Conan, o último de sua era

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Conan O’Brien, o ruivo grandalhão mais longevo entre os apresentadores de talk show nos Estados Unidos, pendurou as chuteiras – ao menos no formato que o consagrou.

Americano de ascendência irlandesa, Conan comandava algum talk show desde Late Night with Conan O’Brien (NBC), em 1993, quando ele ainda era um jovem roteirista de Os Simpsons. O apresentador chegou a trocá-lo pelo The Tonight Show, ainda na NBC, por um breve período (que acarretou uma polêmica longa e desinteressante), então assumiu Conan (TBS) em 2010. O último episódio de Conan foi ao ar mês passado e incluiu uma entrevista conduzida por Homer Simpson.

O apelo de Conan O’Brien é simples: ele é um sujeito tremendamente inteligente tentando ser o mais bobo possível em suas interações. Com o aspecto de um cartum gigante, Conan costuma ser o alvo da própria piada, e em suas interações com outros (famosos ou não) fica evidente sua capacidade de fazer qualquer um rir de forma sincera, geralmente armado apenas da própria espontaneidade.

O que parece ser justamente o ponto cego de seu gênero de atuação. Nos últimos anos, esses talk shows americanos – uma instituição sempre copiada no mundo inteiro – mudaram. A internet expandiu sua audiência tremendamente e possibilitou esquetes muito bem produzidas, já pensadas para a propagação digital.

Por outro lado, talvez pela gradual desimportância do tempo televisivo; talvez pela hiperatividade do espectador; talvez pela urgência em capturar o maior engajamento possível com todas as faixas etárias possíveis; talvez pela tentativa generalizada de transformar a existência em algo “tipo a Marvel”; talvez por puro desespero; talvez por mero desgosto do editor… há menos conversas (isto é, interações entre adultos atentos) genuínas e engraçadas no formato.

Por exemplo, de um lado, Jimmy Fallon e James Corden, com seus joguinhos e risadas ininterruptas, testam a paciência de qualquer espectador com uma abertura mínima para o cinismo [a linha do escapismo], ao passo que Stephen Colbert e Seth Meyers pregam para convertidos, num estilo de comédia cada vez mais refém de conteúdo (e alinhamento) político [a linha do proselitismo]. Craig Ferguson, o bom caótico, já abandonou o talk show há anos.

Resta Jimmy Kimmel, que vez ou outra proporciona um quadro marcante, mas simplesmente não dispõe da mesma aptidão para o humor natural. Nenhum deles tem a fluidez do irlandês Graham Norton, por exemplo. O formato imortalizado por Johnny Carson e conhecido por certa maturaridade, enfim, mantém outras preocupações hoje (o que, por si só, não é nenhum problema). A respeito do talk show como gênero contemporâneo, há considerações interessantes nessa conversa com Conan O’Brien em Oxford.

Ademais, não bastasse a concorrência com absolutamente tudo (Netflix, Playstation, TikTok etc.), outra competição emergiu. Porque conversas mais detalhadas, histórias de bastidores e anedotas em geral parecem cada vez mais direcionadas aos podcasts – cuja produção, por sinal, é muito mais simples e barata. Não à toa, a impressão recente é de que qualquer pessoa pública mantém um (e ganha um bom cascalho extra no fim do mês, afinal basta anunciar e recolher o dinheiro do anunciante, sem intermédios).

O próprio Conan criou um podcast (Conan O’Brien Needs a Friend) e parece ter se dado conta da leveza do formato, que não chega perto de exigir todo o preparo necessário em comparação com um episódio de TV, o qual, muitas vezes, pode incluir um convidado indesejado, empurrado pela emissora, ou conversas interessantes, mas limitadas pelo fator tempo.

Fora do talk show, mas agora contratado pela HBO, Conan O’Brien não se aposentou do entretenimento. A mudança provavelmente será uma evolução, capaz de aproveitar mais sua habilidade para interações aleatórias e explosões de nonsense. Basta vê-lo perambulando pelo mundo: seus momentos em viagens se tornaram o Conan Without Borders e, mais do que isso, permitiram uma rara apreciação de um sujeito que faz uso da própria sagacidade para produzir uma alegria tão boba que só pode exigir muito talento.

Mad Men, dança da solidão

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Queríamos ter escrito este texto em maio, mas outros acabaram entrando na frente. Pois foi no quinto mês de 2015 que o universo pôde assistir ao último episódio de Mad Men (AMC, 2007, sete temporadas). Portanto, já faz seis anos que a série criada por Matthew Weiner encontrou seu desfecho. Como passa o tempo…

Mad Men acompanha Don Draper (Jon Hamm), diretor criativo em uma agência de publicidade, do início até o fim da década de 1960. A partir do protagonista garanhão, testemunhamos o desenvolvimento de seus colegas, familiares e – tão importante quanto – fantasmas do passado.

A série remete imediatamente a belas roupas, belos cenários, belos coquetéis e muitos cigarros, e trabalha diretamente com a ideia de identidade. Mas o ponto nevrálgico dessa obra-prima audiovisual, cuja elegância narrativa consegue superar a dos trajes, cenários e coquetéis, é mesmo a solidão.

Mad Men vive sempre sob um cinismo saudável. Isto é, não aquele absoluto, que não enxerga valor em nada (“Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada”, Oscar Wilde, 1892). A partir disso, a série nunca deixa de se configurar segundo a condição de que todo homem é uma ilha (logo, discordando de John Donne).

Não há intimidade que não possa ser traída; não há comunicação imune ao não dito; não há confiança inquebrável. No cerne de todas as suas relações, o ser humano permanece, em última instância, sozinho. Se a filosofia da série discorda de Donne, concorda com Joseph Conrad (1899): “Vivemos como sonhamos – sozinhos”.

Essa constatação não repele senso de humor, muito ao contrário. Mad Men é engraçada, exponencialmente engraçada conforme conhecemos seus personagens (e, consequentemente, suas fraquezas). Ao unir esses dois elementos e expressá-los sempre com sutileza – e, agora sim, em belos cenários, belos trajes e belos coquetéis –, a série se consolida como um produto inesquecível.

Da literatura americana do século 20, Matthew Weiner absorveu quatro influências bastante explícitas: A nascente (Ayn Rand, 1943); O homem no terno de flanela cinza (Sloan Wilson, 1955); Foi apenas um sonho (tradução adotada para Revolutionary road, Richard Yates, 1961) e os contos de John Cheever (compilados em The stories of John Cheever, 1978; no Brasil, em 28 contos de John Cheever).

Um dia, escreveremos sobre a influência de cada uma delas. Por ora, restam a menção e as recomendações. No momento de publicação deste texto, Mad Men está disponível no Brasil pelo Prime Video e pelo Now, após deixar o catálogo da Netflix.

Passados 14 anos da estreia e seis do encerramento, não há qualquer sinal de envelhecimento. Tampouco haverá, pois Mad Men examina com enorme sensibilidade as fraquezas da natureza humana. E esta, como bem sabemos, nunca muda – “os seres humanos continuam os mesmos, com mais ou menos dentes podres” (2012).

Cowboy Bebop

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Deve fazer dez, onze ou nove anos que me mandaram assistir a Cowboy Bebop (1998-1999) pela primeira vez. Àquela altura, portanto, já não seria um exagero definir a animação de Shinichirō Watanabe como um clássico. Entretanto, só fui me dedicar à série em 2020.

Para quem nunca ouviu falar ao longo desses 23 anos, Cowboy Bebop é um anime de ficção científica – com diversos elementos western e outros tantos noir – que acompanha uma tripulação de caçadores de recompensa viajando pelo espaço (uma premissa que Firefly repetiria pouco tempo depois). São apenas 26 episódios, cada qual com 24 minutos, incluindo introdução e encerramento (ambos fantásticos).

Cowboy Bebop funciona porque, emprestando palavras de Raymond Chandler, permite “saborear estilo, caracterização, reviravoltas de enredo”. Não há nada mais cativante que personagens bem construídos, e essa regra atinge não só os integrantes de tripulação, mas também vilões e demais elementos passageiros.

Melancólica, porém engraçada, essa série japonesa consegue tratar de miséria existencial, responsabilidade humana e tédio em um universo imaginativo e visualmente estimulante, com acenos a culturas diversas (inclusive a brasileira, e de forma explícita). É difícil não se apegar.

Por sua vez, a música não é um detalhe, mas um pilar criativo (bebop, oras). A trilha sonora da obra, um primor, foi composta por Yoko Kanno e executada pelos Seatbelts.

Tudo em Cowboy Bebop exala maturidade, capricho, poesia: isso de maneira alguma impede sua leveza. Impede, no entanto, que percebamos os 23 anos de distância entre seu lançamento e 2021. Não envelhece.

Por aqui, houve apenas um ano de contato. Podiam ter sido dez, onze ou nove, se eu tivesse dado atenção mais cedo. Para não repetir minha prevaricação (!), registro esse alerta. Cowboy Bebop cria um canto de carinho na cabeça e ali se assenta. Bang!

Jessica Walter

Extraído da edição 84 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A atriz Jessica Walter morreu em 25 de março, isto é, há dez dias. Ela teve uma carreira longeva, com destaque para Play Misty for Me (Perversa Paixão, 1971), em que sua personagem, Evelyn, persegue Clint Eastwood, por sinal em sua estreia como diretor. Também ganhou um Emmy em 1975, com a série (e a protagonista) Amy Prentiss (1974).

Como a maioria da minha geração, no entanto, conheci Jessica Walter graças a Arrested Development (2003), brilhante série de comédia que acompanha os Bluth, uma família decadente e picareta em busca de algum alinhamento interno.

Arrested Development acabou precocemente (2006) e retornou desnecessariamente (2013, depois 2018). Nesse meio tempo, influenciou qualquer produção audiovisual que visasse a fazer alguém rir. Criada por Mitchell Hurwitz e narrada por Ron Howard (aquele), a série atingiu uma execução absoluta em sua proposta errática.

Hurwitz criou personagens tão problemáticos como marcantes, com frases igualmente marcantes e dramas visíveis, expostos em comentários banhados no mais absoluto cinismo. Isso tudo rodando por meio de um elenco muito acima da média, capaz de conferir o dinamismo necessário para o roteiro funcionar.

Afinal, em sua produção original (2003-06), o que havia de incomparável em Arrested Development era o ritmo. Este é justamente o que afasta quem (ainda) não a compreende, mas encanta quem compra a ideia. Uma vez que o espectador entra no ritmo dessa dança, ele se vê diante de uma miríade de caminhos para rir (inclusive com piadas escondidas).

E Lucille Bluth, interpretada por Jessica Walter, é consistentemente a personagem mais engraçada da série mais engraçada de sua época. Lucille é a matriarca alcoólatra, cruel, elitista, controladora, ciumenta, xenófoba e racista da família.

O que poderia gerar uma caricatura unidimensional ganha aquele contorno de carisma que apenas a execução primorosa proporciona. Com suas caras e bocas, sua entonação, seu alcance e seu timing, Jessica Walter elevou a personagem a um nível em que é simplesmente impossível detestar Lucille Bluth, não importa quão detestável ela seja.

Não à toa, em Archer (2009–), a personagem Malory Archer, mãe do protagonista – e dublada por Walter –, é praticamente uma reprodução de Lucille Bluth (e, outra vez, rouba qualquer cena). Porque todo mundo conhece alguma Lucille, mas ninguém conhece essa Lucille. Tal amálgama de perversão e sagacidade só é possível com Jessica Walter.

Nos acostumamos com a morte das figuras que admiramos; a verdade é que, a essa altura (da vida pessoal e da civilização), ela impacta cada vez menos. Mas algumas, rompendo com a lógica do afeto, marcam mais que o esperado. A de Jessica Walter sensibiliza por alguns motivos imediatos:

  1. Sentimos uma espécie de carinho latente e inesgotável por quem é capaz de nos fazer rir.
  2. Ela era um componente extraordinário de (ao menos) uma obra extraordinária.
  3. A atriz visivelmente não compartilhava dos traços de personalidade de Lucille/Malory, o que só reforça sua qualidade.
Descanse em paz, Jessica. I’ll be in the hospital bar.

Tales from the Loop: alívio espaço-temporal

Extraído da edição 83 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Nosso hipertexto de hoje é um tanto azedo e resmungão – ao menos em sua primeira metade –, mas não deve ser levado tão a sério, isto é, ainda menos que o usual.

1.

A Enclave é uma grande fã de ficção científica, por isso mesmo se vê um pouco cansada de ficção científica. Com a herança maldita da (promissora, porém intragável) Black Mirror e seus episódios projetados como grafites do Banksy, parece que tudo ficou “distópico”, afinal “Facebook” ou tanto faz.

Seguindo a mesma linha, alguns devem ter assistido a Electric Dreams, espécie de Black Mirror genérica e supostamente adaptada das obras de Philip K. Dick – um escritor cheio de defeitos, mas jamais acusado de falta de diversão, ao contrário de Electric Dreams (também promissora, bem mais intragável).

Assistimos a quatro dos dez episódios produzidos pelo Channel 4. Ou cinco, ou seis, pois é sempre difícil pormenorizar o esquecível. Certamente não conferiremos os outros seis (ou cinco, ou quatro), porque há pouquíssimo a se ganhar ali.

Nos últimos anos, também houve o lançamento de Altered Carbon. Chuva! Néon! Detetives! O que poderia dar errado? Também não conseguimos ir além de dois episódios, dada a fraqueza dos personagens, da trama, dos atores e da crítica social explícita demais para gerar qualquer reação. Mas yeah, distopia!

(Enquanto obra de ficção científica, Altered Carbon certamente é inferior ao clipe de Alok & Luan Santana; a esse clipe do maluco de ‘Old Town Road’ e à propaganda da Heineken com o Ronaldinho Gaúcho.)

Perdidos entre efeitos especiais e metáforas baratas, roteiristas, diretores e produtores esquecem que, por exemplo, Firefly (2002) é uma das melhores séries de ficção científica de todos os tempos mesmo parecendo uma novela do SBT.

2.

No entanto, um sopro de ar fresco vem arejando esse segmento tão querido: trata-se da série Tales from the Loop, lançada ano passado pela Amazon Prime. Ficamos curiosos ao ler que ela seria um anti-Black Mirror.

Para aproveitar a contextualização do texto de Beatriz Amendola,
“a série criada por Nathaniel Halpern (‘Legion’, ‘The Killing’) tem um passo mais contemplativo, com viagens no tempo e idas a outros mundos servindo para explorar temas tão reais quanto universais, como luto, família e solidão. Seu olhar para a existência humana é mais delicado e, também, mais esperançoso. É quase um anti-‘Black Mirror’.”

Tales from the Loop parte de um universo concebido pelo sueco Simon Stålenhag, cujas telas – como a que abre este texto – circulam pela internet há algum tempo. Você pode (e deveria!) vê-las aqui.

Stålenhag visualizou e conseguiu expressar um retrofuturismo analógico e elegante (portanto, o oposto de Stranger Things… brincadeira, essa a gente nem viu). O loop em questão corresponde a um acelerador de partículas em uma cidade (bastante rural) da Suécia.

A série parte desse cenário, sem se preocupar com grandes explicações, mas sem abandonar a coesão narrativa. Visualmente, é criativa e estimulante, e a trilha sonora – de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan – é encantadora por si só. Inclusive, você pode (e deveria!) ouvi-la mesmo sem assistir à produção.

Embora cada um dos apenas oito episódios se concentre em um personagem ou núcleo distinto, esses indivíduos retornam, trafegando sutilmente ao longo da temporada. Aos poucos, montamos um quebra-cabeça suficiente para apreciar as peças soltas e encaixadas dessa obra convicta em sua lentidão, mas jamais desinteressante.

Até porque sutileza talvez seja o ponto principal: embora contemple viagens no tempo e autômatos, a série tem em sua doce melancolia a catarse mais valiosa.

Tales from the Loop, enfim, consegue um feito raro, não só para a ficção científica: produzir beleza. O que sempre foi e sempre será mais difícil do que projetar qualquer simbolismo manjado, efeitos especiais brilhantes ou o cinismo absoluto. A Enclave recomenda – e ressalta que azedos e resmungões fornecem bons filtros.

Como (mas não necessariamente por que) Community é brilhante

Extraído da edição 56 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Community

Dez anos atrás – um pouco antes, um pouco depois – a emissora americana NBC encaixava uma sequência mágica de séries de comédia. Nas noites de quinta-feira, o canal de TV aberta transmitia The Office (2005-2013), 30 Rock (2006-2013), Parks and Recreation (2009-2015) e Community (2009-2015), não necessariamente nessa ordem.

Até o momento, todas envelheceram muito bem. Claro que não faz muito tempo que acabaram, portanto não dispomos do distanciamento necessário para cravar a relevância histórica de cada uma, mas é notável como a audiência da internet não só não permitiu que arrefecessem como parece impulsioná-las gradativamente.

Community retornou à Netflix brasileira há pouco tempo, o que tem renovado seu público. A série também está disponível no Prime Video. Já faz mais de dez anos que o primeiro episódio foi ao ar, e esse envelhecimento reforça a impressão de que Community estava à frente de seu tempo.

As histórias de bastidores da produção são bastante conhecidas. A maioria envolve as peripécias do criador, o idiota-prodígio Dan Harmon, e o temperamento complicado de Chevy Chase, de longe o nome mais famoso da atração, ao menos quando ela começou.

Grosso modo, Community não conseguia uma grande audiência. Harmon foi demitido da própria criação. Uma temporada se passou sem ele – abaixo das outras. Surpreendentemente, Harmon foi readmitido para outra. Durante e depois dela, alguns atores deixaram a série, a qual foi cancelada, então magicamente reativada pelo Yahoo, onde permaneceu por uma temporada final. A audiência se manteve, se não baixa, ao menos pouco impressionante. Mas Community terminou com dignidade.

E, de fato, não abordaremos tanto por que razão Community é brilhante, embora possamos fazê-lo em outra oportunidade. A série é engraçada (oras); tem personagens carismáticos, com dilemas verossímeis; carrega a metalinguagem como recurso, não muleta; fornece pastiches e paródias caprichados; abraça o multiculturalismo dos personagens de forma muito genuína.

Enfim, como toda ou, pelo menos, a maioria das obras extraordinárias – e Community é uma obra extraordinária –, o êxito artístico da criação de Dan Harmon exigiu a colaboração de um núcleo de pessoas talentosas. Afinal, como já sintetizou José Mourinho, “sem ovos, não se fazem omeletes – e depende da qualidade dos ovos”. Isso responde como Community se tornou brilhante: com muitos ovos de qualidade.

Depois de Community, Dan Harmon criou Rick and Morty (2013-) com Justin Roiland. A animação estourou e dispõe da notável vantagem mercadológica de vender bonecos e afins. Além disso, ser uma animação (que depende mais do próprio Roiland, quem grava as vozes dos protagonistas) confere uma flexibilidade maior para contornar o comportamento errático de Harmon.

Os irmãos Anthony e Joseph Russo, produtores executivos da série e diretores de 48 de seus 110 episódios, acabaram contratados pela Marvel para dirigir Tanto Faz 5 e Herói Genérico 7, além dos dois últimos filmes dos Vingadores. Cada um deles rendeu mais de US$ 2 bilhões aos androides da Disney, e o último detém a maior bilheteria da história do cinema.

A Enclave não assistiu, portanto não avalia; fato é que ninguém é escolhido para tocar um projeto tão grande sem apresentar um leque amplo de habilidades – mesmo que depois elas sejam pasteurizadas sem dó.

Por sua vez, Ludwig Göransson, responsável pelas músicas autorais que ouvimos ao longo de Community, compôs as trilhas sonoras de Creed (2015), The Mandalorian (2019-) e Tenet, o próximo filme de Christopher Nolan. Além disso, colabora frequentemente com o rapper Childish Gambino, assinando composições e produções em todos os seus álbuns.

Childish Gambino, para quem desconhece a ligação, é Donald Glover, e Donald Glover – ator, músico, roteirista (de 30 Rock, inclusive) e criador de Atlanta (2016-) –, hoje mais consagrado do que nunca, é um dos protagonistas de Community.

Ainda no elenco, Jim Rash ganhou um Oscar pelo roteiro adaptado de Os Descendentes (2011). Alison Brie, que já dava as caras em Mad Men (2007-2015), participou de BoJack Horseman (2014-2020) e estrelou GLOW (2017-2019). John Oliver estourou na HBO com seu Last Week Tonight (2014-). Concluímos que eram ovos muito competentes em diferentes esferas: está respondido o como.

Anteontem (18), durante a quarentena, o elenco se reuniu (com Dan Harmon) para ler o roteiro de um episódio icônico da quinta temporada – um bottle episode, isto é, aquele mais econômico possível, que geralmente se passa em um só cenário. Eles também responderam perguntas de fãs.

Há uma leveza na dinâmica dos envolvidos – leveza repetida em toda interação pública de elenco e produção, que costumam se reunir em diferentes projetos atuais. Essa naturalidade, a famosa química, é mais abstrata, mas certamente explica, ora como causa, ora como consequência, como (e por que) uma obra consegue atingir todo o seu potencial. Pode ser verificada na constância com que um faz o outro gargalhar, costurando a atmosfera típica de piada interna.

Community é uma série sobre amizade e (não) pertencimento. Joel McHale, protagonista (e eventualmente produtor informal), compreende exatamente a que se refere a magia de seu conteúdo: “Dan (Harmon) é o mestre das piadas dirigidas aos personagens, e há uma diferença muito grande entre piadas e piadas dirigidas aos personagens, que partem do que se passa com o personagem – em oposição a ‘aqui vai algo engraçado para falar’ (…). Por isso eu ficava furioso quando algum crítico dizia ‘é só humor referencial’.”

Com os instrumentos certos, Dan Harmon conseguiu converter sua visão em uma comédia demasiadamente humana, traduzindo a insegurança, o comprometimento e o humor derivados da construção de intimidade. Community emula o conforto de ser alvo das piadas de um amigo muito próximo.

Mission Hill

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Mission Hill
Mission Hill: tão legal que não foi pra frente. Ou legal porque não foi pra frente?

Mission Hill foi uma animação produzida pela Warner Bros entre 1999 e 2000 por Bill Oakley e Josh Weinstein (não aquele Weinstein…), ambos promissores roteiristas de Os Simpsons à época. A série retratava o cotidiano de um grupo de amigos num bairro de uma metrópole norte-americana indefinida – uma mistura de Nova York, Boston, Portland e San Francisco. Lá, rejeitados sociais, figuras caricatas e esquisitos em geral vivem em relativa harmonia.

Os protagonistas são Andy, um jovem cartunista frustrado e despreocupado que passa seus dias bebendo, trabalhando num emprego sem perspectiva numa loja de colchões e recebendo cartas de rejeição de revistas por seus quadrinhos. Kevin é seu irmão mais novo, um gênio completamente caxias que se muda para a cidade para viver com seu irmão e sonha em entrar nas melhores universidades do país enquanto termina seus estudos numa escola onde ninguém, nem os professores, se importa com nada.

A casa onde moram ainda conta com Jim, amigo de Andy, tão doidão e folgado quanto ele, com a diferença de ter um emprego promissor enquanto jovem cool em uma empresa de publicidade. Além dele, lá vivem Posey, a amiga esotérica de yoga, massagem e vegetais orgânicos (Phoebe Buffay?) e Stogie, cachorro de infância dos dois irmãos, sequelado após anos lambendo cervejas e cigarros caídos no chão. Na vizinhança do prédio estão um casal judaico-latino de artistas ativistas com seu bebê e um casal gay tão adorável quanto briguento, dono de uma lanchonete local.

Mission Hillera diferente por representar e escarniar a contracultura e tratar com franqueza de assuntos pouco abordados em outras animações, especialmente Os Simpsons. Na maioria dos desenhos, os problemas aparecem, se desenvolvem e são resolvidos no espaço de 30 minutos, enquanto em Mission Hill os personagens se encontram em cenários sem solução clara, com angústias típicas dessa fase de transição entre a escola/faculdade e a vida adulta. Temáticas “reais demais” para os Simpsons, por exemplo.

Outro detalhe é que na animação de Matt Groening não havia personagens com idade entre crianças e adultos, e os poucos adolescentes (Jimbo e seus amigos) raramente tinham importância no enredo das histórias. Mission Hill falava a língua dos jovens esquisitos e dos descolados – e tirava onda com hipsters antes disso se tornar a thing. Continha referências diversas e sutis – de Beck a Kafka ao Plano 9 do Espaço Sideral –, além de ser visualmente muito bonita. A trilha de abertura era da banda Cake.

Mission Hill
Esteticamente, a série também fugia do padrão, com uma paleta de cores fluorescentes e contornos maldefinidos.

Mesmo com tudo isso, a série não durou nem um ano, sendo cancelada antes mesmo de completar uma temporada. Então o que deu errado? Os produtores Oakley e Weinstein culpam a Warner: na época, o canal ainda buscava uma identidade e, na tentativa de brigar com os concorrentes, colocou Mission Hill no horário nobre, junto de programas como The Jamie Foxx Show e The Steve Harvey Show, que em nada se assemelhavam ao humor absurdo e melancólico da animação.

Com audiência péssima para o horário, foi rápida e completamente descartada: a série foi cancelada antes de terminar a produção de sua primeira temporada, e antes mesmo de serem exibidos todos os episódios que haviam sido produzidos. (À Firefly!

Todos queriam ter seu próprio Simpsons, e com isso a Warner Bros ignorou a proposta de Mission Hill de ser uma alternativa à família amarela, e não um competidor. A série só voltou à TV anos depois, com o bloco de desenhos-que-não-são-para-crianças Adult Swim, onde de fato se encaixava. No Brasil, foi transmitida no Adult Swim pelo Cartoon Network entre 2005 e 2008, junto de outras animações excêntricas como OblongsClone HighHarvey, O Advogado e Os Universitários.

Atualmente, é fácil encontrar todos os 13 episódios no Youtube – aqui ou aqui –, e assim Mission Hill sobrevive com seu pequeno culto de seguidores. Legal, honesto, diferente demais para seu tempo, uma joia que não teve sua chance de brilhar, mas que permanece ainda mais especial por conta disso.