Editorial extraído da edição de agosto de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Em 2017, em entrevista ao Diario de Sevilla, David Le Breton desenvolveu um ideário a favor da quietude, o silêncio como forma de resistência. “Boa parte da nossa relação com o ruído procede do desenvolvimento tecnológico, especialmente em seu caráter mais portátil: sempre carregamos sobre nós dispositivos que nos recordam que estamos conectados, que nos avisam quando recebemos uma mensagem, que organizam os nossos horários com base no ruído. Esta circunstância veio incorporar-se às que já haviam tomado forma no século 20 como hábitos contrários ao silêncio, especialmente nas grandes cidades, governadas pelo tráfego de veículos e por numerosas variedades de contaminação acústica”.
Na contemporaneidade, de fato, o silêncio tornou-se um luxo raro. Como definiu Eugênio Bucci, “Como pensar o silêncio no meio de tão vasta explosão? (Explosão, aliás, duradoura e persistente, que não é de hoje, que vem se intensificando pelo menos desde o final do século 19)”. O silêncio é uma ética. As nossas vidas são permeadas por um constante fluxo de informações , notificações e alertas que competem por nossa atenção, fragmentando nosso foco e nos empurrando para hábitos de hamster. A tecnologia, embora revolucionária em sua capacidade de conectar e facilitar — e não estamos aqui para defender luditas —, também nos joga a um ciclo incessante de estímulos sonoros e visuais, a uma certa prosa infinita do mundo, produzindo ruídos internos crônicos. Não é difícil observar a qualidade de nossas interações, envolvidos que somos por pastéis de vento emocionais.
O silêncio, para um jornal de literatura, por exemplo, não é apenas necessário, e sim a substância primeira de sua consolidação, uma forma de sobrevivência da experiência. Nesse sentido, torna-se uma forma analógica de resistência – termo cujo processo de banalização agora reforçamos. Resistir à tentação de estar constantemente conectado, resistir à pressão de responder imediatamente a cada notificação, resistir à cacofonia moderna que ameaça nossa capacidade de introspecção.
Hoje, a resistência ao ruído é, de certa forma, uma resistência ao próprio fluxo do tempo moderno. O pesquisador Adauto Novaes define a experiência de ser contemporâneo como fluxo tagarela: “Damos com muita facilidade e até certo desprezo um ‘adeus’ às palavras de maneira tão tirânica e tão natural que nem conseguimos colher imagens que ela nos propõe. Sem o tempo do pensamento, a simplicidade das palavras e a riqueza dos sentidos desaparecem no fluxo tagarela. Sem a experiência do silêncio não se entende o que se diz. Ora, conhecer uma coisa é experiência; conhecer o sentido da fala é experiência”. Seria verdade, então, que somente é capaz de silêncio um ser que pode falar que tem linguagem? Quem nunca diz nada, assim como quem nada tem a dizer, não consegue guardar silêncio?
Se pensarmos no Adonis de “Você, coisa incompleta, inicia a perfeição” como uma estratégia de definir um leitor, chegamos ao valor final absoluto: quem dá vida ao texto, transformando página em alguma coisa além de uma palavra colada na outra, é o leitor que se rebela contra o ruído, que, nas palavras de Frédéric Gros, faz do silêncio uma superfície isolante branca que serve de anteparo diante do ruído.
O caminho foi cantado há muito tempo pelos Secos & Molhados: “Eu não sei dizer / Nada por dizer / Então eu escuto (…) Eu só vou falar / Na hora de falar / Então eu escuto”.
(…) Eu jamais poderia ser autossuficiente nos Estados Unidos; aqui tenho os melhores médicos completamente grátis e, com crianças, isto é uma verdadeira bênção. Além disso, Ted [Hughes] vê as crianças uma vez por semana e isto faz com que se sinta mais responsável na hora de pagar a pensão. Simplesmente, terei que continuar aqui me virando sozinha.
(…) Agora as crianças precisam de mim mais do que nunca, de modo que durante mais alguns anos tentarei continuar escrevendo de manhã e dedicando-me a elas durante a tarde, e verei meus amigos ou lerei e estudarei de noite.
Começarei a ir à consulta de uma doutora, também a cargo da Seguridade Social, que me recomendou um médico do bairro muito bom que conheço, e confio que me ajudará a superar esses tempos difíceis. Mande meu beijo carinhoso a todos.
Contexto: “Uma semana separa a última carta de Sylvia Plath (1932-1963) da noite, segunda-feira, lua quase cheia, em que abriu a válvula de gás do forno e enfiou ali a cabeça até morrer intoxicada. Seu ex-companheiro, o poeta Ted Hughes, havia definido a escritura de cartas como ‘um excelente treinamento para aprender a conversar com o mundo’. Não sabia que também servia para se despedir dele. Excelente escritor de cartas, Hughes redigiu textos secos e frios para comunicar a notícia fatal” [no link].
Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Ao menos, em tese. E calma lá: informo que não sou doutorando em nada! De certo, certo, só temos que Não é dinheiro não! é o novo Me dá um trocado? e que empreender virou verbo intransitivo.
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Mas estão matando mesmo. O projeto é de precarização da existência: tornar o ser numa atividade inusual, ou prescindível, ou capenga; algo qual uma disparatada (dis)função cujo ímpeto, horizonte enquanto (meu revisor interior saiu pra comprar cigarro!) ação se pudesse superar, sem prejuízos, pelo consumir produtos, processar dados, lacrar na rede.
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Querem me sacanear? Façam por onde! E capricharam os autores de junho do Jornal — em que passo vergonha, mas mando aquele SOS diante do fim da arte, da revolução e do amor como utopias-guias pra gente aguentar o tranco. Com a palavra, o ex-supervisor de inteligência estratégica do excelente conto de Saul Neto, que abre o último RelevO: entregaram!
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Da provinha da aquarela de traços épica de Era uma vez no Contestado, romance-quadrinho-milonga do André Caliman, recém-lançado, à mochila carregada das falhas que negamos e que Catulo nos acusa termos sempre às costas; da gargalhável colagem do Informe Publicitário ao inspirado Editorial sobre a saga do impresso (“A nossa inadequação, quem sabe, seja a nossa fortaleza”); no poemário com, entre outros, Douglas Batalha — obrigado pelo verso com que abrimos este ombudsdito! — e Bruna Gonçalves (o Algoritmo é a unidade de afeto do desamor-livre): estupenda, a edição!
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Eu só nunca entendi o David Bowie, tampouco intento fazê-lo, e falo (não) só pra garantir os xingos da rodada. Juro!
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Ainda Saul Neto: se tenho um vício, é o de não dar muita pelota para texto literário de cuja leitura não se guarde mísero trecho, expressão, diálogo nas ideia (o revisor ainda não voltou!). Dramaturgo fascinado por Dostô, Nelsão Rodrigues foi o que foi por ser também um baita frasista. N’O teatro dos loucos, ele tasca que “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz.” Para tanto, lidamos com coisas como “um ódio bem guardado dentro dos ossos capaz de desejar a aniquilação ou apenas o sumiço sumário” de desgraçados que “gostam de mostrar o pequeno poder que exercem sobre os outros os fazendo esperar”. Bravo, Saul (#somostodos sobreviventes do estilo)! Depois me manda seu livro, camará!
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A roda gira, gira a roda. Não é clichê, mesmo o sendo — é mantra para quem topa os segredos das matas invisíveis que nos rodeiam, do mar em que pouco(s) mergulhamos disponíveis a ouvir seus silêncios, do rio que passou em nossas vidas e o coração se deixou levar. Laiá, Paulinho: quantas vezes isso tanto nos doerá pelo caminho?
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Elogiar, elogiei. Mas bora de errata? No afã de cobrir o efervescente mercado de transferência de síndicos, a editoria marcou passo em relação ao próprio nome da lei-sonrisal que, economistas projetam, vai fazer o PIBão do papi Haddad subir uns 2 cm, ops, 2%. A lei é conhecida, afinal, como Novo Marco Síndico (o que já rendeu, por troca do lugar em que se bota o acento, com todo o respeito, é claro, piadinhas infames no colo da rampeira Jana). Síndico, e não sindical. Belezinha?
Obs.: o termo sindical remete a uma antiga tradição de reunir trabalhador (algo parecido com o atual colaborador) para reivindicar direitos, quase que suplantada pelas boas práticas inauguradas com o Plano para o Futuro do Pretérito do ex-golpista e agora vampiro, não necessariamente nessa ordem, Michel Fora Temer (mal aí pela lembrança!).
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Sempre volta a metáfora do zelador de Dias perfeitos: continuemos, a cada banheiro, lutando para que não aconteça, por irrazoável escrutínio ou inércia destrutiva, de depositá-la — a tal de vida — numa latrina.
Editorial extraído da edição de julho de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Quando Elizabeth Bishop escreveu que “Tantas coisas contêm em si o acidente / De perdê-las, que perder não é nada sério”, certamente não se referia ao escopo de escolhas de um jornal de literatura, muito menos do RelevO. Mas isso não nos desanima, tampouco nos impede de forçar a analogia.
Na média, recebemos 400 textos por mês – muito mais que a nossa capacidade de leitura – e estamos sempre em débito com as devolutivas aos autores recusados, o que nos gera espezinhadas regulares nas redes sociais. Para Alain, em Considerações sobre a Felicidade, ninguém tem escolha. “A arte de viver consiste, antes de mais nada, parece-me, em não brigar consigo mesmo sobre a decisão que se tomou ou o ofício que se exerce”.
Escolher o que publicar é um exercício de curadoria complexo. Isso de sermos condenados a ser livres, de abraçar a incerteza e a ambiguidade, já que envolve uma análise subjetiva a partir do gosto dos editores somado à busca por uma compreensão objetiva de textos soltos que possam gerar um conjunto interessante para uma única edição. Por outro lado, gostamos da capacidade simples e prazerosa de identificar novos talentos. Tentamos, assim, ser um espaço de mediação que conecta escritores e leitores, os quais muitas vezes estão nas duas frentes.
Não temos a ambição de orientar os leitores em meio à enxurrada de informações, destacando obras que merecem atenção pela sua qualidade, originalidade e pertinência. Ao selecionar textos de diferentes estilos, gêneros e perspectivas, não temos a pretensão de ser um farol literário que ilumina todos os caminhos da literatura – isso daria muito trabalho!
Nosso objetivo é mais modesto, porém não menos significativo: queremos ser um pequeno espaço de sensações em que cada leitor encontre algo que ressoe com suas próprias experiências – mais que um cardápio de um restaurante elegante, nos vemos como um honesto buffet por quilo.
Essa falta de pretensão não diminui nosso compromisso com a qualidade dos textos que publicamos. Não queremos ditar tendências ou definir padrões; somos apenas um ponto de encontro analógico, um café de domingo, um jeito de estar no mundo, mesmo para quem não selecionamos, afinal “Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada”, como define Bishop.
Sabemos que ser recusado em um processo de seleção pode ser desanimador para os autores. Entretanto, essa decisão não diminui o valor ou o talento de quem escreve. A curadoria é um processo subjetivo e, muitas vezes, um texto pode não se encaixar no perfil ou na linha editorial que buscamos em um momento específico. Sequer precisamos entrar no mérito de grandes autores recusados ao longo da história.
Para os autores não selecionados, queremos dizer que o RelevO continua aberto e interessado em suas criações futuras. Encorajamos todos a persistirem, a explorarem diferentes estilos e temas e a continuarem submetendo seus trabalhos. Só não encorajamos a tentar trocar publicação por assinatura. Isso realmente nos ofende (o que é difícil…) e, para esses, desejamos um péssimo dia!
Meu pensamento vagueou por várias semanas em busca de um modo de começar. A vida de uma pessoa é algo inexplicável, eu dizia a mim mesmo, o tempo todo. Não importa quantos fatos sejam relatados, quantos detalhes sejam oferecidos, o essencial não admite ser contado. Dizer que fulano nasceu em tal lugar e foi para tal cidade, que fez isso e aquilo, que se casou com fulana e teve tantos filhos, que ele viveu, morreu, deixou tais e tais livros, ou essa batalha, ou aquela ponte — nada disso nos diz muita coisa. Todos queremos ouvir histórias e as ouvimos do mesmo modo que fazíamos quando éramos pequenos. Imaginamos a história verdadeira por dentro das palavras e, para fazê-lo, tomamos o lugar do personagem da história, fingindo que podemos compreendê-lo porque compreendemos a nós mesmos. Isso é um embuste. Existimos para nós mesmos, talvez, e às vezes chegamos até a ter um vislumbre de quem somos realmente, mas no final nunca conseguimos ter certeza e, à medida que nossas vidas se desenrolam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós mesmos, cada vez mais conscientes de nossa própria incoerência. Ninguém pode cruzar a fronteira que separa uma pessoa da outra — pela simples razão de que ninguém pode ter acesso a si mesmo.
Paul Auster, A Trilogia de Nova York, 1987 (ed. Companhia das Letras, 2010).
Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O trânsito infecundo das horas e anos, as tragédias em série da (in)consequência do Antropoceno, a troglodice da extrema direita ultraliberal não ajudaram para uma mudança abrupta de visada, em que pese seguirmos fazendo nossas coisas e comprando nossos próprios livros (os que insistimos em escrever) com um descontão de 30%. Pois então: sabe aquela candura de poeta de sarau, olhos brilhosos, gestos expansivos? A coisa do “Porque a puesia (complete com o que quiser de bonitinho aí)…”? Pois é, nunca me convenceu! Sempre achei que, dentro ou fora daquela, desta bolha estávamos – e estamos – é muito fodidos.
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Não há muito o que comentar. Na boa: maio/2024 foi a pior edição do RelevO que já li. E não culpo o Conselho Editorial pelo meu drama pois curadoria trata-se de mera cambonagem: quem incorpora a literatura na nossa tendinha impressa é quem a escreve. Confere, produção?! Ou tava todo mundo mesmo de sacanagem e sobrou pra mim o bagaço da laranja?
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Ou devo eu tergiversar acerca do respeito que Cícero afirmou terem os juízes – os juízes! – pela voz dos poetas (!)? Rimbaud: após tanta humilhação, restaria alguma dignidade? Noutro vértice: Vitor Miranda de fato deixou – ou deixaria – de ser um canalha? Ou foi visto estacionando no Leblon com o Caetano? Henrique Pitt: tal de maturidade literária é de cumê? Ou é biricutico? Me conta: fica bom com o quê? No mais: siameses separados, mula-mulher sem cabeça que deu pro padre, cartas nunca enviadas a Deus (faltou o CEP?), o cosmobol da Serra Talhada, uma ode ao tomate na fruteira (!) e outra à apoptose (!!!), em dois poemas empolados…
Sono. Muito sono.
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A pior edição. Mas, e daí?
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Eis que a literatura se encontra enfiada em uma longa agonia, que se acelera. Porque a literatura não importa. Romances-vivências, contos com participação dos leitores no Kindle (engajem ou morram, seus fidumaputa!), poemas do tipo olha-o-que-andei-lendo-pro-meu-doutorado ou faço-valer-minha-identidade-oprimida o comprovam. Não importa a literatura se você praticou inclusão. Não importa a literatura se você não praticou inclusão. A literatura – como texto de ultrapassamento da linguagem, rasura-testemunho de uma época, jogo de luzes no breu dos debates comuns, fossa da linguagem em fissura –, a literatura, como tal, não mais importa.
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É essencialmente estético. E o estético é político. E define nossa existência perante o outro, no mundo. A vida precisa ser bela. E o belo, nesse caso, não é um ornamento, mas um princípio – alguma tentativa, forma ansiada do ser que verse sobre o único e plural, o singular e vário. Ao mesmíssimo (contra)tempo. Ainda que entre notificações do celular.
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Exceção única (o fumo que se fume: que nunca mais se use Campos de Carvalho de muleta!): a cobertura (isto aqui permanece um jornal!) que o Enclave deu ao filme Dias perfeitos. Com este vaticínio: “a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada (…). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.”
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A indiferença geral machuca, claro. Mas dói mais a indiferença manifesta em apatia e obra insossa, alheia tanto à consciência de se empreender uma repetição quanto à premência do se buscar o inesperado. Até quem normalmente já seria medíocre pode mais.
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Na textura dos silêncios, a gente apanha da reflexão, que é ulterior ao sentimento. Nasce, assim, o insight. Ao termo em inglês, a preferência da firma é por estalo. (Haverá tentativas de indefinição semântica desse termo, em breve ou nunca, neste periódico.) Depois disso, dá um trabalho danado, ainda.
Editorial extraído da edição de junho de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
De tempos em tempos, fazemos um compilado de motivações para seguirmos impressos. O primeiro argumento é simples: gostamos dessa forma de existir. Depois, comumente citamos
a) a conexão física, a experiência sensorial em si de folhear um jornal;
b) o ritual de leitura, aquilo do jornal no café da manhã de domingo, abrir o malote para, então, ler de acordo com as próprias manias;
c) a experiência offline, com menos distrações, menos desvios de atenção: jornal impresso não tem pop-up nem notificação de tela;
d) o apelo visual, afinal, nos entendemos vulgarmente como um jornal de arte com uns textos dentro, e a cada edição procuramos entregar um produto de valor estético que não seja perfeitamente reproduzível em um… PDF (ou você se pega dizendo “que PDF bonito”?);
e) outros argumentos que envolvam materialidade para caixinhas de pet, hábitos tradicionalistas, tangibilidade, acessibilidade, curadoria, limite: imagine que podíamos ser uma edição com 893 melhores textos. A edição de junho entrega apenas 10 textos.
Também não negamos que oferecemos limitações visíveis ao consumo: jornal molha, rasga, gera ansiedade visível da não leitura, amassa, avoluma, amarela. Nem precisamos nos estender nisso porque o nosso entorno reforça tais déficits o tempo todo. Entretanto, reconhecemos ultimamente uma nova não vulnerabilidade, vista principalmente em nativos digitais e em seus apelos por rentabilidade (nós também fazemos apelos – não estamos julgando, apenas constatando).
Pois vejam: em um mundo cada vez mais dominado por algoritmos e por tráfego pago, o jornal impresso pretende se pagar já em sua materialidade, sem a necessidade direta do pedágio das redes. Paga-se – você paga – para receber 12 edições de papel.
Sabemos que jornal custa caro, da gráfica ao Correios, mas a operação é muito mais previsível que a dos meios de comunicação, cada vez mais dependentes de – e, portanto, vulneráveis a – qualquer ligeira mudança das plataformas contemporâneas. Os Correios podem fechar? Sim. As gráficas podem triplicar o preço da tiragem? Também. Porém, estes são elementos de jogo muito mais jogáveis, a nosso ver, que a disputa por atenção e o desespero com mudanças nas políticas de monetização nas redes.
Podemos observar essa resistência (ou teimosia) a partir da lógica do Efeito Lindy. Inicialmente, a constatação de seu criador, Albert Goldman, em 1964, foi: “a expectativa de futuro de carreira para um comediante de televisão é proporcional ao total de exposição no passado pela metade”. Então simplificamos para uma regra de bolso: se X existiu por Y anos, podemos presumir que existirá por mais Y (ou metade de Y, como propôs Goldman).
Assim, se o seu projeto artístico, negócio ou relacionamento depende de redes sociais criadas semana passada ou de algoritmos ajustados ontem, é muito mais provável que ele esteja vulnerável (e desapareça) a partir de mudanças nos algoritmos atualizados hoje ou redes sociais evaporadas semana que vem. A nossa inadequação, quem sabe, seja a nossa fortaleza. Por isso, impresso.
Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Acontece, já dizia Cartola [1], sem que a gente deva prescindir do conselho. Você está ali, distraídis… (Mussum é desinência neutra de raiz! [2]). E dá de cara com algo – aquele algo, que pode ser uma pessoa, uma coisa; uma paixão, um assaltante; um arco-íris, um tsunami. Chamam de destino, mas a gente podia aprender, um dia, a tratar a poesia pelo nome.
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Acontecimento é um achado que não se procura, logo adiante; tampouco num retrovisor, quer irradiado de ternura ou de indignação. O acontecimento é uma situação. Certo movimento tomou tino das duas noções e tratou o mundo a fim de reivindicá-lo outro: o situacionismo. Um de seus maiores expoentes, Guy Debord, sacou da tese da sociedade do espetáculo para destrinchar as manhas do fetiche da mercadoria, em sua associação com o estabelecimento da imagem visual como linguagem soberana de nosso tempo – isso na década de 1960! Direto ao ponto: a imagem visual sequestrou o instante – junto com o prazer do presente – e não pediu resgate. Até hoje.
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Ah, Jaine Oster: “Assim como o fim do mundo, a epifania, essa palavra tão gasta, não vem de uma explosão, mas de um lamúrio – ou mesmo um bocejo.” Lamúrio é o que mais vocês têm de mim – dou o meu melhor, não? E aceito, em troca, um bocejo. Boom!
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Desafio do mês: descubra a frase lapidar do editorial de abril e, com seu talento, a transforme em sabedoria de para-choque de caminhão. Dica: se você trocar o sujeito dessa frase por O samba ou A literatura ou A arte, juro que vai dar, o sentido, quase no mesmo.
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Arte é o banheiro invisível cujo zelador, tal de artista – também conhecido, no baixio, por alcunhas como Se Fosse Bom Estaria na Globo, Um Dia Ainda Vão Te Descobrir e Vagabundo da Rouanet –, limpa os dejetos de uma sociedade prisioneira de sua pouca afeição ao que de fato importa. E, no geral, ninguém lhe agradece por isso. Ah, a pandemia… Responderia o Pedro Pedreira, inesquecível personagem do ator e último vereador eleito pelo Partidão no Rio, Francisco Milani: “Não me venha com chorumelas!”.
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Bobos de criação (ainda Jaine!) não merecem sacos de pipoca. Merecem ser posto para fora do cinema (ou do parquinho). Pega a lógica, pelo rabo: Glauber Braga chutou foi pouco!
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Enclave: vivemos imersos num, em meio à deprimência dos anúncios, à bestial virtualização e empobrecimento das experiências e ao surto de autodestruição financista. Apesar disso, e em vão, e não, (ainda) escrevemos.
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Ah, Anne Carson: “Nosso amor, esse incendiário meio doido, / corre uma vez ao redor da sala / chicoteando tudo / e se esconde de novo.”
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Instante é o fundamento do nosso devir transeunte; sopro de vida, sob ruídos de um antes, em rota de alguma ainda possível (re)inauguração.
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Ah, Maiakóvski: “Eu fico sozinho, como o último olho / de quem vai embora com uma pessoa cega!”.
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Por outro, e mais um; o primeiro, o próximo, o último. A gente ainda o sente por perto, como que entrevisto na noite esconderijo a que se refere Menalton Braff. O instante insiste. E acontece.
[1] “Acontece” foi a música predileta do vate da Estação Primeira, para quem ninhos de amor no vazio consistiam em tema assaz angustiante. O Angenor era um baita dum zelador sensível das dores que perpassam todas as eras e esferas.
[2] Já subjaz evidente que lacrar exige uma seriedade, uma soberba, um ar suposto sóbrio, akademicuzinho ou zão, né? Então, pra que citar o Antônio Carlos, que ainda por cima era preto (não militante), músico e palhaço?! Por que aderir a um modo humano-humorado de lidar com traumas, dívidas, transvisões do passado? Madame Treta não gosta que ninguém sambe.
Editorial extraído da edição de maio de 2024 doJornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
O tempo, mais do que urgente, é constante. O RelevO é um jornal impresso de papel e de literatura que enfrenta o calendário a cada 30 dias. A cada edição em que retiramos os exemplares da gráfica, em que fazemos o mesmo caminho e vemos os mesmos rostos, completamos o atestado da nossa sina: ser impresso.
Dentro do exercício rotineiro de existir como um produto material, buscamos nos atualizar para fazer mais do mesmo. Melhor: para nos adaptarmos e, então, fazer melhor este mais-do-mesmo. Entregar um jornal que justifique a presença no tempo é o nosso objetivo, digamos, mais semântico. Funcionamento é o nosso jeito de praticar beleza. Assim, de certo modo, acreditamos em ergonomia.
A lógica é simples. Ao longo de nossa trajetória, que logo se encaminha para 15 anos de existência, aprendemos a 1) operar planilhas; 2) melhorar processos logísticos; 3) calcular custos de curto, médio e longo prazos; 4) prever algumas variáveis; 5) encontrar os melhores espaços de alavancagem de audiência; 6) estudar estratégias de presença física e digital; 7) reconhecer mudanças no perfil de consumo de conteúdo; 8) lidar com as nossas restrições técnicas e de orçamento. Enfim, somos um peculiar modelo de negócio que, para persistir, precisa se comportar como… um negócio, contando com riscos e acasos.
[Entendemos que, se um dia nós simples e inevitavelmente virarmos fósseis nos fundos de uma casa a dois anos sem alugar, não poderão dizer que ficamos acomodados fazendo tudo do mesmo jeito. Estamos sempre buscando alternativas para fazer mais com o que temos à disposição. Não se trata de trabalhar mais, e sim de modo mais inteligente.]
Recentemente, executamos três mudanças operacionais profundas. A primeira corresponde ao sistema de envio de textos para publicação. Acabaram-se os tempos hediondos de envios manuais ao editor, pois resolvemos uma enorme e longínqua dor de cabeça. Trouxemos uma solução elegante: um formulário próprio. Basta seguir as instruções e anexar os arquivos, tudo ainda no mesmo endereço (jornalrelevo.com/publique).
O segundo avanço corresponde à otimização do nosso sistema de assinaturas, cada vez mais automatizado e distante da lógica “acertando com o publisher”. É um meio simples, porém efetivo de garantir profissionalismo e transparência nos procedimentos. Alteramos a maneira com que as compras são catalogadas pelo MercadoPago, o que não muda nada para o assinante, mas nos ajuda um tanto.
A terceira novidade diz respeito à Latitudes. A newsletter mensal (e gratuita) é a nativa digital da casa, voltada para concursos literários, editais, feiras, festivais e cursos de literatura. As edições têm entre dez e 15 notas, as quais reúnem as principais informações sobre cada proposta cultural. Trata-se do nosso material com maior compartilhamento, impulsionado pela base qualificada de assinantes do Substack, cheia de escritores, jornalistas, editores, artistas e demais entusiastas desse negócio de uma-palavra-ligada-na-outra. Muitos assinantes, inclusive, migram da assinatura digital para a física, colaborando para o custeio de nossa operação.
Desde a edição de maio, temos espaços pagos dedicados a lançamentos de livros ou à divulgação de obras de editoras independentes e de autores autopublicados. Trazemos – com aviso de publieditorial – a capa, uma pequena sinopse e as informações de acesso ao conteúdo. Assim, buscamos ampliar o nosso fôlego financeiro e apresentar mais uma novidade dentro do escopo de possibilidades de um jornal impresso que se considera conectável.
Nosso intuito prático final, em todas as novidades, é conseguir viabilizar o Jornal. Em suma, pagar a gráfica → pagar os envios pelos Correios → pagar a nossa equipe que seleciona e produz conteúdos → seguir publicando. Nosso intuito mais difícil de mensurar, mas nem por isso menos fundamental, é melhorar a experiência do leitor, do assinante e do colaborador. Assim, nos esforçamos para entregar o melhor jornal possível dentro de uma jornada de 30 dias.
Uma boa leitura a todos.
Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?
Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca… uma taça quebrada…)
eu só tenho um valor estimativo. [1]
Wim Wenders produziu grande beleza, e dessa vez em Tóquio. Este alemão é o diretor de Paris, Texas (1984) e de outros quatro filmes que seu amigo formado em Cinema te recomendou à toa (incluindo O Sal da Terra). Sua última obra, Dias Perfeitos (2023), acompanha um zelador japonês a viver uma rotina mundana — o que, logo questionaremos, talvez não seja um pleonasmo.
Hirayama, o protagonista (Koji Yakusho no mais alto nível), limpa banheiros. Com esmero, capricho, atenção. Ele acorda sempre do mesmo jeito; toma o mesmo café da manhã; locomove-se da mesma forma; mantém os mesmos hábitos (fotografia, jardinagem); descansa na mesma praça; banha-se no mesmo lugar; bebe o mesmo highball. Suas tecnologias já pararam no tempo, o que não demove seu prazer, uma vez que ele permanece entusiasta dos alimentos da alma, como música e literatura. [2]
Ao sair do cinema – pela primeira vez, pois acabei reassistindo dois dias depois –, os pômulos tremendo na contenção de lágrimas, retomei alguns questionamentos a que recorro com frequência. Isto é, sabendo que nosso tempo é finito, por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida?
Em outras palavras, em que consiste uma vida bem vivida? Algumas alternativas óbvias e cumulativas: viajar pelo mundo. Conhecer um grande amor (ou vários). Conquistar poder. Acumular dinheiro.
Qualquer indivíduo que já tenha vivido mais de meia hora neste planeta tem a humildade de não subestimar nenhum desses fatores e, ao mesmo tempo, reconhece que acima de todos eles reside o bem-estar volátil, intempestivo e eternamente angustiado de cada um. Viajar pelo mundo com um grande amor e muito dinheiro certamente ajuda, mas não garante satisfação alguma — não para sempre. Se Anthony Bourdain se matou, por que eu não me mataria?
Com maestria técnica e, principalmente, uma sensibilidade absurda, Dias Perfeitos nos permite absorver como “felicidade” é uma ideia complexa, contraditória e transitória. Mais que isso – a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada, isto é, aquilo que não pode nunca ser planejado, esperado, calculado (seja o efeito do vento nas folhas, seja o frescor do contato com alguém indiferente às convenções sociais). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.
Não se trata de um filme sobre “a beleza das pequenas coisas”, algo assim. Seu grande mérito é expressar de maneira tão singela como a alegria está contida na tristeza e vice-versa. Não há nada além do agora – o que não é uma frase motivacional, apenas descritiva – e nada existe além da nossa tão esquecida atenção.
E afinal, em que consiste uma vida bem vivida? Por ora, paramos para um interlúdio.
Interlúdio: sobre a redução da ética de trabalho
Aqui, vale mais do que nunca lembrar a anedota do pescador e do estudante de MBA, com tradução via DeepL e revisão nossa. A versão original dessa historinha partiu de outro alemão (!), Heinrich Böll. [3]
Um empresário americano estava no píer de uma pequena vila costeira mexicana quando um pequeno barco com apenas um pescador atracou. Dentro do pequeno barco havia vários atuns albacora grandes. O americano elogiou o mexicano pela qualidade do peixe.
O MBA americano de Harvard: quanto tempo você levou para pegá-los?
Pescador mexicano: só um pouco.
MBA: por que você não fica mais tempo fora e pega mais peixes?
Pescador: tenho o suficiente para atender às necessidades imediatas de minha família.
MBA: mas o que você faz com o resto do seu tempo?
Pescador, respondendo com um sorriso: durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com meus filhos, tiro uma siesta com minha esposa, Maria, passeio pelo vilarejo todas as noites, onde tomo vinho e toco violão com meus amigos.
MBA, interrompendo impacientemente: olhe, eu tenho um MBA de Harvard e posso ajudá-lo a ser mais lucrativo. Você pode começar pescando várias horas a mais todos os dias. Depois, você pode vender os peixes extras que pescar. Com o dinheiro extra, você pode comprar um barco maior. Com a renda adicional que esse barco maior trará, em pouco tempo você poderá comprar um segundo barco, depois um terceiro, e assim por diante, até ter uma frota inteira de barcos de pesca.
Orgulhoso de seu raciocínio aguçado, ele elaborou com entusiasmo um grande esquema que poderia trazer lucros ainda maiores:
— Então, em vez de vender seu pescado para um intermediário, você poderá vender seu peixe diretamente para o processador, ou até mesmo abrir sua própria fábrica de conservas. Eventualmente, você poderia controlar o produto, o processamento e a distribuição. Você poderia deixar esse pequeno vilarejo costeiro e se mudar para a Cidade do México, ou até mesmo para Los Angeles ou Nova York, onde poderia expandir ainda mais seu empreendimento.
Pescador: mas, señor, quanto tempo isso vai levar?
MBA, após um rápido cálculo mental: provavelmente cerca de 15 a 20 anos, talvez menos se você trabalhar muito duro.
Pescador: e depois, señor?
MBA, rindo: essa é a melhor parte. No momento certo, você anunciaria uma IPO (Oferta Pública Inicial), venderia as ações da sua empresa ao público e ficaria muito rico, ganharia milhões.
Pescador: milhões, señor? E depois?
MBA, lentamente: depois, você se aposentaria. Aí se mudaria para uma pequena vila costeira de pescadores, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com seus filhos, tiraria uma siesta com sua esposa, passearia pela vila à noite, onde poderia tomar um vinho e tocar violão com seus amigos.
Criado via Bing/CoPilot.
Assombrados
Morrer de trabalho, como sugere a anedota acima, é apenas um dos caminhos. A verdade é que desperdiçamos a vida em jogos de vaidades, travamos diante do risco e congelamos por medo de aceitação. Por fim, preenchemos a existência com ruído e feiura. [4]
Não existe fórmula, tampouco algo mais solúvel que “felicidade”. [5] O que diabos é a felicidade? Quem disse que devemos perseguir felicidade? A vida é o que é, os seres humanos são humanos e fazemos o que fazemos — simplesmente. A magia acontece nas pequenas e inesperadas fissuras, nas grandes sensações de momentos discretos, minúsculas quebras da nossa percepção viciada. Repetição e rotina – seja para o zelador de Dias Perfeitos, seja para o editor do RelevO – não são um problema, e definitivamente não são o problema. Toda concentração traduzida em movimento é bela, e o que nos mata é a falta de atenção.
Eis algumas premissas pessoais para tentar, afinal, responder à pergunta principal deste texto. Adoraria “conhecer o mundo”, já uma simplificação (é possível conhecer o mundo?), e certamente associaria esse traço a uma vida bem vivida. Por lógica, isso significa que alguém imóvel leva uma vida menos interessante? Não necessariamente. Vastidão não implica profundidade.
É perfeitamente possível estar em outro lugar e não se submeter a nenhuma ruptura (o famoso brasileiro no estrangeiro procurando churrascaria). É perfeitamente possível se arriscar em uma novidade e continuar apenas um mala em diferentes continentes.
Mas esses são só dois exemplos. Estar em outro lugar favorece pequenas e grandes rupturas, e rupturas em geral favorecem a sensação de estar vivo – o que, por fim, favorece crer que não desperdiçamos a vida. É perfeitamente possível ter rupturas no próprio bairro onde se vive (e, claro, ir para longe tende a refrescar nossa visão local). A mera ideia de experiência já foi tão commoditizada que, por si só, cada um só pode ser seu próprio avaliador de genuinidade.
Como no poema de T.S. Eliot, “o fim de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida”. [6] Explorar o mundo externo é ótimo, mas e aí? Há todo um universo interior para cavucar. Encarar o banquete de consequências é duro porque nossas vidas intrinsecamente carregam um conjunto de vidas não vividas. O que nos aflige são as portas não abertas, principalmente aquelas já trancadas – ainda mais quando vemos outros abrirem. Somos assombrados por elas todos os dias.
Aceitar isso é, de fato, complicadíssimo. Se fosse fácil estar em paz consigo mesmo, não existiria… na verdade, não existiria muita coisa – quase nada! O que cabe a nós é não desperdiçar a nossa atenção, externa e interna. Preparar o café da manhã; limpar o banheiro; conversar com um desconhecido; fundar uma empresa; escalar uma montanha: não se trata do que fazer, mas como. Dias Perfeitos enriquece esse impasse.
De banheiro em banheiro – sem respostas –, seguimos.
Notas
[1] “A imagem perdida”, Mário Quintana.
[2] Aqui, o parágrafo inteiro do editorial: “O RelevO, este zelador sensível que chora de alegria sozinho no carro e de tristeza ao abraçar a família, sabe que a alegria reside na tristeza; e a tristeza, na alegria. Não somos os anjos de Asas do Desejo que leem pensamentos e se solidarizam com a melancolia humana — somos banalmente humanos e periódicos. Não há muito o que fazer além de, bom, continuar fazendo. Afinal, nosso tempo é finito: por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida? Em que consiste uma vida bem vivida?”.
[3] Somando com Wim Wenders, eis a agradável surpresa de que ao menos dois alemães parecem compreender que a vida é mais que eficiência.
[4] Compartilhamos o Universo com aberrações como museus de cera; bonecos Funko Pop; Blink 182; programas de auditório de TV aberta e memes corporativos.
[5] “What is happiness? It’s a moment before you need more happiness.
[6] Aqui a versão traduzida por Ivan Junqueira.
Segundo Renato Archer, com poucas exceções, nenhuma chefia tradicional da época falava em desenvolvimento, planejamento, quilometragens. De repente, a população começou a ouvir expressões como quilowatt per capita que assustavam os políticos tradicionais de todas as correntes. É conhecida a frase do coronel maranhense Vitorino Freira: “Quero lá saber de quilowatt, quero saber é de meus amigos”. Juscelino usava outra linguagem. Queria quilowatts, luz, força, estradas. Queria tirar o bolor de Minas. Os rotineiros o chamavam de leviano, mas o povo gostava que estivesse de bem com a vida, da sua gargalhada franca e ruidosa, do seu desassombro em face da inveja, de como saboreava as viagens e serestas.
Em Poços de Caldas, Juscelino entrava nas serestas do prefeito Agostinho Junqueira. Em campanha, era capaz de fazer cem quilômetros para garimpar um voto no distrito de Capim. Gostava de desarmar os espíritos, não perseguia, fazia visitas a ex-adversários da UDN, gostava de flores e de mulher bonita, mas graduava sua sensualidade e galanteria, aquém da concupiscência, pela prudência política, pelo background religioso, pela crença de que “quem escolhia era a mulher”. Mais importante ainda: não atendia políticos só interessados em nomear inspetores de quarteirão e transferir delegados e professoras. Seu clientelismo era de resultados.
Claudio Bojunga, JK: o artista do impossível, 2001 (ed. Objetiva).
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