Ricardo Lísias: Win & Rock in Rio

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A edição de outubro do RelevO parece ter aprimorado algo que se mostrou um grande acerto no número anterior: as páginas centrais. O uso do humor para criticar a tendência de infantilização e de mercantilização das questões psicológicas contemporâneas foi um enorme acerto, como já tinha sido com os emails que resumiam a politicagem e a agressividade preponderantes no “meio literário”. Agora ficou ainda melhor e mais divertido, o que já deixa expectativa para os próximos. William Winner é uma grande personagem.

Do mesmo jeito, os poemas parecem ter chegado a um equilíbrio e me pareceram bem escolhidos. Outro destaque eu deixaria com a apresentação do trabalho de Robson Vilalba por Ben-Hur Demeneck, bem realizado e, ao que tudo indica, Vilalba ainda vai fazer coisas muito boas. O que eu conheço da obra dele parece das melhores produções do gênero, infelizmente ainda muito pouco praticado entre nós.

Eu esperava mais, no entanto, dos textos propriamente ensaísticos. Compreendo que uma análise do Rock in Rio possa comportar algum tipo de irreverência. Mas, diante da edição desse ano, cabia mesmo apenas a brincadeira? De longe, o menor dos problemas era a presença ali de músicos que, talvez, não fossem exatamente roqueiros. Do mesmo jeito, é verdade que nomes como “Rock in Rio USA” ou “Rock in Rio Lisboa” são cafonas, para dizer o mínimo.

O festival de 2017 foi realizado em uma cidade sitiada. Enquanto ocorria, o exército cercava diversos bairros que estavam no trajeto dos hotéis ao show. Milhares de pessoas viram seu direito de ir e vir cerceado, uma mesma quantidade de crianças não pôde ir à escola, o que aliás está se tornando um fato cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. Quantas pessoas foram assassinadas durante o Rock in Rio? Uma das universidades mais importantes do país, a UERJ, ficou agonizando enquanto o festival acontecia.

Aliás, a criação de uma bolha para a classe social privilegiada reproduziu o que já tinha acontecido durante as Olimpíadas. Como agora alguns dos responsáveis pela tragédia humanitária que se tornou a capital carioca estão presos, parece que se perdeu um pouco do pudor dos Jogos. Dessa vez, a calmaria ficou mesmo restrita às arquibancadas. Para o resto da população, foi o salve-se quem puder diário.

Considerando, por fim, que boa parte do rock sempre esteve relacionada a questões políticas – e nisso o primeiro Rock in Rio foi notável –, uma brincadeira que anima a conversa com os amigos no bar não é o mais adequado para discutir os verdadeiros problemas que cercaram o enorme evento em um jornal impresso dirigido ao público literário. O mundo não foi tão livre durante o festival, como queria Neil Young, que aliás já esteve em uma das edições e arrasou. E é por isso que faltou rock, não por causa desse ou daquele músico ou estilo mais deslocados.

Ricardo Lísias: Incômodo

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acabei em uma posição incômoda. Eu deveria, para cumprir com certa razoabilidade minha função de ombudsman, apontar o que me parecera ruim na edição anterior, de setembro, do jornal. Só que me diverti bastante com a leitura do RelevO de agosto. A página central, com um conto formado por trocas de emails entre o editor e alguns leitores, acabou me gerando umas boas risadas. E realmente valorizo coisas engraçadas, até porque vivemos em uma realidade cada vez mais indigesta, o que torna o humor raro e também difícil de fazer.

O projeto gráfico parece também ter sofrido uma alteração, tornando-se um pouco mais leve, o que é um ganho. E o jornal continua superavitário, o que também nos tranquiliza bastante. 

Quanto ao conto citado, achei que faltou apenas algo a mais no trecho da personagem Gabriella Feden. Não ficou claro se Daniel Zanella a estava paquerando. A resposta, enfim, parece ter sido promissora em caso positivo. Mas acho que, ainda que as coisas tenham se encaminhado para certa intimidade entre os dois, faltou para o leitor ao menos algum tipo de esclarecimento. 

Do mesmo jeito, não entendi muito bem por que o primeiro interlocutor, o mais divertido de todos, não recebeu um nome, mas sim a alcunha de Amargo. Evidentemente, ele está mesmo bastante amargurado, mas como os outros não ganharam apelido, parece que ele é o que mais irritou o narrador. Pelo tom das mensagens, porém, a personagem Daniel Zanella se irrita mesmo é com Ulisses Louzeiro, chegando inclusive a agredi-lo verbalmente.

Não são defeitos, porém, que comprometam o conto. A parte da Suzana César, por exemplo, está muito bem feita. Sinto falta, no contexto contemporâneo, de textos de ficção que sejam formados por essas novas maneiras de interação como o email, as redes sociais e outras. O fato ainda da personagem Zanella insistir, no ambiente virtual do conto, que está lidando com um jornal impresso acaba causando uma fricção também curiosa.

Eu tomaria ainda um pouco de cuidado com o título. Ao afirmar que está criando um diálogo com o meio literário, parece que apenas um dos interlocutores faz parte desse ambiente, quando obviamente não é assim. Aqui, também sublinho que é muito difícil ver os veículos assumindo-se como personagens de uma trama e enfim se colocando não como centro ou suporte de uma narrativa, mas parte dela.

Acredito, inclusive, que o autor deveria ampliar o conto, pensando mesmo em um romance. Mas aí não sei se estou reivindicando algo para me satisfazer: apenas sublinho que é esse o tipo de ficção que me parece a mais relevante hoje.

Ricardo Lísias: Heroísmo

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O editorial de agosto do RelevO me pareceu bastante ilustrativo de um certo abuso na utilização das palavras. Mais do que isso, é como se utilizar um termo para determinada situação seja suficiente para que ela ocorra. O jornal se declara um ato de subversão, basicamente por existir de forma impressa. 

Em todas as discussões sobre o livro virtual, por exemplo, um detalhe se repete: os autores parecem sempre ansiosos para ver seus livros também impressos. É como se o ebook fosse apenas uma segunda possibilidade, bem-vinda, mas apenas secundária diante do verdadeiro reconhecimento que é ver o texto impresso. Todo mundo que quer publicar, deseja publicar um livro. Nem todos, porém, fazem questão de que o mesmo texto seja publicado sob a forma digital. Apenas em ebook, acho que quase ninguém. 

Muita gente que adora ler fala com clareza que jamais vai aderir ao suporte digital. Os argumentos vão desde o cheiro do papel até a possibilidade de escrever um comentário na margem das folhas. Fala-se simplesmente de um hábito que, por ser tão agradável, não deve ser deixado para trás. Raros, por outro lado, são os leitores que dizem recusar a folha em nome da tela.

Fica então aqui a minha primeira inquietação: o que pode ter de subversivo em existir sob uma forma que todo mundo deseja? Do mesmo jeito, posso listar uma série de veículos impressos sobre literatura ou arte em geral que circulam com significativa desenvoltura no Brasil contemporâneo. Evidentemente, sei que muitos jornais e revistas de literatura ou cultura acabaram nos últimos anos. Outros apareceram e alguns continuam existindo. Aqui e ali a gente vê a reclamação: somos os resistentes! A palavra resistir, já gasta, vira um troféu. Só não listo dez resistentes subversivos para não ficar constrangedor demais. 

Somos todos subversivos?

Depois, mais surpreendente ainda foi ver o orçamento do jornal: se não entendi errado, ele é superavitário! Houve em agosto um lucro de 300 reais. Não há de fato nenhuma subversão em ter lucro. Certo, não é o lucro do Itaú, mas não vejo nenhum tipo de grande heroísmo em publicar textos de qualidade elevada, fotografias interessantes e um poema realmente excelente (o de Ismar Tirelli Neto) e ainda não perder dinheiro com isso.

Pode-se dizer que a doação pessoal dos responsáveis pelo jornal é o seu tempo. Ora, é evidente que eles gostam de literatura. Fica claro que sentem prazer em fazer o RelevO. Subversão não combina muito com isso. Que risco vocês estão correndo? Nem dinheiro perdem…

Acho que no caso houve um nítido abuso da palavra subversão. Parece que se declarar subversivo já é suficiente para que essa condição se realize. Não é o caso. Inclusive, os verdadeiros excluídos da ordem contemporânea não têm sequer o interesse em estabelecer com o status quo algum tipo de medida. Dizendo de outro jeito, talvez o verdadeiro subversivo esteja tão afastado da ordem que sequer mensure o seu espaço. 

O que eu senti foi uma espécie de gozo em se declarar subversivo. Mas em setembro de 2017, acho que não é tão fácil assim. Mais razoável é se enxergar um bom jornal. Qual o problema disso?

Gutemberg Medeiros: Memórias de todo mundo, distopias e algo mais

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Assim como acontece a mais de quatro décadas nos EUA e na Europa, no Brasil está instaurada uma realidade corporativa no mercado editorial, onde se formam grandes grupos a fagocitar selos já existentes. Disso decorre uma consequência das mais negativas: publica-se apenas o que dá retorno em curto prazo. É o fim dos long sellers ou dos autores novos ou mesmo já com quilometragem que apostam no novo. Ou seja, dificilmente um Guimarães Rosa teria lugar nas gôndolas. 

Quem está provendo o mercado de bons títulos fora desse horizonte contábil são as pequenas editoras. Entre elas, destaca-se uma segmentada em literatura russa, Kalinka, que já trouxe em cuidadas traduções diretas de autores como Daniil Kharms e Sologub. Em seu site há também uma revista, com poemas de Anna Akhmatova vertidos pela professora do Curso de Russo da USP Aurora Bernardini.

Pois a editora vai lançar em 2018 uma obra de fundamental importância, as memórias de Nina Nikolaievna Berberova, também traduzidas por Aurora. Boris Schnaiderman considerava esta obra uma das mais importantes da chamada literatura de exílio russo. Memórias de Nina e de todo mundo que interessava na literatura russa da primeira metade do século passado.

Nascida a 1901, em São Petersburgo, emigrou da ex-URSS em 1922 com o poeta Vladislav Khodasevich e viveu em Berlim até 1924 e, depois, em Paris – os maiores bolsões de emigrados russos no mundo. Na capital francesa, atuou como jornalista em jornais russos onde publicou sua prosa e poemas, histórias curtas, poemas, crítica de filmes e resenhas sobre a nascente literatura soviética. Ainda em Paris, escreveu uma das primeiras biografias sobre Tchaikovski, em 1936, onde aborda a homossexualidade do compositor.

O grande valor de suas memórias – além da apurada e deliciosa carpintaria literária – está em falar sobre a vida dos exilados russos e sobre bastidores valiosos do mundo literário. Em suas páginas, encontramos Anna Akhmatova, Vladimir Nabokov, Boris Pasternak, Marina Tsvetaeva, Vladimir Maiakovski, Ievgueni Zamiatin, entre tantos outros. 

A autora emigrou aos EUA em 1950 onde se tornou destacada professora em universidades como Yale e Princeton. Justamente em Princeton, o escritor argentino a conheceu pessoalmente e ficou tão impressionado com ela a ponto de basear um personagem na prosa “O caminho de Ida”, uma das últimas do escritor argentino. Certamente, o livro das memórias de Berberova deve ser um dos mais importantes lançamentos de 2018, forte concorrente aos principais prêmios editoriais, como o Jabuti. 

 

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Outro lançamento que deve chegar até o fim do ano pela Editora 34 é a primeira tradução competente e direta do russo publicada no Brasil do clássico Nós, de Zamiatin, vertido por Francisco Araújo. Outra direta foi publicada recentemente, mas infelizmente não deu conta da complexidade da obra. O texto original exige a noção de Transcriação pensada por Haroldo de Campos e não apenas tradução, priorizando mais os sentidos e a musicalidade interna do texto do que propriamente versão literal.

Muitos viram Nós como exemplo de ficção científica, um equívoco. É, acima de tudo, uma grande reflexão sobre a condição humana na modernidade, independente do regime político em que o sujeito está inserido. Assim, representa o pensamento distópico, avesso ao da utopia, em torno do controle opressivo da sociedade sobre o indivíduo. A sua importância pode ser medida por ter inspirado outros clássicos contemporâneos a exemplo de 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo de Aldous Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Leitura indispensável, especialmente para os tempos que correm. Aviso ao leitor: fique de olho nas próximas versões do russo de Francisco Araújo – certamente um dos mais capacitados da nova geração de tradutores que emergiu nos últimos dez anos no Brasil.

 

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Impressionam manifestações nas redes sociais contra Lima Barreto ser tema da FLIP de 2017 por ser este um evento de mercado e completamente avesso à obra do escritor. Equívoco. Há anos não se fala tanto de Lima na imprensa, em blogs e em outras mídias. Tudo bem, fala-se muita besteira. Mas essa exposição, de uma forma ou de outra, vai trazer leitores a esse escritor tão importante. O que já compensa. Afinal, Lima escreveu para ser lido e as reedições de suas obras são fundamentais para isso – autor bom é autor na gôndola das livrarias analógicas ou virtuais. O resto é especulação vazia.

 

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Outra coisa que me impressionou foi a edição, certamente, não proposital do último RelevO em que foi publicado um texto sobre encontro com Mia Couto e a minha coluna alusiva às besteiras que assolam o país.

 

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Também na edição anterior do periódico a feliz escolha das traduções dos poemas de Nizar Oabbani, Nazik Al-Malaika e Ezequiel Zaidenwerg. Deste, fica no ar de que revolução o poeta fala. No mesmo exemplar, é bom saber que ensaísmo dos bons continua sendo feito, como o trecho de prefácio de Guardião de Datas. No texto, Ben-Hur Demeneck consegue exercer a difícil arte da síntese sem reducionismo. Não à toa, este cronista dá o valor devido à poesia “encalacrada no cotidiano” sob a égide do tempo. Agora é esperar mais da produção deste remador digno de ser personagem de Nelson Rodrigues.

Gutemberg Medeiros: Besteiras ainda assolam o país

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Besteiras continuam jorrando todos os dias na grande imprensa, é impossível ignorá-los. Apenas dois recentes envolvendo o atual ocupante da cadeira da presidência da República assim o comprova. Na agenda oficial, a supracitada autoridade constava uma visita à “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome do antigo do principal componente da ex-URSS finda em 1991. Em discurso de 26 de junho, o mesmo chefe do Poder Executivo afirmou que despertou o vívido interesse de “empresários soviéticos” investirem no Brasil. Na mesma viagem, declarou que iria almoçar com o “rei da Suécia”, quando estava na Noruega sob o reinado de Harald V.

Provavelmente este senhor não saiba, mas está inserido em rica e extensa tradição que viceja no Brasil e um de seus maiores historiadores da realidade emergente foi Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista e escritor Sérgio Porto – em seu impagável “Festival de Besteiras que assolam o País”. Originalmente coluna do jornal Última Hora, rendeu três ótimos volumes publicados nos anos de 1960 e recentemente enfeixados em apenas um pela Companhia das Letras. Fonte inesgotável para os mais diversos perfis de leitores – de leitores a escritores até aos que desejam tentar entender onde vivemos. 

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Falando em besteira, uma das mais interessantes foi proclamada por Mário de Andrade em determinada resenha ao afirmar que “Conto será sempre aquilo que seu autor batizou de conto”. Ironia desregrada ao referir-se a determinada coletânea publicada em França paga pela Academia Brasileira de Letras onde havia de tudo, até pedaço de romance. Pois ao folhear o RelevO de maio e junho foi com prazer que me deparei com alguns dos vencedores do Concurso de Conto de Curitiba e constatar que esse gênero não apenas continua vivo, mas com bons representantes surgindo neste cenário. O tema da competição não poderia ser mais próximo ao gênero, “Um olhar sobre a Cidade”, pois o que são fundamentais os andarilhos da urbe nas tradições próximas de conto e crônica. Como atesta Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Rubem Braga, Drummond, João Antônio e tantos outros. Tanto os jovens autores quanto os tradicionais comprovam que bater perna na rua pode gerar boa literatura.

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O novo é uma construção eventualmente inacessível ao olhar de seus contemporâneos. O novo também é derivado se suportes recém-surgidos, como a literatura emergente do meio digital em redes sociais. Pois experimentação do tipo também constou do exemplar de junho de RelevO. Importante veiculá-la, não há dúvida, mas ainda não vejo consistência estética pelo que foi publicado. Provavelmente, miopia minha como a de Anatoli Lunatcharski, o ministro da Educação e Cultura de Lênin, ao nada ver de importante nas vanguardas russas. Apesar disso, ele deu todo o apoio material para que fossem veiculadas e garantiu um dos mais preciosos tesouros que ainda nos alimenta. 

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RelevO de maio trouxe em sua quarta capa trechos de ensaios de Otto Maria Carpeaux derivados do trabalho de pesquisa de Eduardo Zomkowski e em publicação no seu site Projeto Carpeaux. O pesquisador informa que já peneirou mais de 50 textos inéditos em 20 periódicos. Retomar a produção desse austríaco radicado no Brasil é fundamental, pois ele teve vasta atividade não apenas na imprensa, mas também no mercado editorial. Para citar um exemplo: a coletânea em nove volumes de contos russos pela Editora Luz, no início dos anos 60, todos organizados e com lúcidas introduções de Carpeaux – que conhecia as obras de lê-las em russo. 

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Para quem estiver em São Paulo em 28 de julho, na Biblioteca Mário de Andrade às 19 horas farei a palestra “Tolstói e o novo homem russo do século XX” sobre a prosa “A morte de Ivan Ilitch”. Além de analisar esta obra fundamental, vou expor como o autor russo está presente ainda hoje na literatura brasileira – especialmente em Lima Barreto e Hilda Hilst. O evento está inserido no inédito ciclo “Literatura, teatro, antiteatralidade e performance” a reunir dez montagens de companhias paulistas e seis conferências de pesquisadores ligados aos autores e peças programadas, sob a refinada curadoria do jornalista e doutorando da ECA/USP Álvaro Machado. As palestras e encenações ocorrem até novembro.

Gutemberg Medeiros: Nelson Rodrigues em Som e Fúria

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A mais longeva crítica teatral no Brasil, Barbara Heliodora, desde 1957 em jornais diários, não hesitava em comparar Nelson a Shakespeare. “Apenas pelo fato de serem dois homens de suas épocas, que absorveram os universos que os rodeavam e tiveram não só uma capacidade excepcional para criar as personagens que habitariam suas obras. Ambos tinham talento especial para o teatro, vendo o mundo em termos de ação, pois só quem pensa assim escreve bom teatro”, enfatizava.

A amizade entre eles nasceu quando o dramaturgo soube que Barbara era filha do “Marcos do Fluminense”. “Meu pai foi tricampeão pelo time e goleiro da seleção campeã sul-americana de 1919. O Nelson volta e meia falava nele. Nós nos encontrávamos no teatro ou no Maracanã, sempre com papos tranquilos e simpáticos”.

Barbara acreditava que parece “um engano a busca do clima das chamadas peças míticas, nas quais Nelson não chega a estabelecer uma dramaturgia realmente eficiente” e o melhor está em Vestido de noiva e O beijo no asfalto. Já seu maior tino estaria nas peças cariocas, nas quais, “pela primeira vez, transpõe para o palco, em termos teatrais, o linguajar do Rio de Janeiro, criando, com seu ouvido de repórter, ações dramáticas que lembram o ‘aqui e agora’ de A vida como ela é…, alterando definitivamente o teatro brasileiro”. 

Por outro lado, Nelson era grande frasista. Barbara contava uma que ouviu pessoalmente dele, sentada ao seu lado no intervalo de um jogo no Maracanã – naturalmente, ambos torcendo pelo Fluminense: “Tenho a impressão de que em outra encarnação eu já pastei; porque olho para esse verde e me dá uma tranquilidade…” ou “Se carrocinha apanha cachorro, por que não apanha crítico?”. O humor e as frases jorravam em seu cotidiano.

Lembrar Nelson Rodrigues hoje parece ser fundamental, especialmente ao ver como a grande imprensa reprocessa os acontecimentos. O dramaturgo era nietzschiano ao defender que não existem fatos, mas a interpretação dos mesmos.

Nelson provavelmente elaborou os dois momentos mais intensos de metajornalismo no Brasil nas peças Boca de ouro (1960) e O beijo no asfalto (1961). Após a estreia desta última peça, declarou: todos estamos afetados por esta peça e ninguém que a veja poderá sentir-se alheio a ela, pois nos envolve a todos. Eu creio firmemente que vivemos numa floresta de papel impresso: somos modelados, condicionados pela imprensa. Em O beijo no asfalto é dramatizado e tratado como se fosse uma personagem da peça. Cria-se então uma mútua dependência: os leitores tornam-se vítimas do que leem nos jornais e estes tornam-se vítimas dos caprichos, das atitudes e reações de seus leitores.

O beijo no asfalto mereceria ser lida com atenção por todos os que querem tecer uma leitura crítica do que os cerca. Literalmente, mostra como os fatos são reprocessados conforme a conveniência do veículo em que são expostos.

A histórica montagem se deu em 1961, com o grupo de Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Mário Lago e grande elenco no Teatro Municipal, na Cinelândia carioca. Era comum no teatro rodrigueano o jornalismo ser representado por profissionais de ética, no mínimo, discutível. Em O beijo no asfalto, o dramaturgo parte de um fato: um homem comum cumpre o último desejo de um atropelado que, às portas da morte, pede um beijo na boca.

Um repórter de polícia faz matérias forjando um caso escandaloso de homossexualidade. Para dar veracidade à peça, Nelson faz com que esse jornalista, personagem chave do espetáculo – praticamente seu protagonista –, receba o nome verdadeiro do maior repórter dessa editoria no poderoso jornal Última Hora: Amado Ribeiro. Samuel Wainer, o dono do periódico na vida real – o mesmo no qual Nelson era sucesso há dez anos com sua coluna “A vida como ela é…” – também é mencionado em cena. E o próprio jornal é apresentado, na visão do escritor, como aquele que induz a chamada “opinião pública”, a mesma que execra aquele que beijou na boca, levando-o a uma morte trágica.

Luiz Fernando Mercadante – que atuou por grandes veículos como Jornal do Brasil e a revista Realidade – lembra que na estreia do espetáculo em questão, mais da metade da plateia era formada por jornalistas do Rio de Janeiro e de outros estados. “Corria o boato de que Nelson escrevia uma peça contra nós e a classe compareceu em peso”. Após o pano final, não teve o aplauso esperado. Os jornalistas saíram em silêncio e, no dia seguinte, alegaram que o autor retratava a redação de Última Hora e que todos os outros eram éticos no cotidiano. Mercadante viu a felicidade estampada no rosto de Amado Ribeiro durante a temporada. “Ele era pior do que na peça”, lembrava o jornalista. Mas, fora o Amado e Wainer, todos viraram a cara para Nelson, o que o fez sair do jornal.

A última coisa que o autor de O beijo no asfalto – e de outras 16 peças, além de romances e contos – deseja fazer é um retrato realista e agradável da vida urbana: o realismo, dizia ele, é uma “quase canalhice”. A fusão de memorialismo, reflexão, notícia e ficção em seu trabalho lembra a tradição satírica da imprensa russa da segunda metade do século 19, com debates políticos, morais e metafísicos em linguagem semicifrada para escapar à censura.

Nelson morreu afirmando que o grande autor de sua vida foi Dostoievski, tudo estava lá. E certamente se valeu de O duplo e Crime e castigo, entre outros, ao recusar o realismo e a ausência de tensão trágica, ao contrário da maioria. Ele nunca explicou em detalhes sua visão de Dostoievski, mas legou uma ou outra observação, como “a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” e “Dostoievski é o meu único professor de drama”. Não à toa, Nietzsche foi atento leitor do russo, a partir do qual elaborou a sua concepção de Super-Homem.

Para melhor ler os tempos que correm, falta-nos alguém como Nelson no Jornalismo. Para melhor traduzir esses trás dos fatos, tão plenos de som e fúria.

Gutemberg Medeiros: Boris Schnaiderman, jornalista

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Algumas editoras lembram o centenário da Revolução Russa com lançamentos de obras literárias e de cunho histórico. Mas há outro centenário a lembrar em relação à cultura russa no Brasil, o de nascimento de Boris Schnaiderman, em 17 de maio de 1917. Nascido em Úman, mas criado na cidade portuária de Odessa, dedicou 74 anos à tradução e divulgação da literatura e cultura russas no Brasil.

A lista de autores que Boris trouxe até nós é extensa. Como Isaac Bábel, Aleksander Blok, Ivan Bunin, Fiódor Dostoiévski, Ilia Ehrenburg, Máximo Górki, Daniil Kharms, Vladimir Maiakóvski, Ossip Mandelstam, Iuri Oliecha, Leon Tolstói, Anton Tchékhov, entre tantos outros. Além de serem expoentes da rica tradição da literatura em língua russa, foram traduzidos por este que é uma das mais originais personalidades da cultura brasileira.

O que pouco se fala sobre Boris é a sua trajetória de jornalista cultural. São mais de 300 artigos publicados na imprensa desde 1956. Ele inicia no antigo suplemento literário de O Estado de São Paulo editado por Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido. Foi-lhe oferecido espaço intitulado “Letras Russas”, em paralelo à coluna “Letras Germânicas” de seu amigo e um dos principais críticos de teatro, o berlinense Anatol Rosenfeld.

Formou gerações de leitores, não exclusivamente sobre literatura russa. O seu ensaísmo chega ao tom de diálogo dos mais abertos. Por vezes, vislumbra aspectos da sua memória, desde que relevantes para o fluxo de entendimento. Ele lembra que logo depois que assumiu a coluna no Estadão, fez confidência a Décio. Sentia-se muito mal como comunista em colaborar em um dos principais jornais da direita. O editor sorriu e pediu para olhar para a redação. Assim como em toda a grande imprensa, a maioria dos jornalistas era de esquerda. Logo, tinham de sobreviver de uma forma ou de outra naquele ofício e buscar espaços para veicular algo na contracorrente do jornal.

Em termos de jornalismo cultural, Boris é um exemplo dos mais bem acabados da transição que ocorreu desde os anos de 1950. Como historiografou Russel Jacoby, professor da Universidade da Califórnia, em Os últimos intelectuais (Edusp, 1990), o intelectual que pensava questões emergentes da sociedade na crítica literária ou ensaio sociológico falava ao público o mais amplo possível a partir do jornal diário. Gradativamente, esse segmento migrou para as universidades e fala para determinado leitor iniciado em sua área de pesquisa.

Ele fez a transição para a universidade, ao fundar o Curso de Russo, na USP, em 1960, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da atividade de tradutor no Brasil. Manteve a qualidade de colaborar com jornais e revistas, mesmo com periodicidade variável, mantendo um texto dos mais inclusivos para todo o perfil de leitor, bastasse ser interessado em literatura e cultura russas. Este não foi o primeiro curso do gênero do país de terceiro grau, mas foi o único que sobreviveu à ditadura civil-militar instaurada em 1964. Sob o comando de Boris e com o apoio de colegas e alunos – entre eles Antonio Cândido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes – manteve essa trincheira livre de pensamento e prática cotidianas.

Para o leitor ter noção da rica produção jornalística de Boris, há duas coletâneas de textos. A primeira, em catálogo pela Editora Perspectiva intitulada Projeções Rússia/Brasil/Itália (1978), traz textos publicados em jornais e revistas das décadas de 1960 e 1970. Um dos destaques é a revelação de que o poeta Alexander Púchkin foi tradutor para o russo de uma lira do árcade Tomás Antonio Gonzaga a partir de uma edição francesa.

Turbilhão e semente: ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (1983, esgotado) é um todo coeso de textos jornalísticos publicados, entre outros, no “Caderno de Sábado”, suplemento semanal de cultura do extinto Jornal da Tarde (do mesmo grupo do Estadão). Livro pioneiro onde se descortina o gradativo descobrimento do pensador russo Mikhail Bakhtin – hoje presente em pesquisas muito além dos campos da linguística e literatura –, cujo introdutor no Brasil foi o próprio Boris. Mais uma vez, em cada texto ele introduz o leitor não especializado ao universo de reflexões de Bakhtin, revelando a sua riqueza e pertinência.

Na construção de uma memória coletiva, igualmente função do bom jornalismo, uma das obras em que Boris melhor soube abordar importantes passagens de sua vida está em seu volume de ensaios Tradução: ato desmedido (Perspectiva, 2011), onde narra como se deu o envolvimento com a língua russa em situações diferentes ao de tradutor. Como todos, nem sempre tem dimensão exata do que viveu. Isso se torna evidente quando narra os meses em que foi “secretário” do correspondente da Agência Telegráfica da URSS (Tass), Iúri Kalúguin, entre 1945 e 1947.

Ao ler a descrição, como jornalista, não pude concordar que Boris fosse apenas secretário e fui eliminar essa dúvida. Ele manteve a versão reiteradamente. Então, pedi para descrever seu cotidiano. Boris chegava à casa do russo e lia jornais, revistas e escolhia as notícias que poderiam interessar aos leitores da Tass. Feita essa triagem, lia em russo o que estava em português para Kalúguin. O jornalista escrevia a matéria e Boris revisava os dados. Eventualmente, o “secretário” somava ao texto aspectos que estivessem em pressuposição ao leitor brasileiro, mas não ao russo. Após a definição de quais sugestões de Boris seriam aceitas, providenciava-se o texto final ainda com uma última leitura deste. Expliquei a Boris que ele exerceu funções específicas de um jornalista: pré-pauta, pauta, redação, pré-edição e edição. Ele me olhou espantado e reconheceu o seu engano.

Boris partiu no ano passado, aos 99 anos. Mas o seu acervo está aí e pode gerar várias coletâneas de seus textos jornalísticos, a exemplo do que ocorre há anos com a produção de Anatol Rosenfeld. Enquanto isso, as suas traduções estão em catálogo pela Editora 34, que há pouco relançou O processo do tenente Ieláguin de Ivan Bunin e promete relançar a prosa Inveja, de Iuri Oliesha, uma das principais da literatura russa e publicada originalmente em 1927.

Gutemberg Medeiros: Corpo-a-corpo com a vida

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 1993, participei como ouvinte de congresso sobre os rumos do jornalismo cultural no Brasil e na Alemanha, no Instituto Goethe paulistano e com a presença de editores dos mais importantes jornais de ambos os países. Ainda na era pré-Internet, já se falava abertamente da crise no setor que resultou na presente exiguidade – para sermos econômicos ante quadro tão devastado. Entre os editores que entrevistei, estava um dos mais destacados e longevos em atividade na Alemanha, a frente do suplemento semanal do Frankfurter Allgemeine Zeitung. No mesmo posto, o escritor e pesquisador Siegfried Kracauer fez história e parte da sua preciosa produção jornalística pode ser lida em O ornamento da massa (Cosac Naify).

Após abordar as questões relativas ao congresso, perguntei o que estava sendo trabalhado – direta ou indiretamente – na Alemanha após a queda do muro de Berlim e a reunificação do país. Ele me dirigiu um olhar gélido e perguntou se algum escritor trabalharia com isso. Respondi que dialogar com os rumos de seu país era normal na literatura mundial e, especialmente, na literatura alemã. E enumerei nomes representativos, como Goethe, Novalis, Thomas Mann, Brecht e Peter Handke. O editor me cortou ao ouvir este último nome, declarando ser austríaco e não alemão. Despediu-se secamente. Além de tudo, era ligado a uma tradição ultrapassada da crítica, ao priorizar o local de nascimento e não a língua de expressão original.

Venho abordar este aspecto por sentir um tanto falta desse diálogo explícito ou implícito da literatura atual com o importante momento vivido por todos nós no Brasil, pelo menos desde 2013. Digo isto pensando especialmente na produção dos autores que colaboram com o RelevO.

Não estou dizendo para fazer proselitismo defendendo um lado ou outro da polaridade que nos assola. Nada disso. Mas considerando como a literatura é também um espaço possível para expressar o demasiadamente humano de nosso tempo e espaço, partindo de determinadas vozes do passado e se projetando ao futuro, para lembrar o pensador russo Mikhail Bakhtin.

Alguém que estava afinado com essa proposta – não, corrijo, mais do que isso, um ofício de vida – foi o escritor João Antônio. Ele chegou a cunhar uma expressão das mais ricas, o seu constante “corpo-a-corpo com a vida”. Em crônica intitulada “Eu mesmo” e publicada em 9 de marco de 1976 no extinto jornal diário Última Hora, escreveu: “Estou aqui, atrás da minha máquina, para um corpo-a-corpo com a vida, com vocês e com a cidade”. Logo adiante, no mesmo texto, “Se fosse para fazer pirueta mental e procurar brilharecos de fácil conquista, acho que não estaria aqui, agora, atrás da minha máquina”.

Algum incauto apressado poderia dizer que João Antônio falava isso por ser mais jornalista do que escritor, pois o mais importante nas artes – especialmente na literatura – seria a forma, o cinzelamento do texto ou coisa parecida. Apesar do que muitos pensam, nem os Formalistas Russos do começo do século – entre eles Chklovski, Jakobson e Tinianóv – chegaram a defender tal posicionamento. Inclusive, eles se comprometiam com a vida emergente pré e pós-1917, tendo entre seus principais parceiros de vida Eisenstein e Maiakovski, entre outros das vanguardas russas.

A literatura brasileira está repleta de escritores que praticaram esse corpo-a-corpo com a vida. A exemplo de Lima Barreto, sobre o qual falamos na coluna anterior. Talvez um dos momentos mais contundentes neste sentido seja o poema dedicado a Stalingrado, de Carlos Drummond de Andrade (A rosa do povo, 1945), ao cantar a resistência heroica ao cerco desta cidade pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Além da admiração do poeta a esta resistência, acompanhada pelos telegramas de Moscou (“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, diz em um de seus versos), Drummond também ecoava sobre a resistência a outra ditadura não estampada na nossa imprensa, a de Getúlio Vargas, de moldes fascistas. Ninguém pode alegar em sã consciência que o poeta colocava a ética acima da estética.

Uma escritora das mais importantes entre nós é Hilda Hilst, cuja poesia completa acabou de ser lançada pela Companhia das Letras. Muitos a chamavam de esteta vazia, a viver numa torre de marfim. O tempo provou o contrário em sua vasta obra que compreende poesia, teatro, prosa poética e crônica jornalística, nas quais, direta ou indiretamente, discute as agruras de seu tempo.

Para ficar apenas no mais explícito, todo o seu teatro está pejado desse diálogo. Especialmente a peça “O Verdugo” (vencedor do Prêmio Anchieta de revelação no teatro paulista de 1968), que aborda discussões de fundo ético a partir das reflexões de um carrasco em plena ditadura civil-militar. Ou a série ”Poemas aos Homens de nosso tempo”, 1974). Em determinado momento, emergem os versos: “LÍDERES, o povo/ Não é paisagem/Nem mansa geografia/ Para a voragem/Do vosso olho./POVO. POLVO./UM DIA).

Por isso, peço aos criadores de RelevO que ousem mais em entrar nesse corpo-a-corpo com a vida. Pois quem tece palavras com os fios do tempo presente pode compor memória e tocar o essencial do humano. Como nos atualíssimos versos de Hilda Hilst.

Gutemberg Medeiros: Lima Barreto e o mito

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 2013, houve um movimento em redes sociais propondo Lima Barreto para ser o homenageado da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Logo surgiram manifestações, algumas violentas, contra essa proposta, pois seria sujar a memória do escritor. As alegações eram de que ele era o maldito em sua época, uma espécie de outsider assumido sempre a lutar contra os espaços legitimados nas esferas literárias e jornalísticas.

Na época, manifestei-me contra esse tipo de coisa, parte dos mitos criados em torno de Lima – e tanto há quem goste de tecer para outros como Patrícia Galvão, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst. Não precisa ser “especialista” em Lima para saber o que é mito ou não. Para tanto, basta recorrer à biografia do escritor realizada por Francisco de Assis Barbosa, publicada em 1952, e ainda uma das referências sobre o autor de “Clara dos Anjos”.

Tudo bem, em 1907, Lima lança com amigos e escritores a revista Floreal e durou apenas quatro números, mas o autor já era um homem marcado, pelo menos incompatibilizado com grande número de influentes jornalistas e escritores. Como se não bastasse a ácida leitura do mundo jornalístico em “Memórias do escrivão Isaías Caminha”. Mas isso por uma parcela desse universo, não pela maioria dos seus colegas. Inclusive, fazia ponto na Confeitaria Colombo na mesma mesa de Olavo Bilac, já considerado o Príncipe dos Poetas e cronista dos mais valorados.

Lima passou por variedade extensa de revistas e jornais, recomendado por amigos de profissão. Desde menores como ABC até a Gazeta de Notícias, um dos mais importantes jornais diários da 1ª República. Poderia ter publicado mais e não o fez, basicamente, por dois aspectos de sua vida pessoal. Primeiro, enquanto trabalhou no então Ministério da Guerra. Como arrimo de família, não poderia se arriscar a ser exonerado por algum artigo ou crônica ácida. Cedo se aposentou. O outro fator a atrapalhar a sua produção foi o alcoolismo. Tão considerado era a ponto de ter sido convidado a participar como colaborador da primeira revista modernista nacional, a Klaxon, e se recusou por julgar Mário de Andrade e companhia um bando nada sério de seguidores do futurismo italiano.

Por outro lado, buscou se integrar ao meio literário, como ingressar na Academia dos Novos (1911) e na Sociedade dos Homens de Letras (1914). Como se não bastasse, Lima quase se candidatou à Academia Brasileira de Letras em três ocasiões – em 1918, 1919 e 1922, ano de sua morte, na vaga de João do Rio, quando formalizou o pedido de inscrição, mas acabou desistindo. Logo, pode-se garantir que ficaria muito feliz se fosse convidado para a FLIP. Finalmente sua hora chegou em um evento cuja importância é inquestionável e todo e qualquer reconhecimento de sua obra é fundamental, pois continua tendo o destino de outros grandes autores, como Dostoiévski: muito citado e pouco lido. Pois que se descubra o continente Lima Barreto.

Ainda na questão de ser “maldito”, isso só é verdade em parte, no que diz respeito às poucas vezes que obras suas ganharam a chamada perenidade do livro. A maioria só foi publicada na década de 1950 pela Editora Brasiliense e graças, novamente, aos esforços de Francisco de Assis Barbosa. Porém, foi jornalista dos mais reconhecidos em seu tempo. Como outros escritores e jornalistas brasileiros, exerceu forte e frequente crítica aos rumos da imprensa. O que chamo de metajornalismo, quando a imprensa vira pauta de si mesma. Ou seja, espécie de ombudsman antes dessa categoria ter sido criada. Para ficar apenas em seus contemporâneos, João do Rio e Medeiros de Albuquerque também ocuparam esse lugar de crítica.

Tomara que, a partir da FLIP, a sua produção no geral, e a jornalística em especial, seja retomada. Um exemplo dos mais felizes foi publicado ano passado com a coletânea de inéditos em livro “Sátiras e subversões”, organizada por Felipe Botelho Corrêa (Penguin & Companhia das Letras). Na seleta, textos publicados nas revistas ilustradas mais renomadas do princípio do século no Rio de Janeiro, Careta e Fon-Fon. Um estudo revelador sobre o escritor é João Antônio, leitor de Lima Barreto, de Clara Ávila Ornellas (Edusp), especialmente ao provar com densa pesquisa como ambos seguiram na trilha do pensamento articulado por Leon Tolstói.

Manuel Bandeira escreveu que Lima traz o gosto da nossa vida, muitas vezes amargo, mas ainda vital para melhor nos compreendermos. Em tempo: Evoé!, caro professor Silvio Demétrio.

 

Nota do editor:

Esta é a primeira coluna de Gutemberg Medeiros. Ele é jornalista e pesquisador. Cursou Mestrado e Doutorado na RCA/ USP e cursa pós-doutoramento em Comunicação e Semiótica na PUCSP. Foi indicado pelo ombudsman antecessor, Silvio Demétrio, e tem mandato de três a nove meses. O editor não interfere no texto acima, exceto em casos de correção ortográfica.  Cabe ao ombudsman repercutir erros do jornal, questões internas e, quiçá, escrever sobre o que bem entender no âmbito da críticas das mídias.

Silvio Demétrio: Evoé

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em meio à turbulência desse ano furioso que foi 2016, eis que me surgiu um momento de liberdade daqueles que se vive só por forca do sonho: Ben-Hur Demeneck me convida para assumir a função de ombudsman do RelevO. Apesar do risco disto soar como cabotino, é uma grande sorte ser professor.

Porque no horizonte da filosofia está sempre o “philo”, o amigo. Ganha-se sempre menos do que caberia por direito e responsabilidade, mas como compensação vamos construindo grandes amizades. E tenho a sorte de sempre receber provas disso. Minha experiência como ombudsman deste periódico foi nutrida por essa espécie de “philia”. Uma amizade que amplia nossa força de ação no mundo.

E lá se foi um ano e agora meu mandato chega ao fim. só poderia agradecer pela paciência e fé inabalável do Zanella, editor do RelevO, bem como de toda a equipe e assim como, e principalmente, de cada leitor que por algum momento me concedeu alguma atenção aos meus textos. Enquanto houver literatura ainda permanece alguma esperança no devir. Toda leitura é um ato de compaixão, de simpatia (sim – prefixo que significa “com” e pathos, “paixão” = compaixão): permitir-se a experiência segundo a condição do outro – colocar-se no lugar de alguém.

É porque é necessário, pois ainda falta compaixão. Falta amizade. Falta conforto. Falta. A falta e tanta que às vezes se desacredita nas palavras, como naquela Carta a Lorde Chandos – obra de Hugo Von Hoffmansthal. É só pela literatura que se pode recuperar algo nesse sentido. O zelo pelo dizer. Esse vapor que se dissipa facilmente e que transforma as palavras no testemunho de uma passagem: o estilo. Nada é mais frágil e, no entanto, nada também pode ser mais instigante do que aquilo que derrota a própria morte do homem e o transforma num autor. O estilo, a singularidade que projeta a vida de alguém para dentro das palavras. Algo que insiste, que resta, que fica. A mais sutil de todas as matérias.

Mas falando assim corre-se também o risco de acrescentar alguma inflexão de tristeza, e todas as matizes da bile negra só fazem é imobilizar. Muito ao contrário, de tudo o que vi e li por aqui fica uma grande satisfação pela alegria do movimento e de uma força de expansão que jamais se permite a tristeza. Acho que já estou sentindo saudades.

Quem assume a cadeira de ombudsman no RelevO a partir da próxima edição é Gutemberg Medeiros. Um dos espíritos mais prospectivos que já conheci quando o assunto é literatura e jornalismo. É com um fôlego de geólogo que suas pesquisas vão em busca do cerne da modernidade de Lima Barreto e da intersecção dos universos literojornalisticos de Nelson Rodrigues e Fiodor Dostoievski. Gutemberg constrói em sua jornada como pesquisador um conceito que acredito ser fundamental para a leitura crítica do RelevO: o “metajornalismo” – na convivência anfíbia entre as duas áreas, literatura e jornalismo, não é difícil encontrar momentos nos quais um literato-jornalista coloca-se a pensar e elaborar algo sobre o próprio oficio. A escrita como uma dobra que sela esses campos para sempre geminados.

Ganham os leitores, o periódico, a literatura e o jornalismo. De toda essa crise na área, algum elemento catalisador como força histórica deve definir melhor os contornos de um novo mapa a ser percorrido. Sei que é imprudente, arriscado e impulsivo lançar qualquer afirmação assim, mas talvez, acredito, não cabe mais noticiar. Para isso existe toda uma geração de profissionais que lembram aquele personagem da MTV nos anos 90, Max Headroom – um âncora apresentador cibernético que dispensaria a necessidade de um profissional “humano”. Cabe aos jornalistas que ainda resistem, reportar, contar histórias, e, por que não, estórias também. A imaginação no poder, mais uma vez.

O texto sobre a textura da página: um relevo sutil que se percorre com os dedos e com os olhos. Vida longa a todos nós. Que a nossa alegria continue para sempre invencível. Obrigado, Zanella. Obrigado, Ben-Hur. Obrigado, Gutemberg. Obrigado, leitores.

Silvio Demétrio: Elegia à deserção

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Todos nós erramos. E erramos feio. E a verdade por detrás disso é uma só. Não há retorno possível. Não há reparação. Um movimento completo em sua duração, indivisível. Algo que só se experimenta como vertigem. O erro é o destino de cada um. Absoluto. O erro é a sina cega. O cansaço. A canga do trágico destino que se desconhece. Humano porque trágico.

Uma espécie singular de ilusão e delírio: toda e qualquer forma de convicção. De certeza. De moral. Quanto mais se deseja a verdade mais se erra. E que erro considerar isso um equívoco. Aqui o erro é o movimento da errância. Deriva. Os desvios que constroem o trajeto do riacho do tempo. Aquilo que se passa entre um instante e outro. Móvel. Fugidio. Aquilo que foge. Escapa. Aquilo que é livre. Inumano. Potencia inorgânica.

E se não há outro destino que não o erro, por que não cantar a única atitude verdadeiramente válida? Só há sentido na deserção. Desertar vem de “dirigir-se ao deserto”. Tornar o deserto uma ação. Evadir-se em direção ao que não está demarcado. Terra de ninguém. O deserto é o que sobra para além de qualquer fronteira. Lugar nenhum. Utopia. Não lugar.

A solidão é a nação dos que não se enquadram. O afeto do único, do singular, da diferença. O mais corajoso de todos os desertores: o outsider. O bicho esquisito. Aquela presença estranha e incomoda. Indomável. Assimétrica. Sustenida. Santa. Todos os grandes heróis são desertores.

A suprema coragem de dizer não para não se colocar a serviço da morte. Do sarcasmo que assassina as possibilidades de um dia mais leve. Da falta de respeito que faz sangrar. Do desprezo de toda espécie. Da arrogância que envenena. De toda e qualquer militância. De toda burrice. De toda insensibilidade.

Desertar como ato de celebração da vida em sua potência de alegria simples. Todas as crianças são desertoras. Nascem no deserto para depois serem povoadas por monstros como a escola, as doutrinas, os credos e as certezas. Sempre elas. Assustadoras, as certezas se traduzem numa normalidade vazia que faz da vida uma espera pela morte.

Que todos nós que nos reunimos em torno do RelevO possamos viver de forma mais intensa o erro. Como ombudsman de um jornal de literatura, acredito que só possa articular essa proposição como uma tentativa de crítica depois de um ano marcado por uma intensidade tão obscura como foi 2016. Escrevo isso ainda dentro dele e apostando todas as fichas que, nesse momento no qual você lê isso, esse nefasto tempo já tenha se esgotado.

Saudações a todos os que erram. Errar é estar a caminho da surpresa. A nós a poesia — essa deserção do lugar comum para a vida da linguagem como festa. Um brinde a todos os que já desertaram e os que ainda se deixarão as certezas para embarcar nos ventos do encanto. “Só a beleza nos salvara”.

Evoé!

Silvio Demétrio: Luto pela poesia

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Este resto de epílogo de um ano cruel e tortuoso parece demonstrar um esgotamento do sentido em todos os níveis. Para muito além de qualquer polarização política ou partidária, todos se sentem traídos: seja pelo destino ou pelo acaso com a exorbitante tragédia que solapou as vidas de quem estava a bordo daquela aeronave que levava a equipe da Chapecoense (não há como não falar disso), seja pela decadência exposta de todos os parâmetros aceitáveis para a política em condições democráticas que se demonstrou com as manobras torpes, tanto do Senado com a aprovação da “PEC da morte”, quanto nas “10 medidas para acabar com a corrupção”, que o Congresso transformou a seu bel prazer e conveniências. Daqui em diante são vinte anos de inércia. Uma glaciação tropical. Não há bálsamo para uma ferida assim, especialmente quando o jornalismo é instrumentalizado como dispositivo que arranha a carne exposta do real, pervertendo a dor e a comoção nacional numa passividade bovina da população que se esquece de Brasília, do Brasil e de si mesma. A repetição até a exaustão para que o sentido entre em colapso também.

É aí que se percebe o momento ideal para avaliar o quanto existe de valoroso num jornal que se define pela “linguagem como notícia”. Um jornal de poesia e literatura. Um jornal como ágora estética — encontro de poéticas. Algaravia. Murmúrio do mundo. Glossolalia. É só assim, quando acontece na página uma epifania, que se revela a perspectiva do tempo como via de restauração do sentido. A poesia assim como toda a arte é uma forma de cura. É pelo engenho das palavras que se recupera a fé num mundo, seja ele qual for. Existem vários e eles não se excluem uns dos outros.

O RelevO acerta quando apresenta uma salada dos miolos dessa diversidade. E isto acontece de maneira constante. As páginas da publicação são pluralistas, sempre dando espaço para uma pletora de talentos de diferentes origens, estéticas e recursos de expressão. O periódico não é uma aventura paroquial e incestuosa. Mesmo quando regional, é recomendável a um jornal sempre ser cosmopolita. Mesmo que encrustado na mais febril das províncias. E o RelevO é um cidadão do mundo nesse sentido, basta percorrer suas páginas. A edição de setembro, por exemplo, acertou ao ir do chorinho ao heavy metal. Os textos de Luís Pellanda, Flavio Jacobsen e Karen Debértolis numa mesma edição faz lembrar, e isso é inevitável, os melhores momentos do saudoso Nicolau. Uma publicação de Curitiba para o mundo.

Na edição de outubro um grande acerto foi a publicação do texto do jornalista Diego Antonelli sobre um Paraná que não é nem um pouco pacato. A história da Revolução Federalista e o Cerco da Lapa nos mostram que, tal como no mundo inteiro, por detrás do silêncio de uma paisagem bucólica sempre há o grito sufocado de quem pagou com o próprio sangue o preço da história. E é necessário desmistificar o Paraná. Especialmente quando se cria uma aberração ideológica como a “República de Curitiba”.

Em alguns momentos de vulnerabilidade, o jornal pode pecar talvez por essa vocação paroquial que não é sua, mas do próprio Paraná. Estamos todos imersos no mesmo espírito do tempo e acabamos por contrair suas contradições. Talvez seja hora de expandir o alcance não só da circulação, mas também da abrangência do que se mostra em suas páginas. Existe toda uma cultura subterrânea para além do Paraná e que está ávida para encontrar espaço de expressão. O RelevO pode se tornar essa bússola continental. Encontrar interlocução com uma literatura e uma poesia que são estrangeiras dentro do próprio país, como a verve crua e cortante do maranhense Nauro Machado. O trabalho valoroso do editor Gabriel Cohn com sua Azougue no Rio de Janeiro, assim como a Editora Sete Letras e, porque não, até a Revista Cult. Não existe concorrência nesse meio, senão confluência. Vamos nos juntando até nos tornarmos atlânticos.

Escrevo esse texto para exorcizar as sombras desse mórbido fim de novembro na história do jornalismo e do esporte, assim como na política brasileira. Precisamos nos reinventar. Sempre. Não dá para esperar vinte anos. O avião pode cair a qualquer momento. Do luto, lutemos.

Silvio Demétrio: Krig-ha, Bandolo!

A primeira vez que tive de explicar o que era um ombudsman foi numa prova de proficiência em inglês. Foi na ECA em São Paulo, meados da década de 1990. A prova apresentava um texto sobre a legislação sueca referente à função do “ouvidor” em um jornal. Na época isso era uma novidade relativamente recente no jornalismo brasileiro. A Folha de São Paulo havia começado há algum tempo com a coluna que mantém até hoje. O primeiro ombudsman foi o jornalista Caio Túlio Costa, que foi o primeiro também a lançar um livro explicando o que era um ouvidor dos leitores de um jornal.

Quando me convidaram para assumir essa função no RelevO considerei interessante o desafio, uma vez que essa função é tradicionalmente vinculada ao jornalismo diário, o que se chama popularmente de “hard News”. Um ombudsman traça um arco crítico sobre a cobertura que um jornal realiza. Transpor isso para o contexto de um jornal de poesia e literatura requereria algum engenho. Foi aí que encontrei o desafio que me motivou.

É que desconheço algum exemplo de ombudsman que tenha trabalhado com um material estético e não noticioso.

O RelevO inovou ao implantar os mandatos dos que me antecederam. Em conversas com o editor do jornal, Daniel Zanella me explicou que cada um seguiu uma linha própria, independente, dando-me total liberdade para desenvolver meu trabalho. Parti, então, dos seguintes referenciais como modelo crítico: o ensaio Forma É Poder, que Paulo Leminski publicou no saudoso Folhetim publicado pela Folha de São Paulo em 1982, a concepção do que é uma teoria crítica segundo Max Horkheimer e de uma noção que é cara à linha da Semiótica da Cultura, a intertextualidade, muitas vezes atribuída à Bakhtin, mas que na verdade é desenvolvida de fato por Julia Kristeva.

De Leminski extraio as seguintes afirmações: “Uma prática do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de desautomatizar. De produzir estranhamento. Distanciamento. É desmistificação da “objetividade”inscrita no discurso naturalista. Essa objetividade é falsa. Ela apenas reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização. Sua pretensão a “discurso absoluto” é totalitária”. Essa era sua concepção de uma linguagem crítica dentro do jornalismo cultural. Não há, portanto, segundo esse parâmetro, como ser “objetivo” no jornalismo cultural, a menos que não se queira ser acrítico (coisa que se vê em larga escala nesse modelo de jornalismo cultural como “prestação de serviço”, agenda, que vigora nas mazelas do mercado).

Ainda do poeta paranaense sigo o raciocínio do aforismo seguinte de seu ensaio: “Violação. Ruptura. Contravenção. INFRATURA. A poesia diz “eu acuso”. E denuncia a estrutura. A estrutura do Poder, emblematizada na “normalidade” da linguagem”. Poesia, portanto, é caso de exceção. Aquilo que foge às normas. Uma linguagem fluxo. Descodificação. Desterritorialização. Esse “eu acuso” de Leminski brilhantemente embutindo no enunciado a referência ao famoso Caso Dreyfus que marcou a história do jornalismo europeu a partir da leitura que Emile Zola fez dele.

Como a poesia realiza essa tarefa, então? Na minha concepção, exatamente pela dinâmica da intertextualidade, o terceiro parâmetro de nosso modelo crítico aqui para o RelevO. Intertextualidade é conversa entre textos culturais.

Nada que se escreve e publica é independente. Nada nesse sentido nasce de uma tábula rasa. Um grau zero da escrita, como diria Barthes. Existe toda uma rede de enunciados sobre o mesmo tema e de outros referentes afins que precede o corte que será feito pelo enunciado que antecipa e reage com este último. Aquilo que se pode chamar seguramente de historicidade.

É daí que entra a concepção de Horkheimer do que vem a ser uma teoria crítica. Em seu célebre texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, o filósofo alemão explica, entre outras coisas, que o que caracteriza uma teorização crítica é a possibilidade de se infletir uma perspectiva histórica sobre o objeto da crítica. Fazer crítica é, sobretudo, percorrer os agenciamentos do objeto em suas relações dadas pela perspectiva histórica. Aquilo que se percebe do objeto tal como ele se apresenta no quadro histórico no qual ele emerge e as linhas de derivação pelas quais esse objeto se desloca no devir do tempo.

Meu objeto é o RelevO como um todo. Não me sinto autorizado para realizar alguma crítica sobre a poética dos textos aqui publicados. Não poderia analisá-los como se notícia o fossem. Afinal, um ombudsman não faz crítica literária, senão uma espécie de media criticismo. Como tal, penso que minha função é colocar o que se constitui como publicação em relação à historicidade. Jamais eleger minhas convicções políticas como verdades, uma vez que não acredito ter convicção nenhuma sobre nada. Convicção só tem quem já parou de pensar.

Quero agradecer aqui, no corpo do texto mesmo, pelas observações do leitor Alexandre Cunha, especialmente a comparação com Gregório Duvivier. É isto que nos enche não de convicções, mas de um afeto que nos indica que estamos no caminho certo. Agora com relação ao fato de algum comentário sobrepor-se ao campo político, vamos pensar assim: desde que o oxigênio é uma necessidade comum a todo ser humano e não humano também, o próprio ato de respirar é um ato político. Só não existe política onde não existe mais vida. Xô, uruca!

Silvio Demétrio: “E”

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


É uma grande cilada. A ideia de concorrência que, na dimensão do senso comum, quase sempre fica restrita a um sentido de competição, de disputa. Essa é a superfície do termo que vigora pela repetição em uma quantidade considerável de momentos do cotidiano. É como quando pensamos políticos concorrendo a um cargo. Uma eleição é uma concorrência.

Da mesma forma, concorrem empresas no mercado. Espécies na natureza. Ideologias pelo poder. Concorremos na medida exata daquilo que coloca o outro como contradição. Como contrário. E como tal deve ser sobrepujado. Parafraseando Klausewitz sobre a guerra, é possível dizer que o mercado é a luta pela sobrevivência na natureza continuada por outros meios. Uma condição do “todos contra todos”.

Quanta pobreza.

Não há sentido algum em pensar nada relativo à arte e à cultura desse ponto de vista. Ainda mais quando o objeto e uma publicação ou outra. Não há competição. Não há disputa. Coisas como “Guimarães Rosa X Machado de Assis”. Houve um momento assim do jornalismo cultural brasileiro. Não há “melhor”. Não há “vencedor”. Tudo isso é uma tremenda de uma falsa questão.

A arte e a cultura formam sempre uma síntese conjuntiva – conceito que esta lá em O Anti-Édipo de Deluze e Guattari. O “E” agencia um termo ao outro. Tudo o mais é puro espírito de gincana. Coisa para quem nutre preferencias por quermesses. Diga me com quem competes que eu te direi que isso é uma besteira.

E uma das coisas que mais me cativa no RelevO é que ele e impermeável a esse espírito de gincana. Ninguém é nem quer ser melhor que ninguém. Aqui todos são melhores. Até os que não estão aqui. Até os que não acreditam nisso e são contra, porque uma síntese conjuntiva é assim. É um agenciamento maquínico do desejo. É algo que coloca as coisas para produzir.

O desejo é assim. Uma força que os pré-socráticos chamavam muitas vezes de amor – o império de Eros. Quem ama se liga. A conexão como procedimento. Se existe uma concorrência então é sob um novo sentido. Correr em companhia. Correr juntos. Correr “com”. Concorrer e colocar-se em movimento mutuo. Movimentar-se no plural. Co-mover-se.

A arte e a poesia não buscam outra coisa. Aquilo que se compreende por intermédio de uma comoção estética. O movimento, a pulsação que se estabelece e reverbera entre o coração da obra e daquele que a frui. É uma compreensão pelos sentidos. Não há como mensurar. Aqui a ordem do valor é puramente qualitativa. Antes de tudo, qualquer signo na arte é um qualissigno. Uma intensidade. Indomável completamente pela razão. Tal como uma experiência religiosa, incomunicável. Singular.

Singularidades não competem. Não se disputam. Apenas se afirmam em sua plena potência. É de singularidades que se constrói o múltiplo. Como qualquer relevo – a topologia como expressão da diferença, assim como na música acontece com os timbres (qualidade que torna único cada instrumento tal como única e cada voz).

Arte não se troca. Poesia não se quantifica. Não se pode entender nada em estética senão pelo viés do valor de uso. As singularidades como fundamento e historicidade. Só existe um mercado em relação a isso como algo externo, como uma lógica estrangeira que se impõe sobre a produção de quem trabalha o sentido como matéria prima.

É nessa dimensão que a arte e a poesia podem contribuir plenamente para uma volatilização desse panorama canhestro que vivemos nesses dias de muita política e tão pouca beleza. Uma pedagogia da diferença e do convício inclusivo. Chega de tanto mercado. Essa tristeza e solidão de quem quer ser melhor a qualquer custo. Ser singular é nunca ser só por se estar sempre no plural, na multiplicidade. Só existe paisagem para se ver quando há RelevO. Viva a Relevância de cada um, de todos. Viva a paciência do editor que esperou pela confusão deste que vos escreve para que o jornal contivesse também esse texto escrito a suor e sangue no começo de uma noite abafada de domingo sem inspiração e qualquer insight. Acima de tudo, viva a vontade de viver para além das sombras desse oco histórico no qual nos metemos. Só a arte liberta.

Silvio Demétrio: Em atrito com a pele do real

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Não há como não falar. No exato momento no qual escrevo esse texto opera-se uma disjunção entre o tempo cronológico e o tempo histórico em nosso pais. O inexorável transcorrer do dia a dia continua inabalado, mas a percepção e a perspectiva desse movimento como sentido histórico alterou-se com os últimos acontecimentos políticos no país.

Não consigo desviar desse obstáculo obsessivo. Tentei. A ideia era escrever sobre o por quê de se ler ainda no universo do impresso. Tecnologia, tempo real, convergência, alcance global, tudo conspira contra o impresso. Enfim, era para ser um texto abordando somente isto. E já é coisa muita. Porque o impresso resiste. E uma forma de resistência. E resistir à corrente do não sentido é a única forma de se produzir história, poesia e sentido.

A extração de Mallarme: “um coup de dés jamais n’abolira le hasard”. “Um lance de dados jamais abolira o acaso”. E aqui, em nosso caso, “coup” também pode ser traduzido por “golpe” (coup d’etat = golpe de estado). Quanta civilidade foi deteriorada nas redes sociais pela discussão sobre o que assistimos nesses dias ser ou não ser um golpe. Consumado agora já está. Sendo ou não sendo. E todo mundo dança nesse lance.

O que importa é “não abolir o acaso”. Do ocaso de uma transparência maior de nossas instituições cuidemos bem de preservar o improvável como limite. A velocidade da sorte de nossas liberdades que não se deixam capturar. O texto empapelado jamais desaparecera porque só se faz história impressa. Só se faz história com as marcas. Existe algo de indicial no impresso. Derrida atribui a escrita uma primazia sobre a fala por ter sua origem ligada a um sentido de demarcação. Toda escrita é territorial. Demarca um território. Uma fronteira. O papel da página como a película do real.

Mesmo que a página e o papel sejam simulados por uma matriz algébrica que você não percebe no branco da tela de um monitor. Essa película permanece. Resiste. Continuaremos produzindo e lendo as impressões desse mundo. Porque assim e diferente. Imprime-se o que se escreve para que disto algo fique. Uma demarcação sobre o deserto do acaso.

É daí que percebo uma ligação entre o tema que iria abordar nesse texto e a opacidade do momento histórico que me embaralha as ideias às percepções. O que vai ficar disso tudo? Quais as impressões, as marcas, as pistas? O registro ativo. Não um conjunto de narrativas. Opiniões qualquer um as tem. Mas há um jogo em forma de batalha na história: o embate entre a razão emancipatória e a razão instrumental.

Prevalece na história a primeira. As razoes instrumentais sempre se dissolvem em sua parcialidade. Que Curitiba se cure da “Republica de Curitiba”. Um rançoso e requentado separatismo sulista por debaixo de uma carapaça de desonestidade intelectual. Perversão mesmo. Um mccarthismo tupiniquim reeditado de forma palatável à classe média conservadora que sempre “marcha com Deus Pela Família”.

Quanta caretice ainda é suportável até que se perceba essa armadilha? Detesto, senão odeio, escrever com interrogações assim. É amador. Mas é que está sendo difícil produzir essa marca no tempo aqui nessa película do real. Nunca foi tão palpável perceber o que Adorno queria dizer com a expressão “o engodo das massas”. Deveríamos erigir um monumento naquela esquina próxima ao Teatro Guaíra na qual a atriz Letícia Sabatella foi hostilizada. Um monumento à coragem da mulher. Um marco sobre a cidade como um enunciado sobre uma página.

Marcar a felicidade de ainda se ter coragem. De se ter graça. De não ser triste. Essa Curitiba imersa em sensibilidade e mistério e que deve sobreviver ao mau gosto dos shoppings centers. Não podemos abolir o acaso de nossas esquinas. Deixar que nos roubem o sagrado direito de querer e de não querer. Ir e vir por onde quer que seja. Com os pés ou com a cabeça e a alma.

É assim que vejo uma resistência do impresso como algo fundamental. Alegoria de uma forma de ser. Possibilidade de vida. Porque lemos também com as mãos.

Elas fazem parte da moldura que estabelece uma continuidade entre a película do real da página e a nossa epiderme. Como dizia Valery, “o mais profundo é a pele”. Não abandonamos algumas coisas por simples hábito, é o argumento de

Umberto Eco para legar sua fé no livro impresso. É esse rocar de peles, o fino toque entre o mundo sensível e o inteligível que se dobra formando a figura de um leitor. Existe uma subjetivação da leitura que extrai sua forma do universo do impresso. Isso sempre permanecerá, mesmo que na aufhebung (supressão conservadora) de uma tela digital.

Acho que consegui chegar a alguma coisa com esse texto. Espero. Se assim não o foi, que o leitor e o RelevO me perdoem. Foi história demais nesses últimos dias. Até gripei. Saúde e sorte, sempre, para todos nós.