Gisele Barão: Três acontecimentos

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Ter uma obra recusada por uma editora ou mal avaliada por um crítico não deveria ser desestímulo para autores. A parcela de escritores bem-sucedidos (use a definição que preferir para este termo) que foi descoberta milagrosamente por grandes editoras ou especialistas é muito pequena. Quem acompanha publicações literárias com frequência, por exemplo, consegue notar a preferência destas por determinados estilos: alguns temas e maneiras de contar histórias se repetem, pois as escolhas são também orientadas por critérios pessoais mais do que técnicos, e não há grandes problemas nisso, a princípio. É assim que as coisas são.

Paralelamente, há quem encontre sua própria estratégia para ser notado ou cumprir expectativas de ação no meio literário, e o mês de novembro teve alguns exemplos interessantes. No dia 24, aconteceu em Curitiba a Augusta Publica, uma feira de publicações independentes feitas por mulheres. As produções de várias artistas, escritoras, editoras e designers puderam ser conhecidas pelo público. Essas pessoas não estão em reportagens de grandes jornais, ainda não foram estudadas, poucos conhecem sua rotina extenuante de trabalho e criação. Fora do circuito tradicional, elas criaram outro circuito.

O próprio mercado literário, que é heterogêneo, tem caminhos diferentes para alcançar o público. No dia 11, foi criada no Facebook a página Livrarias de Rua, que divulga informações sobre lojas pequenas, que não integram grandes redes. Em duas semanas, a página já havia apresentado quase 20 dicas, de diferentes estados brasileiros. Qualquer pessoa pode colaborar com sugestões de livrarias que valem a visita.

Leitores também se organizam. Se falta tempo e estímulo para atender à lista de metas de leitura que costumamos fazer e não cumprir, há quem dê um jeito nisso. No início de 2018, um clube de leitura propôs um desafio entre os participantes: todos deveriam concluir Anna Kariênina, clássico de Liev Tolstói, até o fim do ano. Mês a mês, eles eram relembrados da meta e compartilhavam seu avanço sobre as páginas. Em novembro, encerraram o desafio com um encontro para trocar impressões sobre a obra. Em uma livraria de rua.

Com esse pequeno noticiário, quero dizer que coisas boas podem acontecer pela literatura mesmo em circunstâncias não tão favoráveis. Sempre haverá quem saiba recitar um poema de memória, presenteie um amigo com o livro de uma pequena editora, assine um jornal literário gratuito ou estimule outras pessoas a ler. É assim que as coisas são.

Gisele Barão: Outro país, outros tempos

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Outubro de 2018 estará para sempre marcado como um dos períodos mais tensos da história recente do Brasil. No RelevO, nem tanto. A História não esquece: naturalmente, um dia os jornais dessa época serão analisados. Lá no futuro (se tivermos futuro) algum pesquisador vai questionar: o que os impressos literários publicaram durante aquele importante marco brasileiro? Se nosso hipotético pesquisador resolver folhear este jornal, pensará que tratava-se de outro país, outros tempos. 

Em outubro de 2018, caberia publicar textos com cansativas descrições de personagens mulheres minimizadas em enredos fantasiosos? No meu outubro de 2018, não. Caberia publicar nas páginas de destaque, no miolo do jornal, nada mais do que um alô vindo diretamente das profundezas das inseguranças masculinas? No meu outubro de 2018, jamais. 

Vamos olhar para os lados, ou para frente. No mesmo mês, o Suplemento Pernambuco estampou na capa a frase “Uma ditadura nunca acaba”. O texto principal era de Ricardo Lísias, que ocupou o espaço de ombudsman do RelevO antes de mim. No artigo, ele relembrou obras fundamentais para a cultura e democracia brasileiras. No mesmo mês, vários escritores se posicionaram, diante do contexto atual: Alice Ruiz, Veronica Stigger, Nuno Ramos, João Paulo Cuenca, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Laura Erber, Vanessa Barbara, Marcelo Rubens Paiva. A lista é enorme. Literatura, política e memória caminham juntas.

De trás para frente, a edição passada começou bem: na contracapa, havia um texto de Susan Sontag, extraído do livro Diante da dor dos outros. Vejam só, ela tentou nos avisar. Em seguida, o texto de Mariana Carrara, a poesia de Julia Bac, e em uma ou outra página, mais textos de boa qualidade. Richard Roch deu um aceno para o tema. Vale registrar também que a coluna Maidan representa hoje o maior compromisso deste jornal com a atualidade. Mas não pode ficar sozinha nisso.

É fato: em qualquer circunstância, pautar a cultura já é sinal de dignidade. Enquanto isso, grandes jornais e emissoras de TV do Brasil silenciaram ou revelaram estar do pior lado desse caos. Assim, o olhar dos leitores começa a circular, na expectativa de encontrar eco em outros meios. Nas publicações independentes, por exemplo.

O RelevO deixou passar a oportunidade de produzir uma edição de colecionador, como executou tão prontamente durante a Copa do Mundo. Se o tipo de produção com a qual estamos sonhando aqui não chega à caixa de e-mails dos editores, é o caso de provocá-la a chegar. Editar um periódico independente é trabalho árduo, ingrato e, por si só, um ato de resistência. Mas essa tarefa exige um olho lá no futuro. Se tivermos futuro.

Gisele Barão: Políticas públicas

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Quando nos tornamos entusiastas da literatura e dos livros, há uma lista de “bandeiras” para carregar além do ato da leitura em si. A instabilidade do mercado editorial, a visibilidade de novos autores e de pequenas editoras, a baixa remuneração dos profissionais, a qualidade dos textos ou da crítica são alguns temas que também merecem atenção.

É preciso reconhecer, por exemplo, que visitar bibliotecas, livrarias, sebos e feiras nos proporciona um tipo de experiência cultural insubstituível. Nós criamos uma “cartografia sentimental” (para usar um termo explorado por pesquisadores da área). A falência de uma livraria, por exemplo, nos atinge como leitores, já que com ela perdemos, inclusive, um possível ponto de distribuição de periódicos. E há quem conheça jornais ou revistas de literatura apenas porque frequenta tais ambientes.

A edição de setembro do RelevO publicou uma carta do leitor que se aproxima dessa ideia. “Se uma guria ou piá forem todos os meses na biblioteca pública da sua cidade buscar um exemplar do RelevO pra ler de cabo a rabo, e eu puder proporcionar isso, já tô felizona”. O depoimento da leitora ajuda a explicar por que, mesmo com distribuição gratuita, o jornal precisa de assinantes: para proporcionar experiências para mais pessoas, não somente para quem recebe o impresso em casa. Na coluna Maidan da mesma edição, encontramos outra questão preocupante: Mitie Taketani, a curadora da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, alerta para a invisibilidade desse tipo de narrativa, seja em editais públicos, feiras ou editoras.

E já que defendemos a valorização da produção literária em diversos âmbitos, acrescento que uma das formas de incentivo é por meio da informação, da memória. Nesse aspecto, sinto falta de ver no jornal mais informações sobre os autores que colaboram em cada edição. De que cidade eles são? Já têm alguma obra publicada? Hoje, não sabemos mais do que seus nomes. Se um dia o RelevO se tornar objeto de estudo acadêmico, o pesquisador terá dificuldades para entender qual é o perfil dos autores publicados. Incluir esses dados seria uma contribuição à história do jornal e aos escritores.

Fortalecer os periódicos literários, remunerar os autores (sei que o RelevO tem essa pretensão) e cobrar cada vez mais qualidade das produções são caminhos necessários. Políticas públicas, quando existem, também podem funcionar como estímulo à produção e à circulação de bens culturais. Mas, infelizmente, neste caso andamos a passos lentos: sugiro uma busca por tópicos relacionados ao incentivo à leitura nos planos de governo dos candidatos à Presidência da República. Já adianto que o leitor vai se decepcionar.

 

Da redação:

Gisele Barão, passaremos, a partir da próxima edição, a publicar um pequeno perfil de cada colaborador, com cidade de nascimento, cidade atual, principal livro ou espaço de divulgação do trabalho. Não fizemos isso antes por mera implicância com os autores/as que nos mandam, em vez de informações sobre o próprio trabalho, dicas de lugares para viajar ou nos contam sobre seus apreços por vinhos baratos ou por animais de pequeno porte. Vamos resolver isso com um pequeno guia de envio de bios no site.

Gisele Barão: Clichês

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 10 de agosto, a escritora, professora e crítica literária Noemi Jaff e esteve em Curitiba para participar do Litercultura. Além de apresentar uma densa lista de sugestões de leitura e descrever sua própria trajetória e formação, Noemi fez alguns comentários sobre o processo de escrita. A palestra toda me fez pensar em algumas coisas que decidi compartilhar neste espaço. 

A primeira dica é sobre como avaliar o que escrevemos. Basicamente, Noemi defende que, se você terminar uma frase e ela te deixar orgulhoso e admirado, apaixonado por si mesmo, é o caso de cortá-la do texto. Provavelmente está ruim. Isso porque a literatura não precisa ter compromisso com o belo. O autor não deve se preocupar em mostrar ao leitor que escreve bem. Ela explica melhor a ideia em um post no blog da Companhia das Letras: “Algo soa mal, algo escapa da fluência da leitura, do prazer do texto, de sua verdade textual, quando um personagem diz algo mais belo do que naturalmente diria ou quando o leitor se intimida diante das cambalhotas lírico-frasais do autor”. 

Na palestra, a escritora também disse que é necessário fazer exercícios mentais para evitar os clichês. Caso contrário, de repente nos pegamos escrevendo “árvore frondosa”, “frio e calculista”, ou qualquer coisa assim. Seria algo semelhante, ela explica, ao que George Perec fez em O sumiço (1969), livro que escreveu sem utilizar a letra “e”. São tentativas de evitar construções, linguagens e estilos viciados.

Neste ponto eu incluo uma reflexão que não é nova, mas serve para o momento: não devemos também fazer exercícios mentais para evitar temas que são lugares-comuns ou abordagens clichês sobre eles? Na edição de agosto do RelevO alguns textos parecem se esforçar nesse sentido. Outros, não. Um tema perigoso que podemos usar como exemplo: “crises existenciais de um escritor”. Há quem escreva sobre isso muito bem, inclusive autores paranaenses. Também tem O ano em que vivi de literatura, livro do Paulo Scott (Editora Foz, 2015), que dá uma boa desenrolada no assunto. Mas, dependendo da abordagem, a impressão é de que estamos mesmo diante de um clichê. 

Obviamente não cabe a ninguém determinar sobre o que se deve escrever ou não. Estamos falando sobre exercícios, tentativas. Se escrever é propor desafios a si mesmo, publicar significa desafiar o leitor, provocá-lo. O RelevO parece executar bem essa função.

Gisele Barão: Apostas

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma das primeiras coisas que nos faz pegar um exemplar de jornal que não conhecemos, ou conhecemos muito pouco, e está ali disponível em algum ponto de distribuição, é a sua capacidade de nos atrair visualmente. O leitor distraído precisa se sentir instigado a levar um jornal para casa, mesmo que a capa lhe ofereça quase nenhuma informação sobre o conteúdo. O RelevO, na minha avaliação, é muito eficiente nisso. A capa não nos avisa o que vamos encontrar nas páginas internas. Talvez uma boa parcela de leitores deste impresso não o conheceu porque ouviu alguém comentar, e sim porque frequenta algum ponto de distribuição o jornal, descobriu um exemplar e gostou. 

Tudo isso para elogiar a capa da edição de julho, com uma aquarela de Marcos Beccari. Sei que há tempos o RelevO capricha nesse quesito. Ele desperta curiosidade, dá vontade de ler sem saber o que vai encontrar, porque o projeto gráfico é bem pensado e interpreto isso como um trabalho em prol da literatura. Dava até para investir um pouco mais em ilustração, nos lugares certos. Elas podem ser uma saída melhor do que unir, nas mesmas páginas, dois textos bem diferentes entre si. Poesia não serve para tapar espaço em branco.

Quero dizer também que a poesia é para o que nasce. Não dá muito certo transformá-la em outro tipo de texto. Consigo compreender e gostar da ideia de ver outras manifestações artísticas inspiradas em poesias, mas não a ideia de usar um poema já clássico para criar um texto de outro estilo literário, como vi acontecer na edição de julho. Para mim, a alma da poesia é esse jeito meio torto e conciso de contar uma história, encerrar um assunto ali. E que elas fiquem assim na nossa memória. Opinião da ombudsman — um tipo específico de leitora e sempre em formação.

Na edição passada, as páginas do meio, com a Copa acabando no dia 15 de julho, ficaram velhas um pouco rápido. E tive minhas dúvidas se o evento merecia mesmo esse espaço do jornal, ainda que em tom de humor. De maneira geral, essa seção cumpre muito bem a função de respiro entre os textos. Talvez seja a “segunda capa” do RelevO: a gente escolhe o exemplar pela capa, depois dá aquela olhada nas páginas do meio para avaliar o conteúdo. E quem leva embora depois disso?

Alguns dos acertos de julho: o ótimo trecho retirado do livro de Antoine Compagnon. Um bom serviço de seleção e cujo tema está sintonizado com o debate que o impresso nos provoca a fazer. Na linha dos trechos de livros, “Viagem ao Volga” foi uma escolha interessante, talvez por representar um estilo mais raro no jornal. “Segundas chances”, de Lesley Nneka Arimah, também vale a leitura. Na escrita e na publicação, é sempre preciso ter critério. O RelevO faz apostas.

Gisele Barão: Editar é uma forma de saber literário

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O RelevO mostra que literatura é um assunto que nunca acaba. São inúmeras as possibilidades de produção e de estilo dentro do jornal, e a edição de junho apenas reforça isso. Escrever nunca é fácil; é um trabalho penoso para o qual dedicamos cada vez menos tempo. O ser humano que consegue escrever com certa regularidade já merece o nosso apreço. Enfiar a escrita no meio de todas as coisas que precisamos fazer para nos manter neste mundo é uma guerra. E tudo isso sob o mantra “ninguém se importa” ecoando a cada batida nas teclas. Pode ser desmotivante, mas pode ser um combustível também. 

A edição de junho do RelevO fica especialmente boa a partir do texto de André Cáceres e Bruna Meneguetti, “Parada 4 – Avenida Alcântara Machado”. Isso não quer dizer que o que vem antes não agrada. A carta de uma leitora, por exemplo, me prendeu muito mais do que alguns conteúdos seguintes. Temos também uma entrevista na medida certa sobre HQ e o miolo do jornal, sempre cativante. Mas, da página 17 em diante, os textos parecem convergir.

Em “Parada 4 – Avenida Alcântara Machado”, o tema me fisgou. Para mim, viagens de ônibus, assim como as salas de aula, são grandes laboratórios da humanidade. No restante do tempo estamos encenando. Contudo, nosso comportamento como aluno e como passageiro de um ônibus nos revela. O olhar de um professor sobre nós, ou do cobrador do ônibus — personagem central no texto em questão — raramente se equivocam. É bom falar um pouco sobre coisas reais.

Depois, “A língua, o asterisco e a natureza da sardinha”, de Arzírio Cardoso, vem com uma simplicidade… que eu imagino ser difícil de fazer. Uma das magias da literatura é a gente desconhecer por completo as condições em que o escritor produziu aquilo tudo. E, de qualquer forma, saiu. Está ali no papel, e nos parece simples. Nos encanta sem sabermos direito de onde vem. Isso é demais. 

Viro a página e Elstor Hanzen me comove novamente com a sacada sobre as relações possíveis entre o pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche e do compositor brasileiro Belchior. De novo, a experiência de coisas reais. É uma perspectiva inédita? Não. Ainda assim vale. Vale publicar no RelevO. Ler, discordar, depois concordar, encerrar sem saber se gostou ou não. Não importa, tudo é experiência. E aí encerramos com Diana Joucovski. Um texto forte num local bem escolhido do jornal. Editar também é uma forma de saber literário, não é? Tem metafísica nessa história de escrever, de publicar jornal de literatura. Mas tem muito da vida, o que, para Belchior, é muito pior. É disso que a gente gosta.

Gisele Barão

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Somente em Ponta Grossa (PR), onde moro e trabalho como jornalista e professora de Comunicação, há ao menos quatro clubes de leitura. Todo mês, essas pessoas leem um novo livro, reúnem-se e conversam sobre ele. Para uma cidade com aproximadamente 340 mil habitantes, sempre achei um bom número. Mas ao receber o convite para assumir a função de ombudsman do RelevO, de repente me pareceu pouco. Por que não há clubes de leitura de jornais literários? 

Imagine um grupo que promova reuniões para ler o RelevO ou outro impresso da área e dar pitaco sobre a qualidade da produção. Digo isso também por interesse próprio. É que qualquer leitura fica melhor quando compartilhada com alguém. A vantagem do ombudsman é ter acesso às cartas que os leitores enviam ao jornal; eles são o nosso clube. Melhoram nossa leitura das coisas quando revelam outro ponto de vista, mesmo que não conversem entre si. 

Dependendo das suas condições e características como autor, talvez ninguém se importe mesmo com a sua produção literária. Talvez as cartas dos leitores sejam negativas sobre ela. Mas você não para de escrever, não é? Porque, em certa medida, existe sim um clube, e é isso que vale. Há quem aguarde uma publicação apenas para não gostar dos textos ou simplesmente para não se importar. E tá tudo bem. A gente gosta mesmo é de ter uma pré-seleção, uma indicação sobre o que deve ser lido. Com tanta gente escrevendo neste mundo, para onde podemos olhar com mais atenção?

Escrevo resenhas de livros há três anos para outro impresso, e confesso que poucas vezes busquei conhecer um autor estreante. Talvez os leitores tenham medo de arriscar. Há tantas obras clássicas na fila que nos falta tempo (ou uma gestão mais inteligente do tempo). Mas uma dúvida me provoca: em que ponto da vida a gente deixa de querer conhecer novos escritores? E por quê? Estou animada para percorrer esse breve caminho ao encontro de autores que, em grande parte, não conheço. E orgulhosa por ter o RelevO como guia.

Ricardo Lísias: Até logo!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma ou duas colunas antes dessa, defendi a impossibilidade de um professor de literatura afirmar que um aluno estaria “lendo” um texto literário erradamente. Como disse, cada um constrói um sentido conforme muitos fatores diferentes, alguns bastante pessoais. Todo mundo, por exemplo, acaba transportando sua história de vida para a interpretação de um poema. Aceitar uma leitura, mas não outra seria, dessa forma, dizer que experiências são mais ou menos válidas. Não é possível.

Na minha opinião, pode-se corrigir apenas a redação de um aluno. Muitas vezes ele não consegue se expressar com clareza. Com algum esforço – em alguns casos com muito esforço –, o professor pode sugerir novas maneiras de escrever, sanar vícios e oferecer estruturas argumentativas mais eficazes. 

Não tenho dúvidas disso. No entanto, acabei achando meu texto incompleto. Recebi algumas mensagens com perguntas. Uma delas me deixou bastante pensativo: e se um aluno, durante uma determinada interpretação, aparecer com uma interpretação racista? O professor terá ou não legitimidade para contestá-lo?

Acredito que sim. É perfeitamente razoável a discussão sobre o uso de textos discriminatórios em sala de aula de um autor como Monteiro Lobato. Entendo os grupos que acreditam que textos dessa natureza não deveriam ser usados. Eu não os usaria em uma aula do Ensino Fundamental, por exemplo. De uma forma ou de outra, se um professor optar por levar aos estudantes um texto racista, parece claro que o assunto deve ser a priori discutido.

Mas não era disso que eu estava falando. Um aluno talvez revele sentimentos racistas ao interpretar um poema. Nesse caso, o professor pode e deve intervir, no sentido óbvio de garantir a preponderância dos direitos humanos diante de quaisquer outras questões. Aqui a construção do conhecimento se dá sempre a partir do universo prévio de cada um dos alunos. Sem dúvida, para muitos leitores desse texto já deve ter aparecido o nome de Paulo Freire.

É isso. As ideias do nosso maior intelectual não se aplicam apenas à alfabetização. Todo o processo escolar, nos seus mais diferentes graus, precisa partir do universo do próprio estudante. Dele em diante, com certeza pode haver não apenas a formação de leitores aptos a expressar seus próprios sentidos, mas para construir um mundo mais próximo do que preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Esse é meu último texto como ombudsman. Agradeço a leitura de todos. Foi divertido e instrutivo. Quanto ao ataque histérico do secretário do cardeal Ratzinger na página ao lado, acho que vou deixar passar. Segundo ele, as coisas vão começar a dar errado para mim. Aguardo ansioso esse dia. O coroinha está mal informado, mas me deixou com medo: buuuuuuuuuuuuu.

Ricardo Lísias: A polícia da literatura e as polícias

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Outro dia recebi um comentário feito no Twitter sobre uma das minhas últimas colunas para o RelevO. Para indicar constrangimento ou um certo desespero cafona, a pessoa reproduzia sem aspas algo que eu teria dito aqui. Embaixo colocava a imagem de uma mulher com o rosto em desespero, as mãos na cabeça e um cigarro entre os dedos e o cabelo, quase colocando fogo no loiro oxigenado. É uma estética dos anos 1980. O espanto se dá porque eu teria dito que o “cânone literário é só reflexo do poder da classe privilegiada”. As aspas agora são minhas e indicam o que o tuiteiro afirma que eu afirmei. 

Enfim, se colocada no contexto da coluna, minha afirmação não tem absolutamente nada demais. Ela apenas ecoa as discussões de uma crítica que vai de Walter Benjamin a Jacques Derrida, passa por Silviano Santiago e Roberto Schwarz, Richard Rorty e seja lá qual outro nome o leitor quiser. Trata-se de uma das principais discussões das últimas décadas não apenas na teoria literária como em todo o pensamento de ciências humanas. Eu afirmei uma banalidade.

Como se pode ver, a figura não tem noção de coisa alguma. Trata-se de um fenômeno muito comum no mundo contemporâneo: sem nenhum conhecimento, fulano vai a uma rede social, diz qualquer negócio e logo uma manada o segue, engrossando o caldo do besteirol. Meu exemplo é singelo e na verdade serve apenas para mostrar que comportamentos como o de espalhar que uma militante de direitos humanos tinha ligação com o Comando Vermelho e uma exposição de arte promove pedofilia estão muito mais próximos da gente do que às vezes parece. E do mesmo jeito, a figura que acha estar defendendo algum tipo de tradição que jamais existiu para além de sua empáfia está bem mais perto do fascismo, como dizem Umberto Eco e Timothy Snider, do que às vezes parece.

No início de março, estive em um debate de lançamento de uma revista sobre a ditadura militar brasileira. Conversamos eu, o MC Leonardo, responsável por grandes movimentos culturais em algumas comunidades cariocas, e Rick Goodwin, jornalista que participou da equipe que criou e fez o Pasquim, um dos nossos últimos espaços de resistência verdadeira à barbárie na imprensa. Dois dias depois, enquanto esperava a esposa em uma estação de trem, Goodwin foi espancado pela polícia carioca e perdeu dois dentes. Até agora ninguém sabe os motivos da agressão. 

O que dá força e motivação para a polícia fazer isso e coisas ainda piores, como as contínuas chacinas e o genocídio da população negra e pobre do Brasil, são os micropoliciamentos que as pessoas realizam por aí. É um clichê, eu sei, mas às vezes eles servem muito bem: primeiro, é a gente que tem que mudar.

Ricardo Lísias: Para os professores de literatura

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Discordei algumas vezes das reclamações dos editores do RelevO quanto à produção do jornal. Agora, quero concordar: vi uma nota na página do jornal do Facebook sobre a situação dos Correios. Parece de fato a pior possível. Não me lembro de ver uma empresa estatal ser sucateada tão rápido. Todos conhecemos os reais propósitos do governo de Michel Temer. Obviamente, estão fazendo com que a empresa valha o mínimo possível, para depois vendê-la barato aos donos do dinheiro que o mantém em um posto que ele jamais deveria ter ocupado. Mas o caso dos Correios é escancarado demais. É lamentável, como tudo que Temer faz.

Vou ocupar o espaço dessa vez para fazer um balanço das reações às minhas leituras. Uma agressão até pode gerar algum raciocínio, mas não é o caso. Quero apenas observar a afirmação de que não entendi esse e aquele texto. Um leitor achou que eu deveria conhecer um pouco melhor uma das letras de Neil Young antes de afirmar isso ou aquilo. Para ele, então, a interpretação de um trecho deve responder ao restante da obra. Não posso, por exemplo, pegar um parágrafo de um livro e falar sobre ele o que eu quiser, se a totalidade não confirmar a parte menor.

Salvo engano, mais de um leitor acusou o fato de eu ter errado o gênero de um texto. Eu deveria ter entendido que não se tratava de ficção, quando li como um conto. Para esses leitores, existe algo pré-definido em um texto e eu tenho que obedecer a essa determinante. Do contrário, eu não entendo o texto direito.

De forma nenhuma. Não vou obedecer a determinante alguma. Não é o autor de um texto que vai me dizer se ele é de ficção ou não, do mesmo jeito que não será a totalidade de uma obra que me impedirá de achar um sentido para um trecho em separado. Quem manda na minha leitura sou eu, apenas eu e leio do jeito que quero.

Naturalmente, temos aqui um impasse: se é assim, esses leitores também estão certos ao afirmar que não entendi nada, já que eles não têm a obrigação de acatar a forma como leio? Não me resta dúvida. Estão certíssimos. Mas se eles estão certos ao dizer que estou errado, então estou errado ao dizer que eles não estão certos? 

Seria ocioso continuar a brincadeira. Jorge Luis Borges já percebeu isso faz tempo. Quando estamos diante da arte, não existe nenhum tipo de opinião errada. No máximo, alguns se expressam melhor do que outros. Na verdade, essa coluna é para os professores de literatura. Vários estão lendo esse texto. Não digam aos seus alunos, por favor, que eles não entenderam um poema. Vocês não sabem que tipo de bagagem aquela menina traz para dizer que “A máquina do mundo” fala do avô dela. 

Um professor que diz para um aluno que ele não entendeu uma obra literária é um autoritário. Não é possível ensinar o sentido de um texto para ninguém. Só dá para explicar que o estudante escreveu uma frase pouco clara, sem sentido ou truncada. O que dá para fazer é deixar as pessoas falarem o que elas bem entenderem. Se a gente não aceitar a interpretação de um adolescente para um poema, podemos estar agredindo algo de muito íntimo e importante para ele. Se não isso, no mínimo vamos afastá-lo da literatura. Imagino não ser o caso de ninguém aqui…

Ricardo Lísias: Esqueci

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Por gosto pelo experimento, resolvi que escreveria minha página para o RelevO de fevereiro assim que o primeiro texto da edição de janeiro me chamasse atenção. Como já tinha comentado o editorial e as cartas antes, decidi que pularia essas seções. Enfim, passei para a página 8, a primeira a que me detive. Acabei me desviando um pouco e fui atrás de uma das HQs citadas na introdução à entrevista de DW Ribatski. 

Quando voltei, o texto da página 10, “Meu querido melanoma”, não deixou muito espaço para indiferença. Mais uma vez, fechei a janela e saí atrás de referências. Fiquei bastante tempo navegando daqui para ali. Esqueci o que tinha vindo fazer aqui no computador. Ao me lembrar, já tinha ficado muito tarde e repeti para mim mesmo que continuaria no dia seguinte.

Na terceira tentativa, li o que me faltava do jornal de uma vez só. Eu realmente tinha me decidido a escrever esse texto naquela hora. Minha primeira distração foi a risada que me causou o texto de Felipe Pauluk. Esqueci de tudo outra vez ao ler a matéria sobre a retomada de Hilda Hilst. Acredito que estamos no momento histórico mais adequado para a leitura dessa obra estranha e eloquente. É uma autora que se livrou de qualquer compromisso que não seja a realização de um projeto estético amplo: nem mesmo a fronteira dos gêneros literários a intimidava. Tudo ali é deriva, rescaldo e liberdade.

Há uma ligação sutil entre a matéria sobre Hilda Hilst e o texto “A demonização da mulher pública”, mas tentar desenvolvê-la aqui não seria muito honesto comigo mesmo: daria a impressão de que o meu experimento inicial foi bem-sucedido. Como já ficou claro, não foi. Outra vez eu tinha me esquecido da tarefa de escrever essa coluna. Tenho lido sempre que posso os textos de Carol Rodrigues. A sua lista de compras é ao mesmo tempo divertida e intrigante. É o tipo de texto que deixa o leitor vermelho por estar gostando tanto. 

Terminei essa terceira leitura indo atrás de outros textos de Marin Sorescu. Na hora, o poema lembrou-me os melhores trabalhos de Aglaja Veteranyi. Só hoje, quatro dias depois, lembrei-me de que tinha esquecido de escrever essa coluna. Fiz uma mini antologia pessoal de Sorescu e estava com ela. A edição de janeiro ficou tão boa que a gente até esquece que está lendo, mas não do que está sendo lido. Penso que talvez seja essa uma boa definição de publicação muito bem-sucedida.

Ricardo Lísias: Argumentar é melhor

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Uma vez, na plateia de uma conversa entre cinco escritores latino-americanos que estava começando em Guadalajara, no México, espantei-me ao ouvir a declaração do mediador: o brasileiro não precisa se preocupar e pode discordar dos outros, se quiser. Eu tinha ido justamente porque gosto muito da obra do meu conterrâneo e lia naquele momento, bem admirado, o livro de um peruano que estaria à mesa. De fato, os brasileiros somos conhecidos internacionalmente por nunca discordar de ninguém. Depois, em Frankfurt, um tradutor observou em um debate que o brasileiro presente havia concordado com uma opinião e depois com o contrário dela.

Na mesma feira de Guadalajara, aliás, achei que um escritor, de tão exaltado, iria de fato dar uns murros no seu colega de mesa. Por mais força que faça, nesse caso minha memória não está tão afiada. Do interlocutor eu me lembro: era Mario Vargas Llosa, que havia acabado de ganhar o Prêmio Nobel. Uma hora depois, com a feira já fechada, dou de cara com os dois conversando em um restaurante. Parece que não levaram a mal.

Não é só na literatura. Outro dia vi um professor comentando que no café da universidade um colega seu lhe dissera, muito espantado, que no meio de uma entrevista uma jornalista espanhola havia discordado de uma opinião, lançando um argumento contrário. Para ele, a atitude soara como ofensiva. 

Quando recebi o convite para fazer uma coluna mensal no RelevO, sempre comentando o conteúdo da edição anterior, achei a ideia ótima. Eu já o conhecia e gostava do acúmulo diferente de vozes e formas. Talvez achasse o que dizer. Até hoje, não conheço pessoalmente nenhum dos responsáveis pelo jornal. Quem sabe algum dia a gente tome um café ou, dependendo do horário, um vinho. Sou paulistano, mas não gosto de chope.

No começo desse ano, falei uma frase ou duas a um jornalista sobre história em quadrinhos. Um pouco depois da publicação da matéria, um tradutor especializado mostrou o tamanho da bobagem que eu tinha dito. A estrutura da fala dele era a seguinte: Ricardo, você está errado, pois [e seguiam alguns argumentos]. De fato, eu me equivoquei.

Não vou conseguir vencer o assunto em uma coluna apenas. Acho que, no nosso momento histórico, é preciso muito cuidado para não falar demais. Tem muita gente dando bom dia a cavalo. Mesmo assim, paro um minuto para tentar entender como alguém pode escrever uma carta para um jornal dizendo que está cancelando sua assinatura porque agora, além de piadas, há um ombudsman. Enfim, logo se vê que é alguém de mau humor.

Até onde sei, há cartas mais agressivas dirigidas a mim. Estou meio acostumado. No caso, porém, não seria mais razoável que fossem apresentados argumentos contra as minhas ideias? Pelo jeito, a assinatura foi cancelada porque alguém discorda de algo que a pessoa gostava e isso é inadmissível. Como se sabe, sociedades sem tolerância para a crítica estão muito propensas a aceitarem ser controladas por pessoas que não gostam mesmo que os outros pensem. 

Imagino em quem essa gente que não argumenta, apenas afirma, vai votar em 2018.

Ricardo Lísias: Confusão

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Devo confessar que fiquei paralisado diante do editorial do último número do RelevO. A edição de novembro trouxe um conjunto de textos enfeixados sob um tema: a negritude, para usar um termo da própria apresentação dos editores. Edições temáticas podem ser interessantes também para contornar a fugacidade que, por definição, atinge os jornais. Um pesquisador irá procurá-lo daqui alguns anos. Os estudantes podem, desde já, usar a edição como fonte e matéria de informação. Os leitores, enfim, acabamos mais bem embasados se o tema nos interessar. Periódicos temáticos sempre me agradaram muito – por isso, aliás, lamento tanto o fim da circulação da revista Granta no Brasil.

Achei que na desnecessária intenção de se justificar, o editorial acabou se confundindo todo e lançando argumentos para lá de ultrapassados. O primeiro parágrafo, por exemplo, fala da tal “qualidade literária”. Ela não existe. O que se conhece por “cânone” é basicamente a imposição de grupos que, por ocupar espaços revestidos de poder para tanto, determinam critérios que incluem alguns textos e excluem outros. Trata-se de uma operação de violência. 

A citação de Campos de Carvalho veio bem a calhar: há algo de nonsense em dizer que “a derrota é certa”. Eu não acho. A edição está ótima, mas tem um editorial muito defensivo. As pessoas que digam o que quiserem. Se os editores admitem que fazer a seleção para o jornal é um ato crítico, criar argumentos para classificar a qualidade dos textos dele também é. Nós e os outros temos todo o direito de sermos igualmente críticos.

Já a citação de Machado de Assis me pareceu quase uma esperteza. Lançar mão do nosso maior escritor é um lance de segurança. Eu discordo do que ele diz: não acho que seja possível existir uma consciência “tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas”. Quanto a Henry James, fico com um meio termo. Penso, como ele, que qualquer experiência nunca é completa. Meu texto não vai dizer tudo o que eu quero, então ele será sempre limitado, ao contrário do que ele diz depois.

O editorial derrapa mesmo no final, quando diz que acredita ter ultrapassado o “arvoredo ideológico”. É o contrário. Se houve um ato crítico para a seleção de um tema, a única coisa que se impôs foi uma ideologia. Não há problema nenhum nisso e não poderia ser diferente. A ideologia não “priva o olhar de maior pujança crítica”, mas sim o torna menos cínico: até hoje quase que só homens brancos tiveram a possibilidade de ver seus textos medianos e chapa-branca serem publicados e, muitas vezes, considerados bem melhores do que são. No Brasil contemporâneo, é batata, como diz meu vizinho. Se desde o início tivesse ficado claro que não há nada nisso que não seja ideologia, quem sabe essa violência tivesse sido ao menos controlada um pouco.

De resto, a edição ficou excelente.

Ricardo Lísias: Win & Rock in Rio

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A edição de outubro do RelevO parece ter aprimorado algo que se mostrou um grande acerto no número anterior: as páginas centrais. O uso do humor para criticar a tendência de infantilização e de mercantilização das questões psicológicas contemporâneas foi um enorme acerto, como já tinha sido com os emails que resumiam a politicagem e a agressividade preponderantes no “meio literário”. Agora ficou ainda melhor e mais divertido, o que já deixa expectativa para os próximos. William Winner é uma grande personagem.

Do mesmo jeito, os poemas parecem ter chegado a um equilíbrio e me pareceram bem escolhidos. Outro destaque eu deixaria com a apresentação do trabalho de Robson Vilalba por Ben-Hur Demeneck, bem realizado e, ao que tudo indica, Vilalba ainda vai fazer coisas muito boas. O que eu conheço da obra dele parece das melhores produções do gênero, infelizmente ainda muito pouco praticado entre nós.

Eu esperava mais, no entanto, dos textos propriamente ensaísticos. Compreendo que uma análise do Rock in Rio possa comportar algum tipo de irreverência. Mas, diante da edição desse ano, cabia mesmo apenas a brincadeira? De longe, o menor dos problemas era a presença ali de músicos que, talvez, não fossem exatamente roqueiros. Do mesmo jeito, é verdade que nomes como “Rock in Rio USA” ou “Rock in Rio Lisboa” são cafonas, para dizer o mínimo.

O festival de 2017 foi realizado em uma cidade sitiada. Enquanto ocorria, o exército cercava diversos bairros que estavam no trajeto dos hotéis ao show. Milhares de pessoas viram seu direito de ir e vir cerceado, uma mesma quantidade de crianças não pôde ir à escola, o que aliás está se tornando um fato cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. Quantas pessoas foram assassinadas durante o Rock in Rio? Uma das universidades mais importantes do país, a UERJ, ficou agonizando enquanto o festival acontecia.

Aliás, a criação de uma bolha para a classe social privilegiada reproduziu o que já tinha acontecido durante as Olimpíadas. Como agora alguns dos responsáveis pela tragédia humanitária que se tornou a capital carioca estão presos, parece que se perdeu um pouco do pudor dos Jogos. Dessa vez, a calmaria ficou mesmo restrita às arquibancadas. Para o resto da população, foi o salve-se quem puder diário.

Considerando, por fim, que boa parte do rock sempre esteve relacionada a questões políticas – e nisso o primeiro Rock in Rio foi notável –, uma brincadeira que anima a conversa com os amigos no bar não é o mais adequado para discutir os verdadeiros problemas que cercaram o enorme evento em um jornal impresso dirigido ao público literário. O mundo não foi tão livre durante o festival, como queria Neil Young, que aliás já esteve em uma das edições e arrasou. E é por isso que faltou rock, não por causa desse ou daquele músico ou estilo mais deslocados.

Ricardo Lísias: Incômodo

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acabei em uma posição incômoda. Eu deveria, para cumprir com certa razoabilidade minha função de ombudsman, apontar o que me parecera ruim na edição anterior, de setembro, do jornal. Só que me diverti bastante com a leitura do RelevO de agosto. A página central, com um conto formado por trocas de emails entre o editor e alguns leitores, acabou me gerando umas boas risadas. E realmente valorizo coisas engraçadas, até porque vivemos em uma realidade cada vez mais indigesta, o que torna o humor raro e também difícil de fazer.

O projeto gráfico parece também ter sofrido uma alteração, tornando-se um pouco mais leve, o que é um ganho. E o jornal continua superavitário, o que também nos tranquiliza bastante. 

Quanto ao conto citado, achei que faltou apenas algo a mais no trecho da personagem Gabriella Feden. Não ficou claro se Daniel Zanella a estava paquerando. A resposta, enfim, parece ter sido promissora em caso positivo. Mas acho que, ainda que as coisas tenham se encaminhado para certa intimidade entre os dois, faltou para o leitor ao menos algum tipo de esclarecimento. 

Do mesmo jeito, não entendi muito bem por que o primeiro interlocutor, o mais divertido de todos, não recebeu um nome, mas sim a alcunha de Amargo. Evidentemente, ele está mesmo bastante amargurado, mas como os outros não ganharam apelido, parece que ele é o que mais irritou o narrador. Pelo tom das mensagens, porém, a personagem Daniel Zanella se irrita mesmo é com Ulisses Louzeiro, chegando inclusive a agredi-lo verbalmente.

Não são defeitos, porém, que comprometam o conto. A parte da Suzana César, por exemplo, está muito bem feita. Sinto falta, no contexto contemporâneo, de textos de ficção que sejam formados por essas novas maneiras de interação como o email, as redes sociais e outras. O fato ainda da personagem Zanella insistir, no ambiente virtual do conto, que está lidando com um jornal impresso acaba causando uma fricção também curiosa.

Eu tomaria ainda um pouco de cuidado com o título. Ao afirmar que está criando um diálogo com o meio literário, parece que apenas um dos interlocutores faz parte desse ambiente, quando obviamente não é assim. Aqui, também sublinho que é muito difícil ver os veículos assumindo-se como personagens de uma trama e enfim se colocando não como centro ou suporte de uma narrativa, mas parte dela.

Acredito, inclusive, que o autor deveria ampliar o conto, pensando mesmo em um romance. Mas aí não sei se estou reivindicando algo para me satisfazer: apenas sublinho que é esse o tipo de ficção que me parece a mais relevante hoje.