

A edição anterior, de julho, trouxe um bom exemplo. Saul Cabral Gomes Júnior cruzou Heidegger e Clarice Lispector em “O Dasein clariceano”. O ombudsman, que leu nada do primeiro e algo da segunda, recebeu uma análise pessoal —suficiente em si —, que se projeta em direção a uma cátedra. O manejo conceitual em um campo distinto é ferramenta pedagógica e literária de grande valor.

O domínio teórico não é condição para uma boa leitura do texto. Ao contrário, o bom ensaio aproveita o ineditismo do leitor. Escapando ao risco do pedantismo, é possível ser leve, alegre e profundo, comunicando a um público de não iniciados.

O pool de autores e autoras do RelevO certamente encontrará muitas tangências dignas de serem rabiscadas. 

Em uma pança larga cabem bibliografias das mais diversas. 

 

Osny Tavares: Achados na tradução

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Faz alguns anos que o RelevO encontrou um nicho interessante na tradução de obras e autores inéditos. A cada mês, o jornal traz uma boa coletânea de poemas, contos e outras peças, geralmente acompanhadas do original e de uma apresentação. Assim, acrescenta uma utilidade própria do veículo periódico: receber e divulgar uma literatura que, embora chancelada em outros DDIs, ainda não encontrou gancho para a publicação em livro pelo mercado editorial convencional. 

A edição de junho, por exemplo, publicou poemas do polonês Aleksander Wat, traduzidos por Piotr Kilanowski e apresentados por Fernanda Dante. A escolha chama a atenção para um interessante fenômeno de localização. É desnecessário situar a região de Curitiba em geral — e a cidade de Araucária, em particular — como centro de irradiação da cultura polonesa no Brasil, além de QG do Jornal.

Antes mesmo do célebre poeta bigodudo, a comunidade de imigrantes e descendentes da Polônia têm mantido e dissipado a cultura do país de origem. Basta citar o sucesso da poesia de Wisława Szymborska por aqui. Publicada pela primeira vez em 2011, com tradução da professora Regina Przybycien, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a vencedora do Nobel de Literatura em 1996 consolidou seu nome entre os leitores de versos daqui.

Universalizar é localizar. Que, cada vez mais, o RelevO tenha a felicidade de identificar e irradiar esse tipo de fenômeno. E que, a partir da Colônia Thomaz Coelho, Nossa Senhora de Czestochowa possa estender suas bênçãos sobre a saúde financeira e intelectual do jornal. 

Brazilliance: entrevista com Andreas Dünnewald

Extraído das edições de maio (parte 1) e de junho (parte 2) do Jornal RelevO: as duas partes foram agrupadas neste link. O RelevO pode ser assinado aqui. Também apresentamos o Brazilliance na Enclave, nossa newsletter, que pode ser assinada gratuitamente.

Brazilliance: o alemão por trás de um catálogo extraordinário da música brasileira

Descobrimos o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais, isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas. Há 167 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século XX, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes extraordinárias, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. A partir disso, um novo universo se abriu: no Brazilliance, editado pelo alemão Andreas Dünnewald, conhecemos e reconhecemos a música brasileira. Logo nos interessamos, portanto entramos em contato para entender quem (e o que) move um trabalho tão fino. Nesta e na próxima edição do RelevO, compartilhamos nossa conversa e incentivamos, convidamos, convocamos qualquer leitor com o menor interesse na música brasileira a acessar o Brazilliance, um verdadeiro baú boiando pela internet. Dünnewald também é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

JORNAL RELEVO: Nossa primeira pergunta é… por quê? Digo, por favor fale um pouco sobre quem você é e o que gerou esse seu interesse em música brasileira.
ANDREAS DÜNNEWALD: Nasci em 1964 e moro em Frankfurt am Main (Alemanha). Em uma vida passada estudei design de moda, gráficos de moda, design de estampas e alfaiataria em Viena (Áustria). Apesar de certo sucesso inicial depois de retornar, eu não gostava da indústria e a deixei após três anos. Na minha vida atual, trabalho em escritório, o que não era exatamente o plano, mas foi apenas uma das voltas e reviravoltas.
Foi no verão de 2007 que eu, enquanto procurava algo que não ouvia havia muito tempo em minha coleção de discos, deparei com um disco de João Gilberto (que, depois descobri, era uma compilação de seus três primeiros álbuns). Eu conhecia a bossa nova que os brasileiros haviam gravado com músicos de jazz nos Estados Unidos, mas – subitamente me dando conta de que aquele era o som original – me perguntei: como a bossa nova soava no Brasil? Como era o resto da música [brasileira] naquele tempo? Quem eram os músicos e cantores?

JR: O que veio primeiro, sua curiosidade pelas capas de discos brasileiros ou pela música?
AD: Procurando na internet, me surpreendi ao encontrar sites cujos donos investiam horas intermináveis digitalizando discos esgotados e suas capas – e disponibilizando-os aos fãs para download. O melhor deles era o Loronix, do Zecalouro, um músico do Rio de Janeiro com uma rede que incluía alguns artistas da época. Loronix era um paraíso musical formativo, embora tenha existido por apenas três anos. Por muitos anos, o número desses sites cresceu constantemente, mas hoje há apenas alguns ativos, como o Parallel Realities, de Milan Filipović, na Sérvia, e o Toque Musicall, de Augusto TM, no Brasil. Eu tive a sorte de procurar exatamente na hora certa.
Aqui na Europa, existia (e existe) só um repertório curto disponível em CD, mas os downloads de vinil ofereceram a verdadeira extensão. Foi assim que descobri cantores e músicos que amei desde então, como Elza Laranjeira, Miltinho, Edison Machado e Moacyr Marques, bem como músicas cuja beleza eu não sabia que existia, como ‘Não Me Diga Adeus’, ‘Derradeira Primavera’, ‘Você Passou’ e ‘Murmúrio’.
Um amigo – que havia ficado igualmente impressionado com o que encontrei – me pediu para discotecar em sua festa de Ano Novo, e projetamos um slideshow com 300 capas de discos na tela para que os convidados pudessem ver aquilo que escutavam. Enquanto ajeitávamos o projetor e a tela, ainda em cima de uma escada, tive a ideia de fazer um livro sobre essas capas deslumbrantes. Foi assim que o Brazilliance começou como livro – apenas para mim e um público privado. Conforme o primeiro rascunho tomava forma, entrei em contato com uma gráfica recomendada por um amigo que trabalhava nessa área. Quando viajei os 200 quilômetros para visitar a gráfica e discutir a escolha de papel e a capa, para minha surpresa, eles me informaram que também tinham uma editora e que queriam publicar meu pequeno livro. Precisei de três anos e meio para, a partir daquela ideia na escada, segurar o livro em minhas mãos.

JR: Sobre o livro… Brazilliance é muito mais focado no design, certo? De que forma ele levou ao trabalho no site?
AD: Considerei acrescentar texto no livro, mas decidi que ele deveria consistir puramente em uma galeria visual. Há alguns livros semelhantes, mas (considerando que o meu seria meramente privado àquela altura) eu não tinha qualquer intenção de competir com eles. Bossa Nova e Outras Bossas, de Caetano Rodrigues e Charles Gavin, foi o primeiro e ainda é o melhor. Infelizmente, trata-se de uma edição limitada, publicada em 2005, que logo se esgotou. Ao menos consegui uma cópia usada, ao contrário do livro seguinte de Gavin, 300 Discos Importantes da Música Brasileira, publicado em 2008 e também esgotado rapidamente. Ademais, há o Bossa Nova and the Rise of Brazilian Music in the 1960s, lançado em 2010 pela Soul Jazz Records, em Londres, com uma diagramação adorável, mas bem menos completo e com alguns erros editoriais.
Enquanto finalizava meu livro, passei a construir meu site, afinal de que outra maneira o mundo saberia sobre o Brazilliance? Além disso, o site nos permite experienciar a música contida dentro dessas capas fabulosas. Para combinar os dois, eu baseava os artigos em páginas duplas selecionadas do livro, de cujas capas escolhia os cantores e músicos para os retratos e as playlists. Naturalmente, esse conceito não poderia continuar para sempre, por isso encerrei depois de 45 artigos e iniciei as páginas de músicas.

JR: Você já esteve no Brasil? Além da música, você mantém algum tipo de relação com a cultura brasileira?
AD: Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros, embora cerca de seis mil morem na minha região.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Você havia comentado que não fala português. Como isso afeta sua pesquisa? Você tem algum amigo brasileiro (ou português) para te ajudar – ou sequer precisa?
AD: Ao longo dos anos, aprendi algumas palavras das letras, assim como aprendi algumas das óperas italianas. Falar a língua certamente ajudaria com a pesquisa – e talvez algum dia eu comece a aprender –, mas ela funciona bem com os tradutores online.
Quanto às páginas das músicas, para mim é importante incluir as letras, e por sorte a maioria está disponível na internet. Nem sempre certas, no entanto. Por isso eu sempre as comparo acusticamente com as gravações originais antes de usá-las em um artigo.
Porém, traduções para o inglês [das letras] que refletissem precisamente a dicção e o estilo – portanto, expressão e emoção – seriam a conclusão perfeita para essas páginas. Sem saber as letras, nós (não brasileiros) definitivamente estamos perdendo algo. Traduções automáticas não compreendem as complexidades de uma língua, e muitos dos meus acessos vêm da América do Norte, Europa e Ásia – pouquíssimos entendem as palavras originais. Seria incrível se essa parte artística das músicas pudesse ser compreendida por todos, mas isso demandaria alguém disposto a traduzi-las, o que seria uma tarefa literária.

JR: Em todos esses anos, qual é sua maior surpresa ao lidar com a música brasileira (incluindo as capas)? No sentido de “meu Deus, isso é um tesouro escondido!”.
AD: Nos primeiros anos, claro, qualquer nova música, cantor, banda e arte gráfica parecia uma caça ao tesouro que desenterra joias. Entretanto, a maior surpresa foi quando o neto e o filho de Eddie Moyna me escreveram em questão de dez minutos.
Nos anos 1950 e 1960, designers gráficos sequer eram mencionados pelas gravadoras, e as grandes, como a RGE, não mudaram isso depois. Portanto, infelizmente pouquíssimos nomes são conhecidos. Cesar G. Villela aparentemente foi o primeiro a conseguir fazer um nome para si (que então passou a ser impresso nas contracapas), mas nada pode ser encontrado sobre outros, como Joselito, Maurício, Moacyr Rocha, Mafra – ou Eddie Moyna. Então foi um prazer muito especial – e completamente inesperado – escrever [o artigo] A Special Feature on Eddie Moyna depois que seu filho Carlos me providenciou algumas informações. Porque, até onde eu sei, trata-se do único retrato desse artista gráfico.

JR: Você é um colecionador de discos? Tem os discos físicos dessas capas que chamaram sua atenção?
AD: Alguns anos atrás, reduzi substancialmente minha coleção física, mas minha coleção digital consiste em cerca de 50 mil músicas, das quais cerca de 15 mil são brasileiras. Definitivamente corro risco de me viciar, mas hoje defino o HD do meu laptop como limite. Além de cerca de 80 CDs e 20 discos de vinil, minha coleção brasileira é digital porque é difícil comprar os vinis originais na Europa. Então, aprecio especialmente meu exemplar de Convite ao Drink (1960), de Djalma Ferreira, com seu fabuloso encarte de Joselito e fotografia de Mafra.
Como não falo a língua, não faria sentido abrir uma conta em um portal de sebos brasileiro, onde há muitas opções de escolha. Comprar discos internacionalmente ainda pode ser caro em razão de possíveis taxas alfandegárias. Mas o Youtube também pode ser uma grande fonte de gravações antigas. Eu até encontrei algumas joias em um portal romeno de mp3.

JR: Você já leu Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer? [Nota: livro em que o autor, um alemão, vem ao Rio de Janeiro obcecado para encontrar João Gilberto. Fischer se matou antes do lançamento.] Em termos de livros, especificamente, sei que parte do trabalho de Ruy Castro foi traduzido para o inglês, mas realmente não tenho ideia do que mais pode ter chegado à Alemanha vindo daqui. O que você me diz?
AD: Chega de Saudade, de Ruy Castro [ed. Cia. das Letras; na Alemanha, Bossa nova – The Sound of Ipanema: Eine Geschichte der brasilianischen Musik], é um livro excelente, escrito de maneira muito cativante, com grandes histórias de fundo. Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, vale a pena por sua perspectiva muito pessoal. Além deles, li alguns livros publicados em inglês no Brasil e nos Estados Unidos, mas não me lembro deles, então evidentemente não foram muito instrutivos para mim. Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado [ed. Nova Fronteira], de sua irmã Helena Jobim, ainda está na minha lista.

JR: Brasileiros entram em contato com você por conta do Brazilliance?
AD: Ocasionalmente. Seja para elogiar — o que, obviamente, é sempre um prazer —, seja porque estão procurando algum disco ou música. Mas de vez em quando algo especial acontece.
Certa vez, alguém entrou em contato a respeito do disco Orquestra de Danças (1957), da Orquestra do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro. O tio dessa pessoa havia composto três das músicas e participado das gravações. O sindicato em questão estava preparando seu aniversário de 50 anos, mas não tinha uma cópia do disco — que não estava disponível em lugar algum. Claro que foi um prazer lhes providenciar, ao menos de forma digital.
Outra vez, um casal me escreveu dos Estados Unidos indagando se João Gilberto e Tom Jobim tinham tocado no cruzeiro que eles fizeram do Rio de Janeiro a Nova York em 1962. Eles me perguntaram se isso poderia ter acontecido. Depois de alguma pesquisa, tive de responder que isso seria muito difícil, tendo em vista que à época ambos estavam tocando em seu famoso espetáculo no Au Bon Gourmet, no Rio, quando ‘Só danço samba’, ‘Garota de Ipanema’ e ‘Samba do avião’ estrearam para o público. Mas foi uma pergunta absolutamente comovente.

JR: O que você geralmente escuta? Em geral, não só de música brasileira. Aliás, você toca algum instrumento?
AD: Cresci escutando discos de jazz e a música pop da American Forces Network (AFN) [serviço governamental de mídia das forças armadas americanas], porque minha mãe não gostava da rádio alemã. Meu programa favorito quando adolescente eram as paradas dos Estados Unidos de 1935 a 1950, todos os domingos de manhã na AFN. Nelas, descobri as orquestras de Tommy Dorsey e Harry James e cantoras como Billie Holiday e The Pied Pipers.
Quando comecei a pintar e desenhar, aos 14, passei por várias fases, e uma delas foi a da Ásia Oriental. Enquanto alguns compravam discos do Abba, eu comprava swing music, música japonesa de koto e óperas chinesas, que eu ouvia alto, muitas e muitas vezes. Isso me levou à [ópera] Turandot, de Puccini (a gravação definitiva, com Birgit Nilsson, 1966), e ao mesmo tempo eu ia de ‘Mirage’, de Stan Kenton (de seu disco Innovations in Modern Music, 1950), direto para A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
No início dos anos 1980, o pós-punk e a new wave se tornaram meu universo musical, mas também o pop e o soul dos anos 1960 — e mais jazz (hardbop e cool jazz), além de cantoras como Sarah Vaughan e Nancy Wilson. Eu não sobreviveria na tão falada ilha deserta sem New Order/Joy Division, Siouxsie and The Banshees, Chris Connor, Dusty Springfield e tudo que soa como Wall of Sound, de Phil Spector, e Motown. Óperas, principalmente as de Puccini e Verdi, têm um lugar especial no meu coração, tal qual cantoras como Renata Tebaldi.
A música mais tocante já escrita, na minha opinião, é ‘Ich bin der Welt abhanden gekommen’, de Gustav Mahler, principalmente quando cantada pela inigualável Christa Ludwig. Qualquer um que não seja duramente afetado pela beleza e pela verdade dessa música provavelmente está morto.
O que torna a música tão incomparável é seu efeito imediato e livre de influências. Podemos ter nossas preferências e achar outras coisas absolutamente detestáveis, mas nunca conseguimos escapar dos efeitos inconscientes da música. Nesse sentido, para mim, essa é a mais emocionante das artes, talvez até a mais humana.
Não sei tocar nenhum instrumento, não sei ler partituras e, infelizmente, também não sei cantar, embora eu creia que a voz seja o instrumento mais belo. Mas isso não me impede de me ver como um indivíduo musical, porque não limito meu gosto e tenho a necessidade de adquirir conhecimento a respeito da música de que gosto — conhecimento que me permite compreendê-la melhor.

JR: Na primeira parte da entrevista, perguntei por que razão você começou o Brazilliance. Agora te pergunto: por que você o mantém? 
AD: Conhecedores do jazz estão familiarizados com o Great American Songbook, uma coleção de standards de jazz e música popular que se estendem aproximadamente de 1920 até 1960. Mas a ideia de cânone das músicas mais importantes e influentes, cujo legado resistiu ao teste do tempo, aplica-se igualmente ao Brasil, porque inúmeras músicas, principalmente dos anos 1930 até os anos 1960, tornaram-se standards por direito próprio. Elas foram gravadas muitas vezes, suas letras são conhecidas e elas ainda são amadas e tocadas. Gosto de pensar nelas como o Brazilian Songbook, embora ninguém o chame assim. E porque aparentemente ninguém tentou juntar tal coleção — que apresente as diversas gravações e tente informar algo sobre as composições —, fiz isso com o Brazilliance desde 2014.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Por fim, de que maneira você compila e organiza as informações do Brazilliance? (Percebi que boa parte das páginas da seção de referências, por exemplo, já nem é mais atualizada).
AD: Até o momento, o Brazilliance tem cerca de 170 páginas de músicas de 1937 até 1970; a cada dez, uma é uma versão brasileira de uma música internacional. ‘Manhã de Carnaval’ é a mais extensa, com 75 gravações. Geralmente apresento todas as versões que tenho ou consigo encontrar. Apenas em listas longas eu retiro uma ou outra, quando estas não acrescentam algo em relação às adicionadas. Ainda resisto à tentação de publicar músicas que, incompreensivelmente, foram gravadas apenas uma vez, então é necessário haver ao menos duas gravações para eu criar uma publicação. Idealmente, músicas do mesmo ano de origem não seguem uma à outra, e a ordem de publicação também deve alternar entre gêneros e velocidade, bem como em número de gravações.
De acordo com os anos de origem, o foco provavelmente se concentra por volta de 1960, mas esses anos foram obviamente muito criativos, com um número impressionante de grandes composições. Gosto particularmente das orquestrações e dos arranjos daquele tempo, e, estilisticamente, essa época também foi bastante diversa. Sou especialmente apegado ao [gênero musical] sambalanço, por exemplo. Apesar de sua popularidade, ele só corresponde a um período muito curto.
A pesquisa muitas vezes é difícil, porque as fontes não são tão extensas quanto as de gêneros dos Estados Unidos e da Europa. Os arquivos mais importantes são o Instituto Memória Musical Brasileira e o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Contudo, nenhuma fonte é livre de erros e, para conseguir fornecer uma informação confiável, preciso comparar muito conteúdo on-line com criticidade. Muitas vezes é como um quebra-cabeças em que você tem de organizar as peças enquanto as agrupa. Ainda assim, meu próprio conteúdo dificilmente é livre de erros.
Não cito as fontes porque isso aumentaria meu empenho enormemente. Mas verifico tudo — tanto quanto é possível — por precisão e, quando em dúvida, me abstenho de fornecer informações. Minha página de referências lista de forma incompleta os sites que lidam com a música sobre a qual escrevo, ainda que alguns deles tenham sido descontinuados.
Além das páginas de músicas, outros capítulos adicionaram facetas ao longo dos anos:
From the Vault, em que ofereço minhas compilações pessoais. Comecei em 2017, quando tinha pouco tempo para as páginas de músicas. Como essa série parece ter tido alguma popularidade, porém, decidi continuar.
Em 2020, comecei o Reutilisation, uma série sobre gravações nas quais arranjos e outras faixas foram reaproveitadas. Na maioria dos casos, a gravação original continha um vocalista, ao passo que a segunda era instrumental. Um olhar mais atento revela que, em cada caso, ambas as gravações foram lançadas pela mesma gravadora (ou por uma de suas subsidiárias), o que claramente indica que elas apenas queriam reduzir os custos de produção ou aproveitar-se de músicas populares uma segunda vez. Mas os resultados geralmente são muito válidos. Além disso, é a perfeita trivia de colecionador.
Em 2021, comecei o Pseudonyms, uma série sobre músicos que utilizaram pseudônimos para além de seus nomes reais. Como é uma série nova, ainda há apenas um artigo até o momento — sobre Ed Lincoln, que certamente teve mais [pseudônimos] que qualquer um, com ao menos 18 —, mas outros virão.
E quem sabe, numa dessas invento outra coisa. O Brazilliance se tornou meu bebê (enquanto escrevo isso, minha gata, Elza, subitamente olha fundo nos meus olhos, mesmo que ela parecesse estar dormindo) e ainda é divertido. Então, definitivamente pretendo continuar… Bem como meu segundo site, KEUP — My Favourite Things, que comecei em 2019. Quase se poderia pensar que o Brazilliance não é o suficiente para mim.

Brazilliance, por Andreas Dünnewald.

Osny Tavares: Cômico é?

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em seu décimo primeiro ano de circulação, o RelevO parece sentir a deriva do tempo. “Sentir a deriva”, note-se, é diferente de “sentir-se à deriva”. É mais uma sensação de meio de viagem, de mar aberto. Ou seja, uma pessoa de trinta e poucos anos de idade. É independente com algum grau de institucionalização. É alternativa com contatinhos no centro. É jovem com alguns fios brancos. 

Será destino de todo aspirante a escritor começar parnaso e terminar cínico? Em um discurso célebre, Leminski afirmou que o verdadeiro poeta era reconhecido na idade. Fazer poesia aos 20 anos era fácil, mas ele queria ver aos 30, 40… Poesia aos 50 anos? Humpf!

Uma porção cada vez maior da identidade do jornal vem sendo moldada pelas páginas de humor. Fixas, produzidas internamente ou por colaboradores regulares, são o que o velho editor da finada imprensa escrita chamava de “respiro”. O produto é ótimo. Criativo, bem desenhado, cheio de referências. Zombar do mundo da cultura e do meio literário (muitas aspas nesses termos todos) é, além de um talento, um privilégio. Mas, tal como as pessoas, os veículos também precisam estar atentos para não transformar o riso em disfarce. 

O RelevO anterior veio com uma sobrecapa cômica. Penso que o editor se permitiu a brincadeira por imaginar que, estando fechados os espaços culturais em que costumava ser distribuído, o jornal tem encontrado poucos leitores incidentais. Dessa forma, não precisava apresentar-se de imediato.

No entanto, a decisão automaticamente rebaixou a capa à página 3. Isso foi uma pena, pois trata-se de uma das ilustrações recentes mais bonitas. Claro, eu poderia simplesmente destacar essa lâmina, que não faz parte da ordem numérica das páginas, e escondê-la no miolo. Porém, me parece bom senso que uma edição é, essencialmente, uma sugestão de condução de leitura. Não havendo qualquer motivo para aquela seção não estar no miolo desde o espelho (essa também é de editor velho!), essa escolha editorial somente se justifica pelo desejo de que este conteúdo seja primordial ao leitor.

O espírito pode, inclusive, estar se espalhando entre os leitores. Em edição também recente, diverti-me largamente com uma resenha sobre um romance chamado Ulisses 2051, que se propunha atualizar Joyce. O autor do texto, que se apresentava como pai do romancista, satirizava as pretensões estéticas e a dependência financeira do resenhado.

Infelizmente, não pude descobrir se o livro, tampouco seu autor e/ou pai resenhista, existem de fato. Nada há em toda a página — entre texto e recursos visuais fixos ou específicos — que distinga a resenha das seções mensais de humor do Jornal. Há, sim, um rodapé informativo com informações técnicas que acompanham toda apresentação real de livros do jornal, mas não me dispus a pesquisar na internet se aqueles títulos estavam, de fato, disponíveis. Afinal, citando a redação, em resposta ao ombudsman na edição passada, “não entendo como fundamental as informações pessoais”. 

PS: Em última e remota hipótese, apenas meu jornal veio encadernado dessa maneira. Se verdadeira, para meu maior constrangimento, todos os problemas editoriais, estéticos e existenciais anteriormente apontados ficariam automaticamente invalidados pela extinção do condicionante. 

Isso, sim, seria bem engraçado.

Osny Tavares: Remetente

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em sua primeira década de existência, o RelevO teve a felicidade de alcançar pessoas em diversas partes do Brasil. E essas pessoas também alcançaram o jornal, contribuindo com textos enviados de vários estados. Essa interação nos ajuda a lembrar porque muitos jornais se chamavam Correio de Algum Lugar. O bom jornal é nada mais do que uma troca de cartas coletiva.

Porém, a maioria dos missivistas que vem a nós, leitores do RelevO, é anônima, pois um mero nome e sobrenome, de fato, não dizem muito. É perfeitamente cabível que novas vozes se lançando prefiram ser discretas. Há de se concordar que um rodapé informativo sobre o autor poderia, ainda que sutilmente, influenciar a leitura ou pós-leitura do texto — principalmente no que tange a preconceitos. Puristas não deixariam de argumentar, citando o teórico no início ou no fim, que sobre um autor nada pode ser dito.

No entanto, parece uma cordialidade ainda não caduca que aquele que começa a falar se apresente. Penso que vários dos que publicam têm algum contato, ainda que inicial, com a formação acadêmica, e discorrer objetivamente sobre si em um parágrafo não será difícil.

É possível que isso já tenha sido tentado e tenha fracassado, seja porque o publicado tenha preferido declinar, sob o risco de parecer vaidoso, seja porque começou a se tornar frequente autodescrições idiotas, tais como “comedor de queijo da lua”. Nesses casos e em outros semelhantes, tal tarefa cairia para o editor, para quem a coleta e a redação de informação é sempre uma sobrecarga. 

Por fim, me parece que não há sentido para os tímidos temerem uma superexposição. Não seria o caso sequer na mais popular rede social, exceto se fizessem parte de algum tipo de absurdo. Aqui, nem assim. 

 

Da redação: 

Seguimos, aqui, as premissas da nossa aba Publique, desenvolvida no site do Jornal, em que aplicamos aos autores e às autoras publicados o critério do texto ser mais importante do que o emissor: “Não há necessidade de enviar minibiografias (ou biografias inteiras). Queremos saber o mínimo possível sobre o autor e/ou suas titulações”. Sabemos da importância do leitorado no processo de diálogo com a nossa publicação, mas não entendemos como fundamental as informações pessoais.

Osny Tavares: Um olho na estrutura, outro na dialética

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jornal pressupõe jornalismo? Inicio essa coluna com um beliscão num tema recorrente entre a comunidade do RelevO. Cito resposta do editor a uma correspondência publicada na edição anterior: “Geralmente, nós publicamos textos com caráter menos jornalístico. O foco é a seleção e publicação de novos autores e autoras contemporâneas”. 

Se a costura do jornal são os contos e poesias, os textos de análise são os patches que lhe dão o colorido. Retomando a já saudosa tradição dos suplementos de crítica dos grandes jornais, temos encontrado aqui interessantes comentadores da cultura. Março nos trouxe uma crônica sobre o bicheiro Castor de Andrade (Enclave) e uma resenha sobre coletâneas de Nelson Rodrigues (Laércio Becker) – decerto, duas oposições que tensionam o carioquismo. De forma similar, Elton Mesquita fala sobre as trocas simbólicas entre Brasil e Portugal, ou a falta delas. 

Assim, o periódico se revela sartreanamente vesgo: um olho aponta para a estrutura; o outro, para a dialética. Dessa junção, constrói sua atualidade. Embora não seja propósito dessa publicação, a formação de repertório é condição fundamental para a comunicação cultural. Seja na crítica, seja na produção ficcional, a referência é a matéria-prima do sentido textual. 

A escrita pressupõe leitura, que pressupõe tempo passado. A pauta do RelevO faz visitas sociais à estante dos lançamentos, mas se conforta na sessão dos clássicos. Experimenta o novo tangenciado no perene. 

Como registro de seu tempo, esse jornal tem o desafio de ser contemporâneo sem sucumbir à pauta novidadeira. Para isso, tem optado por acompanhar menos a agenda de lançamentos das editoras comerciais. Essa escolha o distingue das resenhas que predominam na internet, onde as breaking news da literatura ressoam com mais intensidade. 

Emitir juízos antecipados é caminho fácil para o constrangimento. Todo jornalista cultural já deve ter repassado mentalmente suas apostas e se perguntado onde está tudo aquilo agora. Contudo, a segurança do cânone não pode enrijecer precocemente a musculatura analítica dessa plataforma.

Osny Tavares: Quem lê, quem escreve, quem lê

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O publisher do RelevO concede ao ombudsman um espaço nobre, neste alto de página 5. Centrão entre percepções de quem faz e quem lê, ele pode ser um criador de caso ou um pacificador — se competente, as duas coisas. 

Na edição de fevereiro, a leitora Brunna Gabardo escreve longamente sobre sua experiência de leitora do jornal, distribuindo seu carinho entre o conteúdo e a plataforma impressa. Ao revelar seu próprio interesse e aspirações literárias, induziu-me a uma reflexão que, pouco depois, na coluna Editorial da mesma edição, cresceu para tema de coluna: há categorias fixas para definir o autor e o leitor deste periódico?

Porque naquele espaço, o fundador revelou o episódio de um possível assinante que exigiu ser colunista como contrapartida. A partir dele, é possível especular quais as diferentes percepções de valor que os leitores possam vir a ter sobre o produto. Também se eles creem representarem um papel específico em seu ciclo de vida. E, primordialmente, se veem as instâncias de leitor e autor no RelevO como verticais e fixas. 

Este jornal tem um pé em cada era: analógico por formação e essência, digital por espírito dialético. Da primeira traz o custo marginal. Tudo nele custa algo; e quanto mais há, mais custa. Do segundo traz a possibilidade de criar algo que os novos chamam de comunidade de fala. A literatura produzida nela sempre será a mais próxima. E, porque não, por consequência, a mais valiosa?

Embora realizar essa ideia seja uma questão de curadoria, portanto editorial, a contribuição primeira dos textos é função voluntária de um pressuposto leitor. De forma que esse é o único ombudsman que pode, legitimante, voltar-se contra os leitores que representa. E, de espírito ainda mais livre, os leitores podem rebelar-se entre si. E, ultimamente, consigo mesmos. 

Na mesma edição, o poema de Larissa Adur é um exemplo de localização (não por acaso, seu título é um endereço). O humor da página central pode ser um último estímulo para ainda acompanhar notícias. E aponto especialmente para a novidade jornalística do ensaio “Ex Nauseam”, de Algum Lucas — uma confissão de agora. 

Há no jornal um esforço pela proximidade. Cabe ao veículo torná-la mais intensa, de forma que até os ligeiros possam vê-la.