1962: um bom ano para gênios

Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?! Repito: não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.

Nelson Rodrigues

Pois bem.

Se na Enclave #112 tentamos analisar a interseção entre a Lolita (1955) de Vladimir Nabokov (1899-1977) e sua correspondente de Stanley Kubrick (1928-1999) – lançada em 1962 –, hoje derretemos o tema de forma breve e superficial, mas satisfatória para nos acalmarmos e finalmente mudarmos de assunto.

Voltemos àquele ano, o eixo comum entre nossos quatro personagens desta edição. Crise dos mísseis, Copa do Mundo, Don Draper bebendo e traindo.

Conforme comentamos, já lidamos com dois gênios em estágios diferentes da vida. Em 1962, ano de lançamento de Lolita (o filme), Nabokov vivia seu ápice – escritores não são jogadores de futebol, portanto 63 anos parece a idade certa para começar a colher frutos. Recém-mudado para a Suíça (onde viveria até seus últimos dias), ele lançaria nada menos que Fogo Pálido, outra obra-prima, para suceder Lolita.

Por sua vez, Stanley Kubrick, um nome promissor, sem dúvidas ainda não era Stanley Kubrick. Essa virada de chave aceleraria com seu trabalho seguinte, Dr. Strangelove (1964), e se consolidaria com o pináculo 2001: Uma Odisseia no Espaço, talvez o filme mais impressionante da história. No lançamento de Lolita, o jovem Kubrick estava prestes a completar 34 anos.

  • O que queremos dizer com impressionante? A definição mais pura e simples possível, o fator “wow!”, a indignação de “meu Deus, como eles fizeram isso?! E como fizeram isso na década de 1960?”.
  • Outro fator a motivar este texto foi a leitura do ótimo livro de Michael Benson. Recomendamos com ênfase a qualquer interessado por 2001.

Porém, entre os vários gênios daquela década, dois eram, além de indiscutivelmente gênios, indiscutivelmente brasileiros. Estamos falando, é claro, de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), e de Antonio Carlos Brasileiro (!) de Almeida Jobim, o Tom (1927-1994). Para eles, 1962 foi um ano de decolagens.

Constelação brasileira, aparentemente em 1966.

Como a Coreia do Sul hoje, o Brasil vivia seu ápice de popularidade. Era o sujeito descolado da escola, aquele cuja confiança os outros tentam emular sem sucesso. Bossa nova, Copa do Mundo, Juscelino, Maria Esther Bueno, Garrincha, Clarice, Guimarães Rosa, João Gilberto etc. – até Palma de Ouro. Seus movimentos vingavam em diversas frentes e, àquela altura, parecia que a coisa ia.

Não se trata de saudosismo (nunca), e sim de constatar o óbvio. A confiança é subjetiva e imensurável, e é provável que toda a minha geração morra sem conhecer um país confiante. (O que será que aconteceu logo depois, naquela mesma década, para frear tudo isso? 😒)

Pelé, nosso maior símbolo mundial, havia conduzido a seleção a seu primeiro título mundial em 1958, antes mesmo de completar 18 anos.

Na Copa seguinte, aos 22 – idade ótima para um atleta, péssima para um escritor – embora estivesse voando, machucou-se no segundo jogo, um empate em 0x0 contra a Tchecoslováquia. Foi substituído por Amarildo e viu Garrincha brilhar na campanha do bicampeonato, encerrada contra a mesma Tchecoslováquia (3×1).

No mesmo ano, ele ainda seria campeão paulista, brasileiro (então Taça Brasil), da Libertadores e Intercontinental (mundial). Neste último, destruiu com três gols o Benfica de Eusébio lá em Portugal (2×5).

Vale lembrar que Pelé só disputou três Libertadores: ganhou duas e parou em uma semifinal. Àquela época, era mais vantajoso fazer excursões mundiais – o Santos era praticamente um circo itinerante – do que se enlamear na competição continental, ainda sem transmissão televisiva.

1962 também foi um ano definidor para Tom Jobim por ao menos dois motivos. Primeiro, a histórica sequência de shows com João Gilberto, Vinicius de Moraes e Os Cariocas no restaurante Au Bon Gourmet, em que lançaram, entre outras joias, ‘Garota de Ipanema’. Depois, o absolutamente caótico show em Nova York que apresentou diversos músicos brasileiros a jazzistas de primeira linha dos EUA.

Separando apenas esses dois eventos, já encadeamos o sucesso posterior de Jobim. Em 1967, a consagração mundial viria após a parceria com Frank Sinatra. Ao longo de sua carreira, Tom viveria entre Rio de Janeiro e Nova York gravando obras-primas muito além de bossa nova, como Stone Flower (1970) e Matita Perê (1973).

  • É natural que nenhum brasileiro sinta vontade de escutar ‘Garota de Ipanema’, afinal qualquer superexposição dessacraliza. Isso nos afasta de uma beleza ímpar, mas, principalmente, nos faz esquecer o feito que constitui tamanho sucesso mundial.
  • The Girl From Ipanema is a far weirder song than you thought”.

Então voltamos a 1962, ano em que filtramos gênios. À Enclave, hoje interessam esses quatro – poderiam ser tantos outros e tantas outras, poderiam ser outras épocas. Tudo é recorte, e pensar num mundo com Nabokov, Jobim, Kubrick e Pelé em ação traz o tipo de melancolia alegre que nos satisfaz para iniciar a semana.

Lolitas de Nabokubrick

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

Baú: Stanley Kubrick

Extraído da edição 70 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O que há de melhor em um filme é quando o efeito é criado pelas imagens e pela música. A linguagem, quando a utilizamos, deve ser, claro, a mais inteligente e imaginativa possível, mas eu ficaria bem interessado em fazer um filme sem nenhuma palavra, se pudesse achar um meio de fazê-lo. Poderíamos imaginar um filme no qual as imagens e a música seriam utilizadas de maneira poética ou musical, no qual se faria uma espécie de enunciados visuais implícitos em vez de declarações verbais explícitas: digo que poderíamos imaginar, pois não posso imaginá-lo a ponto de escrever realmente uma história assim, mas acho que, se isso fosse feito, o cinema seria utilizado ao máximo. Ele seria então totalmente diferente de qualquer outra forma de arte, do teatro, do romance ou até mesmo da poesia.

Stanley Kubrick (Michael Ciment, Conversas com Kubrick, Cosac Naify, 2010, p. 123).

Lucien Rudaux

Extraído da edição 47 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Na minha infância, ainda em Porto Alegre, lembro de um CD-ROM próprio para Windows 95 dedicado ao nosso Sistema Solar. As poucas memórias sobreviventes são borradas, mas é certo que havia os planetas e que era possível clicar neles. A partir disso liam-se informações sobre cada um, com imagens – estáticas, nada de animação – acompanhadas por uma trilha sonora discreta. Não o encontrei na internet.

Nossa Lua, apesar de não ser um planeta, era a mais impactante, pois me ocorre que sua coloração mais fria convergia com a sonoridade cuja clara ambientação de solidão no desconhecido atingia seu objetivo. Eu sentia um medo saudável daquelas imagens — e certamente repeti o fascínio posteriormente com registros melhores, animações mais modernas e sonoridades mais bem gravadas.

Mas antes de qualquer software, e antes de Clarke, de Kubrick e, principalmente, de Clarke e Kubrick, havia Lucien Rudaux, pioneiro de arte espacial. Rudaux (1874–1947), francês, era ele próprio astrônomo, autor e ilustrador. No final do século 19, isto é, com apenas 20 anos, fundou um observatório em Donville-les-Bains, na Normandia. Rudaux serviu ao exército francês na Primeira Guerra, quando, já respeitado pelos serviços prestado ao ensino, havia sido nomeado Oficial de Instrução Pública, uma ordem honorífica.

Filho do pintor Edmond Rudaux, Lucien sem dúvidas herdou a aptidão para representações visuais, a maioria delas produzida nas décadas de 1920 e 30, após a atuação militar. Com elas, fugindo de planetas montanhosos, oferecia imagens mais sóbrias cujo realismo superou até seus sucessores. Seus traços acumulam ainda mais valor conforme caçamos, ou tentamos emular, retrofuturismo.

Pioneiro, Rudaux virou prêmio. E se já temos muitos outros registros, imagens melhores e fotografias mais precisas, suas ilustrações sobrevivem pelo único caminho capaz de garantir sobrevivência de qualquer arte: estética, o encanto cuja coceira limita as palavras e permite, vez ou outra, que o medo seja saudável; e a solidão, confortável.