Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Na era do posting, a palavra estampada no papel reproduzida em escala se levanta como manifesto estético, ação política e ativismo cultural.
I
Publiquei meu primeiro texto aos nove anos. Nossa turma da quarta série da Escola Estadual Santo Antonio, no bairro Orleans, em Curitiba, havia sido selecionada para uma atividade desenvolvida pela Emater, hoje Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural. Ao longo de um dia, iríamos fazer um passeio de ônibus ao longo do rio Passaúna, desde a nascente, no município metropolitano de Campo Magro, até a barragem, no limite com Araucária, outra cidade do entorno. Uma espécie de River Tour em que um técnico da autarquia faria as vezes de guia de turismo, explicando a geografia e a importância econômica do rio que fornece água potável para a região oeste de Curitiba, onde ficava a escola, a minha casa, a de meus amigos, o parquinho, a ladeira asfaltada de onde descíamos de rolimã e quase tudo que eu sabia do mundo até então.
O passeio começou pela nascente do rio. O ônibus parou numa estrada de chão em frente a uma porteira. Após vencermos uma pequena subida, alcançamos uma bica ao pé de um morro, que desaguava ininterruptamente numa tina de pedra. O técnico nos garantiu que aquela água era tão pura que poderíamos beber dela à vontade, não fosse a possibilidade de algum animal ter urinado por ali nas horas anteriores à nossa chegada. Era uma informação que nos surpreendia em parte. Moradores da periferia da capital paranaense, não éramos urbanos o suficiente para demonstrar estranhamento com a vida na natureza e nem rurais a ponto de ter recebido algum tipo de educação familiar em relação a ela. Alguns alunos de fato viviam em chácaras de Santa Felicidade e Campo Largo, porém a maioria, como eu, morava em casas com quintais e dispunha apenas de algum bosque próximo para brincar.
Na segunda parte da explicação, o técnico nos convidou a subir mais alguns metros. Paramos embaixo de um grande pinheiro. “Pinheiro araucária”, especificou ele. Uma árvore com centenas de anos, e sabiam disso porque a cada ano de crescimento ela deixava um anel no tronco, como aquelas mães americanas que registram o crescimento do filho com risquinhos no batente da porta. Aquele pinheiro era tão importante que havia sido tombado. Nos entreolhamos após essa palavra, pois a única acepção que conhecíamos dela era justamente o contrário do que ele queria dizer. O experiente palestrante já previa a confusão, provavelmente tarimbado por dezenas de crianças anteriores a nós e suas risadinhas e piadinhas. Criara então a habilidade de voltar a brincadeira a seu favor e, interrogando com inteligência os mais saidinhos, nos proporcionou a compreensão de um sofisticado conceito jurídico. Para a maioria, o primeiro. E para mim, também um dos últimos.
Visitamos a área do lixão da Lamenha Pequena, que durante décadas poluiu o Passaúna e havia sido fechado anos antes. Apenas observamos de dentro do veículo, e fiz minha única pergunta durante o passeio. “O que são aquelas casinhas? Tem gente morando lá?” Eram estações de controle da decomposição, explicou o guia, “porém mais acima é possível observar áreas de invasão”, apontou. Terminamos o trajeto no mirante da barragem, observando de Curitiba o entardecer sobre a cidade de Araucária, ao longe.
No dia seguinte, Dirlei, nossa professora, pediu um trabalho sobre a excursão. Tínhamos de escolher um dos pontos visitados e construir uma maquete ou elaborar um cartaz explicativo. Por motivos que até hoje me são obscuros, escolhi o pinheiro, que havia sido amplamente apontado como o momento menos interessante do passeio, e o cartaz, sempre menos atrativo quando colocado ao lado das maquetes. Apenas um outro colega escolheria o pinheiro, mas optando pela maquete. Tinha, portanto, um material exclusivo a exibir. Comprei uma cartolina verde, desenhei o pinheiro a lápis Nº 2 de alto a baixo da folha e o colori com lápis de cor. Pintei de leve para que a ilustração funcionasse como marca d’água para o texto que viria por cima. Usando uma régua, risquei pauta e margem na cartolina. Escrevi o texto também a lápis, em letra grande, cuidando para que tivesse o tamanho da cartolina. Concluído o esboço, contornei o texto com caneta e apaguei a versão a lápis junto com as linhas-guia. O que sobrou era uma redação retilínea, uniforme e livre de erros.
A sala de aula tinha uma longa bancada em imitação de granito, que se estendia desde a porta de entrada até a parede dos fundos. Num dos cantos ficava a pia em que bebíamos água e lavávamos a mão. As maquetes foram colocadas sobre a bancada e os cartazes, afixados na parede acima, na altura da visão de um adulto. Encerrada a montagem, a professora Dirlei foi convidar a orientadora educacional da escola para ser a visitante inaugural. Clélia era o nome dela. Lembro que era uma educadora com o raro dom de inspirar respeito e temor entre as crianças sem precisar jamais levantar a voz ou fazer qualquer tipo de ameaça. Se havia alguém que procurávamos agradar, e cuja aprovação nos envaidecia, era a professora Clélia.
Quando as duas professoras entraram, a turma imediatamente fez silêncio. A professora Clélia nos cumprimentou e começou a visitação a partir da porta. Em um ou outro trabalho fez alguma observação. Duas vezes perguntou quem era o autor e o questionou sobre alguma escolha ou objetivo do projeto. Meu cartaz estava pouco depois da metade. Clélia parou diante dele. “Você conhece o Pinheiro Araucária?” era o título (num lapso de interpretação durante o passeio, havia entendido que Araucária era um nome exclusivo daquele exemplar). Abaixo, uma esforçada redação quarto-anista: “O Pinheiro Araucária fica perto da nascente do Rio Passaúna. […] Sua idade é contada pelos anéis no tronco. […] Esta árvore é tombada, ou seja, ninguém pode cortá-la […].”
Enquanto lia meu cartaz, Clélia tirou os óculos e mordeu a ponta de uma das hastes. “Quem fez esse daqui?”, perguntou ela. Levantei a mão meio assustado.
“Está muito bom. Bem escrito mesmo, né, Dirlei?” Nossa professora aquiesceu, ambas olharam para mim e senti o rosto pegar fogo enquanto permanecia em pé, imóvel e mudo. “A gente pode mimeografar e distribuir pro quarto ano, que tal?”, sugeriu Clélia a Dirlei. “Ah, claro”, respondeu minha professora.
Clélia me conduziu até a “Direção”, a construção na entrada da escola que concentrava todo o departamento administrativo. Abriu um armário com a chave e retirou uma folha de matriz para mimeógrafo. Para os ainda mais jovens que eu, o mimeógrafo é uma maquineta de impressão manual. Escrevia-se numa folha matricial, chamada estêncil, que continha a tinta. Colocada numa manivela, passava o texto para folhas de sulfite com o auxílio de álcool, que soltava o pigmento no papel. Era uma forma de impressão mais barata que o xerox numa época em que não existiam impressoras a laser (e nem de cartuchos de tinta). As provas recém-impressas exalavam álcool, e quando cheirávamos a página éramos imediatamente repreendidos pela professora. Cléria me orientou a levar a folha de estêncil para casa, transcrever meu texto e trazê-la no dia seguinte. Aquele era um material relativamente caro, e jamais havia sido visto nas mãos de um aluno. “Você sabe usar isso, Osny?”, perguntou a professora Dirlei quando me viu entrar na sala com o estêncil na mão. Perto do fim da aula, retirei meu trabalho da parede, deixando banguela a fileira de cartazes. Enrolei-o e coloquei debaixo do braço.
Eu era o único a levar o trabalho de volta no mesmo dia da entrega, o que me deixou muito exultante. Entendi aquilo como uma distinção rara, até então a maior de minha carreira acadêmica. Até aquele momento eu era um aluno sem grande destaque entre os colegas. Na pré-escola, sentávamos em mesinhas de quatro ou cinco alunos e, ao nos chamar para atividades em grupo, a professora costumava dizer “mesinha do fulano” ou “mesinha do sicrano”. Para nós a preposição indicava predominância, posse, liderança, em vez de simplesmente se referir à mesa em que fulano ou sicrano estava sentado. A professora sabia disso, pois quando dizia “a mesinha do…” os alunos gritavam a sugerir os próprios nomes. Ela inclusive estimulava a competição, esticando a última vogal em tom de suspense. Eu jamais gritava meu nome. Era um aluno quieto, desconfortável na turma e com dificuldade de entrosamento. Naquele ano (meu único pré-escolar, pois fui matriculado tardiamente), lembro-me de haver ocorrido “mesinha do Osny” apenas duas vezes, por iniciativa espontânea da professora. Ainda guardo certa mágoa de sua falta de generosidade.
Por isso, o texto do pinheiro me permitiu degustar uma recém-adquirida vaidade intelectual, objetificada na folha de estêncil que eu levei para casa e na qual transcrevi meu elogiado texto, desenhando lentamente cada letra com o máximo de atenção. Ainda assim cometi um lapso num fim de linha, esquecendo-me de hifenizar um verbo antes de chegar à pauta que delimitava o fim da mancha. A alternativa foi espremer o “R” no milímetro que havia sobrado.
No dia seguinte, fui sozinho à Direção (outro privilégio) entregar a matriz para a professora Clélia. Ela não estava, então a deixei aos cuidados de uma secretária, fazendo questão de ressaltar que “a professora Clélia sabia do que se tratava”. “Você conhece o Pinheiro Araucária?” teve uma tiragem única de 120 exemplares, o suficiente para as três turmas da quarta série. O lançamento teve lugar dois dias depois. Clélia foi me buscar na sala de aula. Bati o olho na folha impressa, maravilhado com minhas palavras reproduzidas no azul claro da tinta de mimeógrafo. Percebi então que sob a assinatura no rodapé (Osny L. Tavares Jr.) havia sido escrito “4ª série A” numa letra bem mais bonita que a minha. “Você esqueceu-se de colocar a turma”, justificou ela.
Na 4ª A bastava distribuir a redação, pois os colegas estavam inteirados do contexto. Na B e na C, entretanto, Clélia me levou para uma rápida apresentação. Lembro pouco do que ela disse sobre mim ou meu texto, congelado por quarenta pares de olhos que se fixavam nos meus. Não sabia se sorria ou ficava sério. Dei tchauzinho para os colegas que conhecia, tentando me divertir com o inusitado da situação. As duas turmas ouviram em silêncio, efeito da presença sempre imponente da orientadora educacional. Mas para mim aquele mutismo significou algo distinto. Estavam me avaliando, me desafiando, me julgando, como adversários de pôquer que, em sua imobilidade, transferem a tensão ao apostador na esperança que ele se traia e revele sua mão.
II
Estava guardando essa história para um momento mais nobre. Caso a minha decisão de escrever profissionalmente venha a obter algum êxito, certamente serei chamado à aceitação de alguma honraria advinda dessa produção. Então usaria o episódio para insinuar uma autoentrega à predestinação, a forma mais fácil e socialmente aceita de legitimação de status. As pessoas adoram histórias de predestinação. Incapazes de viver com a aleatoriedade da sorte, talento, condição financeira e oportunidade para dedicação, encontram nas forças ocultas o único senso de justiça para o lugar de cada pessoa no mundo, incluindo o próprio. Se leem uma biografia de John Lennon, haverá comoção no trecho em que o menino aparece brincando com um violãozinho, ainda que milhões de outras crianças tenham batido cordas de nylon e jamais composto uma “A Day in The Life” (se este ensaio fosse escrito em inglês, aqui estaria um divertido trocadilho).
A história do pinheiro seria minha pequena contribuição a esse autoengano coletivo. Mas recentemente percebi o quanto ela é banal e, por isso, incapaz de produzir o resultado pretendido. Vamos retirar da análise as questões de memória afetiva, cujos efeitos se reproduzem apenas no autor-confessor. O que sobra é um “craft” lúdico que se decanta na passagem dos anos, sem peso para marcar um estágio de formação ou estabelecer um início de rota, um relato nostálgico de trabalhos manuais e tecnologias obsoletas. Perdi o timing da história. Se os mimeógrafos ainda existissem e, com o poder odorífico da impressão a álcool, tivessem bloqueado toda possibilidade de inovação, a publicação de “Você conhece o Pinheiro Araucária?” teria mantido a força. Mas publicar, transformado em “postar” na sociedade 2.0, se tornou um ato corriqueiro. Todos os dias, porcentagem relativamente grande do planeta Terra desenha em cartolinas virtuais e as prega nas paredes virtuais, por onde algumas dezenas de pessoas virtualmente passarão e se deterão por alguns segundos. E começam bem antes dos nove anos. Que pais resistem a tirar foto do filho recém-nascido e postar nas redes sociais, onde provavelmente receberão uma enxurrada de cumprimentos? O ser humano do século 21 não apenas nasce publicado, como estreia best-seller.
Pertenço à derradeira geração que nasceu sem internet, o que me coloca, junto com meus pares, em posição ideal para observar a perda gradual dos referenciais analógicos. Somos a era da transição, e devemos encaixotar nossa coleção de experiências para a necessária mudança. Recentemente, a Apple atualizou seu sistema operacional para celular e tablet. O iOS 7 estreou sob uma chuva de críticas quanto à aparência, tachado de feio e infantil por diversos usuários, uma suposta falha grave para a empresa que se vangloria do design de seus produtos. Os aplicativos de leitura e escrita do iPad foram os alvos principais. Um usuário reclamou que o bloco de notas virtual perdeu a referência a seu correlato físico. A tela não imita uma folha amarela com pauta e margem, a fonte não é cursiva e foi embora a decoração de fundo que simulava uma capa de couro marrom-escuro a sustentar as “folhas”. Outro se frustrou ao abrir o iBooks e não encontrar a tela em forma de prateleira de madeira, com os livros enfileirados com a capa para frente.
Esses consumidores têm razão em sua revolta. Ao modificar a diretriz estética do aparelho, a empresa quebrou um pacto assumido no momento da venda, evidenciado no próprio nome do produto. Brincando de etimologistas, podemos dizer que a junção de “i” (internet) e “pad” (bloco de notas, em inglês) estabelece comercialmente um hibridismo analógico-digital, tendo no produto o melhor dos dois mundos. Esse é um tipo de interface pensado especialmente para os usuários de transição. A experiência analógica da formação é simulada e melhorada aos poucos no novo ambiente. À medida em que a faixa etária da transição vai encolhendo entre a clientela da Apple (e de todas as outras empresas), a interface de transição vai se extinguindo em igual medida. No Windows a transição é mais serena. Ainda temos as pastas, mas as gavetas dentro de outras gavetas dentro de porta-arquivos, comuns na versão 95, foram substituídas por uma organização mais horizontal. Nós, da transição, somos tratados como pessoas que acabaram de acordar de um longo coma e precisam ser informadas sobre o mundo atual em pequenas doses, que começam com a queda da União Soviética e se encerram com a morte dos pais.
Como jornalista, também pertenço a uma geração de transição. Sou membro da última turma de estudantes a almejar a mídia convencional como possibilidade maior de realização profissional, projeto de carreira e incubadora criativa. Entrei na faculdade em 2003. A imprensa sofria os primeiros abalos provocados pela revolução digital. Mas os profissionais da área, o que inclui os professores, viviam num estado de negação. O individualismo típico da classe, somado ao discurso do triunfo da competência em um meio que se entende quase artístico, nos fazia conservar um romantismo meio ingênuo, meio ignorante, que já naquele momento não encontrava respaldo nas redações e que dali a alguns anos se transformaria num ectoplasma, a lembrança de um tempo mantida viva por aqueles que jamais o haviam vivido.
A safra seguinte está se formando sob novo pensamento. A crise do mercado, o fim da obrigatoriedade do diploma e a ascensão da internet como plataforma principal do debate público criaram uma geração de alunos de jornalismo conscientes da necessidade de inventar o próprio emprego. Estão surgindo, com frequência cada vez maior, iniciativas arrojadas, maduras e criativas, concebidas por estudantes que entendem as plataformas, sejam elas novas ou antigas, como ferramentas e possibilidades complementares, em vez de raias a delimitar seus espaços na corrida. Dentre eles está o criador e editor deste RelevO, o recém-formado Daniel Zanella, e, acredito eu, diversos de seus colaboradores de primeira hora. Volto a eles em breve.
III
Existe no palco uma espécie de altivez intrínseca. É para onde todos os olhos devem convergir. Nivelado acima das cabeças da plateia (mesmo em teatros com inclinação, essa é a impressão que causa), sua arquitetura é um argumento de autoridade a defender a arte como uma manifestação do sublime – uma ideia, aliás, bastante ocidental e contemporânea. O “espírito do palco” imiscui-se a artistas experientes e novatos de formas distintas. Àquele que logrou formar uma plateia, atrair constante interesse, ser reconhecido pela crítica e admirado pelos pares, a presença no palco está socialmente legitimada e dificilmente gera contestação. O novato precisa marcar posição à força. Antes que a multidão aceite carregá-lo nos ombros, deve gerar em si o manifesto e militar por ele. Mais arte (e mais um artista) significa para o público um passo a mais na jornada de sofisticação intelectual. Quando o repertório cultural se amplia, amplia-se também a densidade do mundo. Uma pequena revolução, e como todas as revoluções, necessita do germe da mobilização social. Em condições de relativa paz, ninguém sai de casa rumo à batalha ou ao teatro.
É uma analogia que serve para quase toda vida intelectual. Na literatura, a representação do palco é a prateleira da livraria (quem trabalha no mercado editorial conhece o sem-número de filtros para se chegar ali) e, depois, a estante da sala do leitor. A frente da sala de aula é um palco e o professor, o intérprete de um monólogo compulsório. Por isso, no momento em que parei diante das turmas com meu texto do pinheiro, senti-me invadindo um espaço que não me pertencia. Claro que meu escrito nada tinha de artístico ou literário, nem os minutos de apresentação substituíam uma aula. Mas ocorria ali uma singela provocação. Naqueles instantes a ordem convencional de emissor receptor havia sido quebrada, obrigando os alunos a recalibrarem o eixo de atenção. Quando o professor apresenta seu conteúdo, o estudante comodamente se submete à autoridade. Mas o colega que levanta e se coloca à frente, que intenciona o palco, rasura o contrato social. Exige daquele que permanece sentado uma reinterpretação da história. Aquele texto do pinheiro foi a lição de iniciação artística mais importante de minha vida. Descobri que escrever é um ato de provocação. Não estaria aqui se não fosse por ele.
No início de 2013, uma ilustrativa polêmica se deu em nossa gleba cultural. O jornalista Guilherme Voitch, da Gazeta do Povo, escreveu uma crítica amplamente negativa ao clipe “A gente não tá de brincadeira”, de autoria do músico curitibano Alexandre França e interpretado com participação de Uyara Torrente e Luiz Felipe Leprevost. Na canção, os artistas prestam tributo aos colegas locais e tentam circuscrevê-los ao panorama histórico-cultural da música brasileira. Para Voitch, o produto era uma tentativa de autolegitimação ante certa irrelevância artística diante do público amplo. “O clipe só escancara o que essa geração realmente é: autorreferencial, culturalmente domesticada, dona de um discurso bom-moço que não incomoda ninguém”, escreveu o jornalista.
Dentre reações oficiais ou oficiosas, ponderadas ou agressivas, na própria Gazeta ou em mídias sociais, foi Leprevost o responsável pela réplicasíntese, publicada no jornal dias depois. O músico defendeu a qualidade da produção local, suas opções estéticas e delimitação de público. Comparou a postura a outras supostamente semelhantes e que alcançaram valoração histórica (Paratodos, de Chico Buarque, é a alusão mais forte). Por fim, questionou: “se Voitch deu-se ao trabalho de escrever sobre o cenário, que para ele é irrelevante, por que então se deu ao trabalho?”
Essa é uma pergunta interessante. Somos uma sociedade do descarte. Produzimos muito mais do que somos capazes de consumir. Nossa principal tarefa cotidiana é refutar tudo o que não nos cabe. O ato de preterir peneira à individualidade da massa de significados que a indústria tenta atrelar a nós. A compra é a assunção final de um projeto de conquista que começa na fábrica e testa sua eficiência no soft power do mercado (não apenas do supermercado). Já a recusa é imediata. Sabemos que algo nos é estranho e/ou inútil no momento em que batemos o olho nele, sem contar aqueles produtos que jamais tiveram a chance de entrar em nosso raio de visão.
A maior parte da produção cultural pertence a esse segundo grupo de preterição. Um cenário que se expandiu em tempos de democratização dos meios de produção cultural e perda de referenciais críticos. Sem grandes gastos de divulgação, o artista novo está dependente do boca a boca virtual, onde a influência dos opinadores é, de certo modo, planificada. Claro que alguns perfis são mais “seguidos” que outros, mas estão mais próximos entre si do que o colunista do grande jornal comparado ao seu vizinho, nos tempos pré-internet. A mídia que possibilita a qualquer aspirante os meios de criação é a mesma que o joga no caldo comum da cultura. Irônico, porém justo.
Na Rússia stalinista, a produção literária foi tomada sob o controle do estado. Os escritores ganhavam um dia para se dedicar à arte a cada tantos trabalhados. As “folgas” se tornavam mais frequentes à medida que o autor se popularizava conforme os interesses estatais, que tomou para si não somente o controle sobre os meios de distribuição ou censura das obras, mas também a tarefa de atribuir valor e legitimação aos artistas. Dentro do contexto da ideologia socialista, portanto, torcer o nariz para determinado escritor era um ataque à própria base política e social que o empoderava. O autor assimilado se investia do poder estatal, impingido como poder popular. Ser um escritor russo era ser um escritor da Rússia, com todas as benesses semânticas advindas do rótulo. Claro, havia a dissidência de Soljenítsin e alguns outros.
Guilherme Voitch não teria bom fim na Rússia comunista. Sua proposta crítica é o oposto de tudo o que a cartilha pregava: individualista, globalista, estetizante, meritocrática. Mas, sobretudo, é democrática em sua recusa, por dispender tempo para analisar a produção e situá-la numa escala de valor, por acareá-la com sua própria experiência e repertório, e por usar a canção como elemento de alteridade no refilamento de seu gosto. França, Uyara e Leprevost provocaram nele a mesma inquietação que, imagino, meu texto do pinheiro ao pousar na carteira dos colegas. Nos dias seguintes, não recebi qualquer crítica de conteúdo, infelizmente. O único colega a comentar o texto apenas destacou que, devido àquele “R” esmagado no canto da página, a professora foi obrigada a interromper a leitura em grupo para tentar decifrar a letra.
O papel que antes era do estado totalitário hoje foi assumido pelas grandes corporações de tecnologia. Ao fornecer os canais e plataformas de comunicação, condicionam o consumo a um padrão que passa necessariamente por si, uma influência galgada a partir da empatia sobre o indivíduo, esse ator máximo da contemporaneidade. A Apple busca oferecer uma experiência sensorial tão intensa e satisfatória que se antecipa ao conteúdo puxado da rede, e vende essa ideia com fôlego de mascate: “vejam como isso é bonito, como desliza suavemente, como é o programa mais eficiente que você já viu”.
Enquanto isso, o mercado da informação perde a verticalização que sempre lhe ajudou a se manter forte e influente. As editoras de jornais e revistas, incapazes de competir no mercado global de tecnologia, deixam de ser as detentoras de todos os processos da cadeia (produção, impressão e distribuição) para se vocacionar como empresas de “conteúdo”, enquanto suam para desenvolver apple-jornais e apple-revistas, seguindo bovinamente as tendências de uma companhia centralizadora a ponto de tentar mudar a representação de objetos como uma estante ou um bloco de notas. Steve Jobs, ao apresentar o iPad, se vangloriava: “você tem a internet em suas mãos”. E você, Jobs, onde quer que esteja, tem os seguradores de internet nas suas.
Como lembrou Jonathan Franzen em um ensaio recente, a Amazon adota agenda semelhante. O objetivo final é que a indicação de leitura mais aceita seja a dos algoritmos do site, baseado nas compras prévias, e corroborado pelas opiniões de usuários publicadas também no site. O consumidor de cultura fica isolado numa bolha de referências laterais. O único movimento possível é dar uma volta ao redor de si.
IV
Então o tal do Zanella resolve criar um jornal de literatura, impresso e gratuito, distribuído em diversos pontos, tendo como público-alvo qualquer um que queira pegá-lo. Os autores são, em grande parte, jovens aspirantes que encontram no veículo um espaço livre para imprimir (o que, sabemos agora, é diferente de publicar) suas primeiras experiências. A novidade veio de Araucária, do outro lado do rio Passaúna, e veio dar na praia sem mar da Praça da Espanha. O jornal está rodando, primeiro na gráfica, depois de mão em mão, há três anos, o que já o caracteriza como uma publicação longeva, levando-se em conta o período de vida médio desse tipo de publicação.
Toda produção colaborativa inicialmente sofre com a falta de uma linha de atuação executável ao longo dos textos. Sem a pressão coercitiva de um patrão remunerador, via de regra o responsável último por “pensar” o produto, cada autor se encarrega de implantar a própria visão. A liberdade é a contrapartida da falta de dinheiro. O único agregador é a proximidade cultural estabelecida pela idade, formação, local de residência, transformando em produto uma convergência estética inconsciente. O pauteiro chama-se Ethos.
Essa é a impressão de quem lê. Para os que escrevem, o veículo aparece como possível trampolim para o mercado estabelecido, “profissional”, digamos. A preocupação primeira do autor é a impressão de si que irá causar nas pessoas. Ainda sem uma obra que venha à frente do nome e sirva de escudo, o aspirante busca na escrita uma aproximação do próprio nome com a produção artística. A cada frase, clama desesperadamente pelo direito de subir ao palco, sem perceber que aqueles olhos fixos da plateia não necessariamente o estão reprimindo. Apenas adotam a postura defensiva de quem se vê na iminência de ser provocado. Subir ao palco requer tão somente a impetuosidade de se assumir artista.
A provocação, no entanto, raramente acontece, o que inexige do leitor aquele estado de atenção constante próprio dos ameaçados. No lugar, existe uma tentativa de contemplação do leitor para o autor que, apesar de servir ao interesse do aspirante, é culturalmente irrelevante, principalmente se centrifugada de ativismo intelectual. O leitor longe do centro, distante do alvo, jamais terá a oportunidade de ver retratado e questionar: “por que se deu ao trabalho?”
Esse é um dilema estampado na capa do jornal, que se recusa a estampar chamadas de capa. Aparenta certa timidez, como se incapaz de fazer um transeunte parar para ver o que o jornal tem a oferecer. RelevO se recusa a seduzir, esperando que o leitor tome a atitude. Talvez a proposta seja acompanhar a tendência de algumas publicações com leitores fidelizados, da qual a revista The New Yorker é o exemplo imediato. Convém lembrar que mesmo a publicação octogenária percebe a necessidade de se anunciar. A capa limpa é exclusiva para assinantes, enquanto a edição de banca tem uma sobrecapa destacável para as chamadas que se estende sobre metade da ilustração.
Numa produção colaborativa, a circulação local acaba por se tornar uma vantagem. Melhor que cabresto, é um estabilizador de foco. Jornais convencionais que, apesar da circulação geograficamente limitada, se propõem a abraçar o mundo com seus braços curtos têm fracassado sistematicamente. The Daily, um jornal para tablet supostamente direcionado a todo o mundo, naufragou justamente por não encontrar um receptor específico. Quem fala a todos não fala a ninguém.
O jornal e a revista são experiências de rua. Precisam do espaço público físico para atacar o leitor de chofre e conquistá-lo. Sabemos o que acontece se o veículo resolver transferir essa responsabilidade para os portais de tecnologia. Publicações como o RelevO têm a oportunidade de forjar uma comunidade, mas para isso precisam da coragem para provocar e retirar o leitor do tédio no qual está imerso. Não é apenas uma questão de mercado, mas um projeto artístico e intelectual.
Refleti sobre isso recentemente, durante os dias finais de um relacionamento afetivo. Minha então namorada e eu estávamos indo a um bar onde encontraríamos alguns amigos. Fomos os primeiros a
chegar, ao ponto de o estabelecimento ainda estar fechado. Resolvemos esperar no antessala de um espaço cultural vizinho. Em um expositor diante das poltronas, repousavam diversas publicações, RelevO dentre elas. Escolhemos duas revistas, sentamos e começamos a ler, sem trocar palavra. Nossa narrativa como casal havia terminado. Queríamos outras. É nesse espaço de solidão, por vezes esquecido, mas jamais extinto, que nós autores devemos atuar.
V
Por muito tempo esqueci completamente da publicação do texto do pinheiro. Passados vários anos, estava morando em outra região da cidade, em meio a outro círculo de amigos. Não havia nenhum ponto de contato a me aproximar desse período da minha vida, um distanciamento que eu conscientemente havia buscado. A história estava toda lá, porém, soterrada em meio a outras lembranças.
Numa das vezes em que fui visitar minha mãe, encontrei no terminal de ônibus um dos colegas, André Gomes é o nome dele, e resolvemos desistir de esperar pelo ônibus alimentador e caminhar até o bairro. Eu já estava formado e começava a atuar na área; André estudava à noite enquanto trabalhava como representante comercial de uma indústria de ferragens. Outrora havíamos sido amigos próximos, mas o fluxo de afastamento a que me submeti o levou junto para longe.
Durante o trajeto, começamos a relembrar causos da infância. Então ele ressuscitou a publicação do texto do pinheiro. Toda a primeira parte deste ensaio descarregou-se em meu lobo frontal como num jorro. Poucas vezes me senti tão feliz e melancólico.
“Sabe, eu acho que ainda tenho esse texto guardado lá em casa”, disse ele. Fui tomado de susto, mas tentei não reagir de forma efusiva. Seria provavelmente a única cópia a ainda existir. André de fato era um arquivista, mas provavelmente estava enganado. Confundiu “Você conhece o Pinheiro Araucária?” com alguma prova ou trabalho do nosso velho Santo Antonio.
André é o que hoje eu chamaria de leitor qualificado. Além disso, ele é importante na minha formação moral. Era a 5ª série e estávamos uma vez mais na mesma sala. No entanto, meu comportamento estava diferente. Havia passado da timidez à expansividade. Me tornara inquieto, desrespeitoso e barulhento. Fosse hoje, seria imediatamente diagnosticado como hiperativo. O casmurro da sala agora era outro. Este garoto era tão tenso que certo dia chegou a morder a caneta até que a tinta azul lhe manchasse toda a boca. Assim que o primeiro aluno viu e apontou, começaram as chacotas e gargalhadas. Eu era um dos que mais o achincalhava, provavelmente reconhecendo nele a criança que eu havia sido anteriormente. Me vingava de mim mesmo. Em meio à balbúrdia, André levantou-se, pôs a mão no ombro do menino e o acompanhou até a pia no canto da sala. apontava os pontos do rosto que ainda precisavam ser lavados. Jamais havia visto atitude tão digna e madura vinda de alguém da minha idade.
Conversamos poucas vezes desde o dia em que ele relembrou o texto do pinheiro. Jamais pedi que ele o procurasse, sequer toquei novamente no assunto. Quero conservar o prazer de imaginar que, em algum lugar em meio a uma pilha de papéis, uma folha de papel permanece intacta. E nela, uma brincadeira de criança.