Mateus Lourenço

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Pouca gente imagina que o RelevO já tenha quarenta anos. Provavelmente porque o RelevO não tem quarenta anos. Tem quatro. Nos mais de mil dias de vida material e digital, houve grande evolução, esse fenômeno comum a todos os seres vivos não integrantes do Casseta e Planeta. Nota-se, por exemplo, como a diagramação avançou. Quero dizer, olhe para essa página. Não se preocupe com ler, por ora; apenas aprecie um pouco dessa limpeza visual elegante aliada à capa e às belíssimas ilustrações componentes de cada exemplar, que, feito o Facebook, “é gratuito e sempre será” (ao menos, acho eu que será. Isso não é um comunicado oficial. Não me cobre). Enquanto você o aprecia, acrescentarei algumas linhas de Lorem Ipsum. Pode resumir a leitura no parágrafo seguinte. Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipisicing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat.

Dirijamo-nos agora aos textos. Com o intuito de revelar gente não publicada, o RelevO oferece uma oportunidade muito, muito legal de apresentar material e, principalmente, acreditar nele. Claro que qualquer um pode publicar o que quiser na internet, além de divulgar para quem entender, potencializando um alcance indubitável. Por outro lado, a sensação de ter seu texto impresso e espalhado, de saber que alguém disse “gostei do que você escreveu; posso repassar em papel?” oferece um empurrão capaz de alterar seu pequeno universo circum-navegatório.

Não há literatura sem leitores, como não há idolatria a David Luiz sem sérios problemas gerais de interpretação. Os textos, enfim, também melhoraram muito, sustentados por uma base maior de colaboradores, interessados e curiosos. O que começou como mezzo belo projeto, mezzo belíssimo pretexto para o editor enviar e receber poesias de belas mulheres, já se transformou em mezzo belo projeto, mezzo belíssimo pretexto para o editor enviar e receber poesias de belas mulheres, porém com maior qualidade nos textos e, suponho, das mulheres (carece de fonte).

Não julguemos o editor. O jornal é gratuito, dá um trabalho do cacete e ainda acarreta em prejuízo de dinheiro e sono. Ou julguemos o editor, tanto faz; quem sou para tentar te convencer de algo? (Ele, o editor, ainda tem que lidar com esse tipo de babaca). Entretanto, chegou a hora do salto de qualidade, de atravessar o Rubicão. Após conversar com o revisor, nadamos à conclusão – aqui traduzida para sugestão –, de que, para manter a ascendência do RelevO, é chegada a hora de reduzir o critério “beleza da autora” na hora de selecionar alguns textos. Uma vez ignorada, ou ao menos relevada (argh, sem querer) essa condição, o presente periódico subirá outro degrau em sua breve história.

Nada a acrescentar. Finalizo aqui os apontamentos de ombudsman, essa função difícil de pronunciar, mas ainda mais difícil de preencher (CONTRATA-SE! Tratar com Daniel Zanella em jornalrelevo@gmail.com. Enviar foto).

 

Nota do editor:

Esclarecemos que, ao contrário do que alega nosso ombudsman-interino Mateus Lourenço, o RelevO não é uma entidade idealizada-ungida com o intuito de estabelecer relações de afeto & carinho com as escritoras ou, quiçá, leitoras que compõe o periódico.

Há, sim, um propósito de equilibrar o número de colaboradoras com o número de colaboradores, o que, de fato, tem sido um problema pouco recorrente de uns dois anos pra cá. Ao mesmo tempo, é natural que aconteça um maior entendimento nas coisas do coração entre semelhantes de uma mesma área – o que o ombudsman especula por um viés possivelmente maldoso e reducionista, o editor entende como natureza.

E, sim, habemus ombudsman definitivo: é Whisner Fraga, escritor mineiro, radicado em São Paulo, contista e poeta, autor de mais de dez livros. Ele abre os trabalhos a partir de agosto.

 

* Mateus Lourenço, 22, é CEO da Cerberus, empresa responsável por comprar poesias vendidas na rua por estudantes de Letras, apenas para dar de comida a cachorros em frente aos autores. Nas horas vagas, atua como ghost writer e se dedica ao árduo ofício de criticar a crítica literária, sendo, na crítica literária, o que o crítico foi na época em que a crítica literária era mais crítica literária.

Osny Tavares: Uma lista circular ad nauseam

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Meio ano atrás começamos um trabalho modesto e ambicioso. Uso adjetivos divergentes de propósito, pois acredito ser função do ombudsman criar um desequilíbrio que induza ao atrito, para no fim resultar em harmonia. Depois do processo de análise, o produto passa a ser bipolarizado em teses e antíteses igualmente identificadas. Somente com cargas positivas e negativas é possível conduzir energia.

Agora, encerrado meu segundo mandato, transmito a responsabilidade para o sucessor, confiante que ele trará novas ideias para esse espaço. Talvez muitas delas sejam discordantes das minhas. Tomara. Assim o ciclo descrito acima se renova e se alimenta.

Obviamente, minha visão sobre a literatura é pessoal. Mas só até certo ponto. Não teria a pretensão de possuir um corpus intelectual de todo original. Ele se completa com a síntese de tudo o que vi e li até agora. Relativamente pouco, em uma carreira que apenas se inicia. Mas o suficiente para criar um mosaico que, visto de longe, dá a falsa impressão de ser minimamente original.

Aprender pelo exemplo pode ser mais difícil que parece. Um sistema de pensamento “comum”, não–artístico, tende a funcionar da seguinte maneira: quando uma ação fracassa em cumprir seu objetivo, a memória automaticamente associa aquele procedimento ao erro. A cada vez que a mesma ação é tentada em outras ocasiões, por outras pessoas, mais a opção se consolida como falha. É o que os antigos chamam “experiência de vida”, ou a capacidade automática de formar padrões a partir da repetição, na qual a ferramenta maior é o tempo e a paciência.

Em artes, a sistemática acima é ineficiente. Toda ação artística tem por procedimento buscar um caminho novo. Se repete o já tentado e construído, não é arte. Portanto, a tendência é não haver duplicidade de abordagens. Claro, isso somente num ambiente ideal e irreal. Sempre existirão pontos em comum entre as obras, mas a capa de autenticidade tende a mascarar as o DNA em comum.

O ombudsman, em seu compromisso de guiar o processo dentro do veículo, acaba por ficar em uma posição delicada, fingindo pertencer a uma zona de conforto e certeza que na verdade não existe – nem para si mesmo, nem para os demais. Talvez pela recém- adquirida influência cultural do MMA no país, leitores e autores pediram para eu ser mais incisivo e fizesse jorrar sangue sobre a lona. Dândi pós-moderno, preferi o tapa em luva de pelica.

No processo de aprendizagem artístico, tão importante quanto a paixão é a falta dela. Empresto um conselho de John Updike: “Não se imagine o guardião de alguma tradição, um guerreiro em uma batalha ideológica, um agente punitivo de qualquer natureza”.

Existe algo de ingênuo nas artes, que é a ilusão de justiça. A crença de que o melhor sempre vai vir à tona, enterrando o imperfeito, é parte de um contrato de escapismo que vê no fazer artístico a resposta humana à tragicomédia da vida funcional. Uma armadilha destinada a trocar uma ilusão por outra, e com consequências ruins. Quando as frustrações começam a espoucar, e elas inevitavelmente virão com relativa frequência no começo, o mecanismo de negação será acionado. Seu hospedeiro passará a repetir discursos de superioridade formal ante a barbárie do gosto comum. Uma espécie de “Deus contra o mercado” que, de tão corroborado pelos outros adeptos ao vício, se cristaliza por consenso religioso. O Outro é o Mal.

Recuperando a premissa inicial, e confirmando a função do ombudsman, elenco abaixo alguns preceitos que podem soar contrastantes ao pensamento comum sobre a criação artística. Pouco disso é conteúdo original meu. Por não tê-lo ainda amadurecido, empresto o conhecimento de alguns grandes autores que já escreveram sobre o ato de escrever.

1) Da necessidade da solidão

Se existe um comportamento-padrão para a maioria dos autores, é a necessidade de solidão. Ela surge como uma quarta função biológica, tão necessária quanto comer, dormir e se reproduzir. John Irving comenta que, ao encerrar as aulas, sua necessidade de estar com os colegas se esgotava por aquele dia. Um espaço de algumas horas diárias consigo mesmo é necessário para o diálogo interno e a reflexão que frutificarão em literatura.

2) Da futilidade das patotas

Pertencer a grupos, patotas ou cenas serve de nada. Primeiro, porque talento não se propaga por condução térmica. Segundo, porque os amigos não são confiáveis. Afinal de contas, gostam de você (presume-se). Estivessem eles num júri em que você é o réu, seriam desqualificados pela promotoria.

3) Da ilusão de uma vida artística

A ideia de que existe um tipo de vida artístico regado a transgressões sociais e comportamento insalubre é dos mitos mais persistentes de nossa cultura. Há aqui uma inversão de causa e consequência. Alguns grandes artistas tiveram histórico com dependência química por causa de sua grande capacidade e sensibilidade, que os oprimia tão intensamente que precisava ser aniquilada, ou ao menos suavizada. Não usaram o vício para criar talento, afinal de contas o estupor químico cria sensações ilusórias de grandeza, sentidas apenas pelo usuário. A arte, entretanto, é real e coletiva.

4) Do interesse pela vida comum

Complementa o tópico anterior. Os aspirantes têm uma tendência a menosprezar a vida cotidiana e sua capacidade de gerar o sublime. São matérias-primas da literatura: amar, desamar e não ser amado, ter um filho, ter um emprego opressivo, se emocionar diante da beleza, ter uma família disfuncional, ter uma família que se reúne e brinda apesar de tudo, ficar doente e se recuperar, viajar, ter problemas financeiros. O que forja, molda e encaminha o artista é ser um homem (sem acepção de gênero: ser um humano).

5) Da inexistência de outras opões de carreira

Um artista é alguém que fracassou em quaisquer atividades anteriores e se descobriu incapaz de produzir nada que não seja arte. Pudera. É a pior opção de carreira possível, na soma entre tamanho do mercado, remuneração, insegurança, nível de stress e qualquer indicador que gurus corporativos ainda venham a criar. Se alguém é capaz de fazer um bom trabalho e se realizar em outra atividade, então provavelmente não é um escritor. E deve ficar feliz por isso.

6) Da recusa inicial à bajulação posterior

Todo profeta começou como herege. Dizer pela primeira vez em voz alta “sou um escritor” vai gerar certo desdém nas pessoas próximas. Algumas vão fazer insinuações muito sutis, outras vão tirar sarro da sua cara, mesmo. E não serão inimigos distantes, mas pessoas que estão próximas o suficiente para tomar a liberdade de dizê-lo (exceção feita aos integrantes do tópico 2). É preciso entender isso como parte do processo e relevar. Elas estão tentando te proteger do auto-engano. Se tudo correr bem, serão as mesmas que te bajularão no futuro. Convém, então, relevar uma vez mais.

7) Da insuficiência da técnica

O fato é que muitas pessoas escrevem bem. Essa habilidade, portanto, não é rara o suficiente para garantir um lugar ao sol ao seu possuidor. A auto-indagação a ser feita ainda é o velho chavão: “tenho algo a dizer”?

8) Do necessário passo adiante

A arte se move em passos milimétricos adiante. Qualquer produto que criar, por mais modesto que seja, precisa sugerir algo ainda não realizado. O domínio dos clássicos serve para avançar a partir deles, e não reproduzi-los.

9) Da leitura

Ler é o prazer maior de qualquer escritor e o objetivo último da organização de sua rotina. A leitura é uma ferramenta insubstituível para o domínio dos códigos textuais, essencial para obter a capacidade de usar a língua escrita a seu favor. Pense no Neo, de Matrix, quando deixa de ver os formatos do mundo e passa a enxergar somente a torrente de programação que o forma. Este tópico é tão importante que não deveria aparecer tão tarde não deveria aparecer na nona posição da lista. Mas se você chegou até ele, talvez esteja no caminho certo.

10) Da filtragem de tudo

Você absorverá somente 10% de tudo em que colocar os olhos. O que é bom, porque 90% de tudo que lê é lixo. Recorte o melhor dentre estes dez tópicos e guarde consigo. Passe o impresso a um colega.

Osny Tavares: Literatura grátis aqui!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


No primeiro texto enviado ao RelevO, quando da estreia do espaço de ombudsman, comentei longamente sobre a necessidade de os artistas incorporarem a altivez do palco e se abrirem à provocação. Quando falo em artistas incluo os literários, também conhecidos como escritores. Estava então em meio a um longo ensaio pessoal, que relacionava a arte e a tecnologia com a experiência deste jornal, e usei um pequeno trauma de infância para ilustrar o que imagino ser um ponto de ruptura no fazer artístico. Era uma pequena analogia, claro, porque este processo ainda não se resolveu em mim. Ainda assim a ilustração parece ter cumprido o objetivo, pois nas semanas seguintes conversei com alguns leitores-escritores, do RelevO e similares, que demonstraram passar pela mesma – e necessária – aflição. Quero agora voltar ao assunto.

Em meu ainda curto e largamente incompleto desenvolvimento artístico-intelectual, tive a sorte e o prazer de ser influenciado por algumas pessoas-chave. Ironicamente, quem mais me desenvolveu literariamente foi um artista sem ligação direta com esta forma de arte. Músico ligado ao samba e aos movimentos culturais populares, ensinou-me pelo exemplo algo muito verdadeiro sobre o ímpeto da criação: fazer arte é se vestir de baiana e rodar no meio do Largo da Ordem, algo que ele fez de forma literal.

Comparando a música à literatura, há aqui uma diferença e uma aproximação. Por se tratar de uma arte performática, a música exige do artista o esforço em criar uma fruição “quente”, no qual o ato da criação ou execução de uma obra é parte incondicional dela. Diferente da literatura, produzida em oficina, clandestinamente, até que surja um produto final sedimentado pela impressão e que será usufruído pelo leitor em outro momento, de forma distante e independente do artista. Um ofício predominantemente solitário, tedioso até.

É um processo que deixa marcas evidentes na personalidade dos autores, que não raro desenvolvem uma tendência à introspecção e à timidez, quase sequelas da interação fria da linguagem escrita. Em períodos anteriores da história cultural, a poesia sempre serviu como contraponto, com declamações, concursos e apresentações públicas que aproximavam a literatura do teatro. Um ato que acabou se reduzindo à medida que a própria poesia perdia interesse entre o leitorado. Se este renovado interesse pelos versos, principalmente entre os jovens, não for apenas mais um balão de ensaio, seria interessante e importante que esse tipo de evento voltasse a ocorrer com frequência.

Porém, produção e divulgação não se guiam pelas mesmas balizas, e aqui a porca estica o rabo, pois, ao contrário do dito popular, já o mantém naturalmente torcido. Num campo marcado pelo excesso de produtos, propostas, autores e aspirantes, conseguir um espaço de relativo destaque requer certo jogo de ombros, que implica não somente insistência, mas, sobretudo, uma boa dose de abnegação e contemporização. Traduzindo para o português corrente: cara-de-pau. Largos e arranhados são os ombros do escritor. O gaúcho Fabrício Carpinejar pode ser um exemplo positivo. Mais ouvido que lido, é um cara que soube usar a chamada “cauda longa” a seu favor. Tirando um ou outro excesso, há o que se aprender com ele.

Com a planificação do acesso aos meios de comunicação, o autor se transformou em um promotor de si mesmo. Isso é ainda mais evidente entre iniciantes, que precisam chamar a atenção para si e sua proposta artística. Mas as características de personalidade que elenquei acima parecem criar uma cultura de passividade, em que o autor apenas se arrisca a colocar a cauda para fora d’água e espera ser pescado. É um comportamento ainda mais arraigado em Curitiba, onde escritores faziam edições artesanais e distribuíam entre os amigos. Pode ser válido dentro de uma proposta limitante, e num tempo anterior ao nosso. Mas jamais se consolidar com tradição.

Um editor, diante de um site ou jornal de literatura, deve se sentir como o Cristiano Ronaldo diante do Tinder. Tudo deve ter mais ou menos a mesma cara – a maioria aprazível; a extrema minoria, apaixonante. O RelevO é um periódico que se destaca por não ser escravo do próprio projeto editorial e gráfico. Ainda assim, seus colaboradores eventuais pouco oferecem de inovação estética. O pessoal do design é o melhor que a ausência de dinheiro pode comprar, capitaneado pela eficiente Iara Amaral. E não digo isso apenas por saber que ela nutre uma recíproca admiração por mim, mas porque há aqui um zelo pela elegância e legibilidade não muito comum em similares. Tenho certeza que esse pessoal adoraria afinar o contato com os autores e pensar um produto conjunto entre texto e imagem, estreitando o diálogo entre os dois discursos.

Também há recalibragem possível para o texto. Desenvolver minha opinião sobre isso vai requerer uma nova coluna, provavelmente a próxima. Se não tomar cuidado, posso estar estimulando o mesmo modernismo fora-de-época quase dadá, meio afetado, meio jeca, que ronda nossa gleba.

Osny Tavares: Nós e o cosmos

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um veículo cultural, quando amplia sua veiculação, precisa saber puxar de volta novos nomes para suas páginas.

 

O problema de assistir a um bom documentário de ciência é começar a ver ciência em todo lugar. Ela de fato está em todo lugar, mas o encantamento criado por essas produções me torna excessivamente naturalista pelos dias seguintes à exibição. Sou um sujeito altamente influenciável pela inteligência. Após uma explanação criativa, tendo a sair por aí replicando o que ouvi com a intensidade e convicção de quem acabou de sofrer uma lavagem cerebral. Mas geralmente passa logo.

Porém, tem sido um inferno desde que estreou Cosmos, uma série em treze capítulos subtitulada “uma viagem pelo espaço-tempo”. É, na verdade, um remake de uma série dos anos 80 co-escrita e apresentada pelo astrônomo Carl Sagan, grande divulgador da ciência e meu herói pessoal. Essa nova versão tem como frontman um de seus pupilos (Sagan morreu em 1996), atualização teórica e efeitos especiais de cinema. Um dos produtores é Seth MacFarlane, outro herói pessoal.

A partir de Cosmos, é possível perceber que a raça humana surgiu, resistiu, sobreviveu e se desenvolveu por meio de uma sólida consciência de coletividade. Dos grupos nômades aos clãs do início da agricultura às cidades-estado aos impérios aos países às modernas cidades, nos desenvolvemos a partir dessa rede de troca e proteção que veio a se chamar sociedade. Somos feitos para viver em bando.

A arte de certa forma reproduz essa tendência, com seus movimentos estéticos e inter-discursos. Pouquíssimos são os inovadores solitários. A maioria se insere em uma corrente estilística e propõe tão somente um milímetro de avanço – o possível para um mero exemplar da espécie. Aqui também há uma rede de proteção e acolhimento, essencial a um ofício tão volátil.

O derivativo disso é a formação de grupos de afinidade que acabam por estreitar o diálogo com o meio. Acontece com mais intensidade entre aspirantes e artistas em início de carreira, ainda não estabelecidos, mas tende a se arraigar, com propensão maior ou menor, ao longo de toda a trajetória. É como se tribos distintas disputassem um mesmo território sem qualquer possibilidade de comunhão. Afinal, é fundamental para a sobrevivência da família que o DNA partilhado encontre oportunidades de reprodução em um meio.

Em sua forma contemporânea, esse fenômeno é chamado de “compadrio”, substantivo que define a ação de priorizar, indicar e enaltecer uma pessoa com quem se tem alguma relação pessoal ou profissional em detrimento de outras igualmente (ou mais) talentosas e capazes.

Impossível imaginar que a empatia será algum dia excluída das relações profissionais. Nem deveria, afinal de contas. Mas o peso do compadrio parece anacrônico ao papel atual dos meios. Ele sempre sobreviveu pela capacidade que as mídias tinham de agendar gostos e comportamentos. Pular para dentro desse barco era a garantia de um sucesso mínimo. A ponte era estreita, entretanto, e uma mão esticada poderia tornar as coisas mais fáceis.

O padrão mudou, porém. Os meios de publicação são amplos e universalmente acessíveis. Permanecem os pontos de referência, como redes de televisão, estúdios, grandes gravadoras e editoras, para os quais é preciso pavimentar o caminho à vaselina ou vencer sucessivas etapas de um rigoroso vestibular. Porém, mesmo estes meios encontram dificuldades em “lançar onda”. Estão cada vez mais reativos, recolhendo e sofisticando produtos que explodem espontaneamente na web.

Cabe aos veículos, e notadamente aos alternativos e não comerciais, o papel de trazer a organização da produção cultural para um eixo mais plano e expandir grupos em vez de cristalizá-los. É uma proposta revolucionária e ao mesmo tempo clássica, que remete ao que existe de mais basilar no fenômeno da comunicação. Não se trata de benevolência, e sim de recalibrar o formato.

Um exemplo: recentemente encontrei um amigo em São Paulo que atualmente trabalha na gestão de um bar de comédia. Ele e os colegas aplicaram um processo de casting por seleção meritocrática. Qualquer candidato, pode até ser um engraçadão de escola, terá direito a três minutos de tempo de palco para testar a sua capacidade em fazer os outros rirem. Se não for bem-sucedido, ainda tem uma nova oportunidade (vai que estava num dia ruim). Passará, então, para um segundo teste, de cinco minutos, então sete e, por fim, a apresentação cheia de quinze minutos. Fazem isso para se adiantar a movimentos espontâneos e se manter como eixo integrador. Disso depende a sobrevivência comercial deles.

Esse é um exemplo fácil porque a comédia é, talvez, a profissão mais justa que existe. Ou o sujeito é engraçado ou está fora. Penso que o resto do setor artístico, e em especial a literatura, não esteja muito longe deste patamar. RelevO tem cumprido o papel de propiciar uma plataforma generosa com certo destaque, se comparado a publicações similares. Isto se deve a questões físicas e econômicas (formato, tamanho e custo marginal) associado a uma linha de atuação aberta, que encontra na despretensão a capacidade de se manter receptivo. Falta, porém, um canal adicional ao papel para conhecer, debater e articular novas produções a ser publicadas. O feedback ainda está limitado ao noventista e-mail e ao Facebook do editor, que demanda um filtro de amizade (viram o medo?) para se chegar até ele. Um fórum de discussão, na própria mídia social ou algum outro espaço na internet, proporcionaria uma interação mais dinâmica que a do jornal impresso e seus cinquenta tons de cinza.

 

Nota do editor:

De fato, o protagonismo que o impresso tem como produto final acaba por nos enfraquecer em outros meios, prejudicando, inclusive, o recebimento de mais feedbacks. Ainda não encontramos uma forma de nos fortalecer financeiramente para podermos investir, por exemplo, em um site que acomodasse toda a nossa produção e proporcionasse maior interação com os leitores.

Uma alternativa para um jornal mais dinâmico seria uma maior participação dos leitores no processo de edição. Poderíamos publicar mais textos numa versão digital e selecionar, através de votação, alguns textos para a versão impressa.

Novas plataformas também podem tornar o RelevO mais orgânico, com notícias diárias sobre concursos e espaços para novos autores, nosso foco maior. Porém, sem querer-me semelho a um ventríloquo, nosso travo para voos mais amplos é a falta de dinheiro.

Osny Tavares: O aqui, agora

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Passamos por um período de urgência e aspiramos a revolução. Enquanto isso, nossa literatura segue atavicamente progressista.

 

Nada mais opressivo ao escritor de ficção que a História com agá maiúsculo, que insiste em cobrar o seu quinhão de fidedignidade. Mas não é por isso que ando por aqui neste mês, embora deva falar um pouco sobre História e histórias ao longo dos parágrafos abaixo. Co­mentarei, porém, a relação do jovem escritor com o tempo em que vive e como absorver a consciência de época – popularmente chama­da de zeitgeist – sem parecer datado ou ante­cipado. Fiquei às voltas com o assunto durante as semanas anteriores ao Carnaval, enquanto produzia uma reportagem sobre o impacto do golpe militar sobre a literatura brasileira do período. O material será publicado na edição de março do Cândido, que circulará paralelo a este RelevO. Fica desde já o convite à leitura do coirmão.

É um tempo interessante para ser jovem. Tudo parece aberto à refundação e cada pe­queno setor da vida abriga um comitê repleto de delegados a discutir até as cláusulas pétreas da vida. O que era automático, uma imposição da cultura sobre a qual não se refletia, torna-se um ato político. De mastigar um bife a torcer pela seleção brasileira na Copa, o indivíduo é desafiado pelos significados sociais de seus atos. O que é ótimo, pois parece um caminho necessário à lucidez.

Penso que a literatura, e principalmente do tipo que fazemos aqui, tenha um papel impor­tante em estabelecer um conhecimento mútuo entre os atores. Por dois motivos: primeiro, o imediatismo do periódico mensal dedicado ao texto curto permite uma reflexão quente, mas já com certo arrefecimento de ânimos. Por ve­zes, a contagem de dez segundos é insuficiente para recuperar a ponderação. Em um mês, en­tretanto, é possível contar até 2,6 milhões.

Não defendo, claro, que o jornal se torne refém de uma pauta de acontecimentos ime­diatos e se preocupe em caricaturar o real em pseudoliteratura. Mas é inegável que os fenô­menos que presenciamos atualmente repre­sentarão parte significativa de nossa identi­dade de época. Os protestos de junho de 2013, por exemplo, têm potencial para se tornar nos­so Woodstock — um evento que define a per­sonalidade de uma geração. E perceba que a comparação é possível apenas porque o evento de 1969 foi sistematicamente esmiuçado pelo olhar artístico ao longo das últimas quatro dé­cadas. As produções mais recentes tendem a ser mais maduras, porém os contemporâneos do festival foram responsáveis por tornarem-no icônico, enviando os primeiros sinais de “olhe para isso”.

No Brasil, presenciamos um despertar polí­tico da juventude após vinte anos de calmaria. A transferência de responsabilidade para “os políticos”, entendendo-os como representan­tes de uma classe autônoma, cobrou o seu pre­ço. Mais do que serviços públicos de qualidade, os cartazes nas passeatas clamam por um pro­jeto de vida adulta relativamente satisfatório. A geração nascida a partir dos anos 90 cresceu isenta das grandes utopias da modernidade, porém não encontrou nada para colocar no lugar. Batendo à porta de entrada para a vida adulta, tudo o que consegue vislumbrar como “o possível” é a reprodução de um projeto de felicidade individual que consiste em seguran­ça material e estabilidade, algo instintivamen­te avesso aos impulsos orgânicos da juventu­de. A adesão em massa a “causas” surge como a tentativa de responder de forma altruísta à opressão do bem-estar, cujos efeitos negativos incluem alienação e solidão.

Agora, vamos contra-argumentar.

É próprio da literatura tentar escapar das armadilhas de seu tempo para tentar cons­truir algo permanente. O próprio autor tende a ser identificado como um sujeito meio afasta­do das questões imediatas de sua vida, embora seja intelectualmente forjado por um proces­so coletivo no qual a data é um dos principais elementos definidores. O triunfo do artista ocorre quando, acorrentado ao hoje, consegue projetar o estético ou o existencial de amanhã. Mas a perenidade é uma ilusão. O descarte é bem-vindo para permitir que o novo surja e realizar a ambição humana de viver um pouco mais que uma única vida.

O RelevO flerta com o distante, o que é bom, mas permanece distante do próximo, o que não é tão bom. Ondas curtas não pegam no rá­dio do vizinho.

Osny Tavares: A literatura não nos salvará

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Nós, os autores leitores, deixamos de ser solitários. Mas ainda recusamos o diálogo e a tentativa de retratar o outro.

 

A literatura não nos salvará por ser a pró­pria perdição da qual fugimos. Como gênero artístico acuado, quase reduzido a um com­portamento de nicho, as letras tentam reagir com ilusões de autoimportância. E nada mais chato que o discurso de elevação espiritual, dando a entender que o leitor dedicado encon­trará nos livros uma espécie de código-chave para entender a humanidade, ou melhor, “para começar a entender”, dirá o autor/professor/ palestrante. Em literatura nada pode ser ca­bal, definitivo, objetivado. Sempre é preciso pairar sob uma zona de incerteza em que uma afirmação é também o seu oposto, o que per­mite ao enunciador discorrer longamente sem jamais se pôr em risco, como se pedalasse uma bicicleta com rodinhas.

A característica principal de qualquer mili­tância é o desejo de se chegar a um fim espe­cífico e necessariamente correto. Na política, onde o fenômeno é mais facilmente visuali­zável, trabalha-se com dois horizontes de ex­pectativa: o possível e o ideal. A realização do primeiro supostamente encurtaria a distância até o segundo. Mas como a militância precisa se manter viva e com o mesmo vigor, assim que o possível é realizado o ideal é reposicionado mais à frente em igual proporção. O vácuo im­pede a morte do desejo e a consequente des­mobilização da militância.

A militância literária, benza-deus, prescin­de de um fim social específico. Até onde sei, pelo menos, ninguém ainda criou um escopo ao estilo do comunismo utópico e saiu por aí a de­fender que todo cidadão deve ler xis livros ao ano ou, em algum momento da vida, desenvol­ver uma tese sobre algum estilo ou gênero. É mais um chamado ao aprimoramento pessoal. Leia porque é bom. Serás mais sensível e sofis­ticado. Saberás interpretar e desfrutar melhor a arte. Poderás relativizar a importância das coisas cotidianas. Embora encapada num al­truísmo monástico, pouco se diferencia de um comercial de produto para emagrecimento, exceto pelo garoto-propaganda, na literatura geralmente alguém entediante, sem carisma e incapaz de seduzir sua plateia.

Apesar de tudo a literatura vive um mo­mento de relevância, em especial entre os jo­vens. Não só entre eles, mas aqui ocorre um fenômeno novo e interessante. Os livros são pauta frequente de conversa, sem distinção de gênero (Guarde essa sentença. Ela será útil mais adiante). É também um fenômeno que ir­rompe barreiras sociais. Mesmo os jovens de classes mais baixas estão se mostrando ante­nados e curiosos. Ao contrário de tudo o que se diz sobre o preço do livro, a literatura ainda é uma experiência barata. E numa comunidade homogênea como a dos jovens na periferia, que se aproximam por gostos e preferências cultu­rais, o indicar/emprestar/passar de mão em mão torna o custo marginal quase irrisório. Tudo isso é uma grande ilação minha, basea­da em alguma (pouca, na verdade) observação. Em nada ajuda o fato de as pesquisas de leitura no Brasil pouco revelarem, autoanuladas por problemas graves de método e amplitude.

Teria a discreta melhora na educação públi­ca brasileira influenciado a formação de leito­res? (Essa melhora, sim, se pode provar. Basta dar uma olhadinha no Ideb). Talvez. Mas penso ser a internet hoje o principal motivador da leitura. Em todo o século 20 as mídias se alter­naram como a principal fonte de informação e comunicação. Tivemos, pela ordem: o apogeu dos jornais, a era do rádio, a era do cinema, a invenção da televisão, a música como protesto e canto do cisne da civilização, o cinema de vol­ta – via blockbusters juvenis, a consolidação da televisão, e por fim a internet.

Como já foi amplamente analisado, a ascen­são de uma mídia predominantemente escrita sobre culturas ágrafas como a televisão e o rá­dio reposicionou o texto escrito no alto da lista de valores para o bem comunicar. Embora a in­ternet seja o espaço multimídia por excelência, a maioria de seu conteúdo é escrito, e assim deverá continuar. É a forma de comunicar mais rápida, dinâmica, universal, prescinde de téc­nica e de tecnologia. Os usuários/produtores se digladiam por atenção. E cedo descobriram que a correção textual é um primeiro passo fundamental para o sucesso na rede.

Nos primórdios da web 2.0, linguistas de todo canto se escandalizavam com a distorção da norma culta que ocorria no meio virtual. Além da salada ortográfica, havia os casos ex­tremos em que Si cOxtumm@va iXcreVr a$im. Tão natural quanto surgiu, esse “estilo” desa­pareceu. A abundância de informação exigiu das mensagens um esforço de correção para que sejam entendidas de bate-pronto, senão o descarte seria imediato.

O que tem a literatura a ver com tudo isso? Certa vez lembro uma colega da faculdade de jornalismo contrariada por haver na grade curricular a disciplina de cinema. Achava des­necessário estudar teoria e prática cinemato­gráfica, ela cujo sonho era ser repórter de tevê. Faltava-lhe entender que a linguagem de tevê se alimenta, inova e renova a partir de sua ar­te-mãe, o cinema. Arrisco – mas não muito – a dizer que a arte-mãe da internet é a literatura. Na postagem diária, a busca por uma individu­alidade formal da escrita, como o exemplo do parágrafo anterior, foi substituída pelo esfor­ço em reproduzir os códigos comuns que tor­nam a comunicação possível, e ainda sugerir o novo, o não-criado. Se revelam as carências do ensino da língua no ciclo de educação básica, também demonstram uma vontade de se aper­feiçoar nela.

Neste público jovem com tendência à for­mação de comunidades e engajamento, a li­teratura juvenil de massa tem feito sucesso inédito desde, pelo menos, a primeira metade do século 20. Harry Potter, com sua estratégia de serialização, foi o abre-alas. Outras séries copiaram tanto o formato quanto a premissa e conseguiram relativo sucesso no vácuo do bruxinho. Estas abriram caminho para auto­res nacionais como Eduardo Spohr e André Vianco, hoje bastante populares entre adoles­centes. Esses autores, e essas obras, são forma­doras de pequenas redes, capazes de agregar novos leitores para si apelando à sensação de pertencimento e necessidade de up-to-date. Ler se torna uma experiência coletiva e social. O mercado editorial ganha contorno de show -business, com estreias, datas de lançamento longamente esperadas, turnês de divulgação. O jovem leitor não é mais o excluído no porão; é o conectado à urbe.

No ensaio do mês passado, publicado nes­te mesmo espaço, já havia citado a necessida­de de os criadores literários introspectarem a necessidade de liderança. Provocar, instigar, relativizar certezas. Mas para isso é necessá­rio não somente fazer a mensagem chegar, mas criar condições para que ela ricocheteie entre os leitores, que crie uma movimentação autô­noma semelhante à dos exemplos acima, mas sem o caráter reafirmador e contemporizador da literatura de massa.

A leitura da edição de janeiro do RelevO revela uma miríade de narradores solitários. A figura do personagem interlocutor é prati­camente inexistente, e mesmo o Outro obser­vável – estilo Holden Caulfield x a sociedade – é um ente raro. Exceção notável é a crônica Balcões, de ReNato Bittencourt. Aqui, o jornal pende para um “em-si-mesmamento” herméti­co ao diálogo. O eu-lírico do jornal gasta quase todo o papel tentando se compreender, impe­dindo o leitor de também tentar compreendê-lo, ou compreender a si mesmo.

Alguns poderão afirmar ser uma tendência natural dessa forma de arte e citar uma infi­nidade de autores consagrados com propostas similares. Antes que o façam, concordarei pre­viamente com o argumento, poupando-lhes o trabalho. Mas quando o único leitor a encon­trar um ponto de identificação no texto é seu próprio autor, temos um inescapável problema de autoreferência. Apesar de literário, somos um jornal. Se relegarmos o diálogo com o lei­tor, ele reciprocamente recusará a sua leitura.

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Na edição de janeiro, Daniel Osiecki comen­ta uma crônica de Renato Vieira Ostrowski, publicada em uma coletânea que o primeiro analisa e, coincidentemente, republicada na mesma edição do jornal. Uma informação que somente o leitor atento é capaz de captar, pois o próprio periódico em nenhum momento o informa sobre ela. Cabe ao editor promover um diálogo interno entre os autores, apontan­do complementações, proximidades e debates sempre que eles existiram. Pode (e deve) inclu­sive intervir com pequenos textos que atentam para uma leitura comparada. É a mesma pro­cura de unidade que defendo no trecho acima.

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Na edição de dezembro, o mesmo Daniel Osiecki escreveu um pequeno ensaio sobre a produção editorial no Paraná. Sua posição pro­vocou certo burburinho no Facebook e iniciou um pequeno e saudável debate na mídia social. Um jornal mensal não consegue acompanhar a velocidade desses acontecimentos, mas é im­portante não deixá-los soltos na webesfera. Um convite a escrever réplicas e tréplicas, con­solidando opiniões que acabam ficando soltas na rede, ajudaria a manter a discussão num bom nível de embate de ideias.

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Autores desta seara, agridam-se com mais virulência.

 

Nota do editor:

É propósito do periódico promover maior diálogo entre seus conteúdos internos e trazer para o papel as discussões suscitadas em outras plataformas, fundamentais para o crescimento e consolidação de nosso trabalho. Buscaremos com mais rigor este tipo de conexão, evidente­mente precária nos casos acima citados.

Osny Tavares: Uma história pessoal da impressão

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Na era do posting, a palavra estampada no papel reproduzida em escala se levanta como manifesto estético, ação política e ativismo cultural.

I

Publiquei meu primeiro texto aos nove anos. Nossa turma da quarta série da Escola Estadual Santo Antonio, no bairro Orleans, em Curitiba, havia sido selecionada para uma atividade desenvolvida pela Emater, hoje Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural. Ao longo de um dia, iríamos fazer um passeio de ônibus ao longo do rio Passaúna, desde a nascente, no município metropolitano de Campo Magro, até a barragem, no limite com Araucária, outra cidade do entorno. Uma espécie de River Tour em que um técnico da autarquia faria as vezes de guia de turismo, explicando a geografia e a importância econômica do rio que fornece água potável para a região oeste de Curitiba, onde ficava a escola, a minha casa, a de meus amigos, o parquinho, a ladeira asfaltada de onde descíamos de rolimã e quase tudo que eu sabia do mundo até então.

O passeio começou pela nascente do rio. O ônibus parou numa estrada de chão em frente a uma porteira. Após vencermos uma pequena subida, alcançamos uma bica ao pé de um morro, que desaguava ininterruptamente numa tina de pedra. O técnico nos garantiu que aquela água era tão pura que poderíamos beber dela à vontade, não fosse a possibilidade de algum animal ter urinado por ali nas horas anteriores à nossa chegada. Era uma informação que nos surpreendia em parte. Moradores da periferia da capital paranaense, não éramos urbanos o suficiente para demonstrar estranhamento com a vida na natureza e nem rurais a ponto de ter recebido algum tipo de educação familiar em relação a ela. Alguns alunos de fato viviam em chácaras de Santa Felicidade e Campo Largo, porém a maioria, como eu, morava em casas com quintais e dispunha apenas de algum bosque próximo para brincar.

Na segunda parte da explicação, o técnico nos convidou a subir mais alguns metros. Paramos embaixo de um grande pinheiro. “Pinheiro araucária”, especificou ele. Uma árvore com centenas de anos, e sabiam disso porque a cada ano de crescimento ela deixava um anel no tronco, como aquelas mães americanas que registram o crescimento do filho com risquinhos no batente da porta. Aquele pinheiro era tão importante que havia sido tombado. Nos entreolhamos após essa palavra, pois a única acepção que conhecíamos dela era justamente o contrário do que ele queria dizer. O experiente palestrante já previa a confusão, provavelmente tarimbado por dezenas de crianças anteriores a nós e suas risadinhas e piadinhas. Criara então a habilidade de voltar a brincadeira a seu favor e, interrogando com inteligência os mais saidinhos, nos proporcionou a compreensão de um sofisticado conceito jurídico. Para a maioria, o primeiro. E para mim, também um dos últimos.

Visitamos a área do lixão da Lamenha Pequena, que durante décadas poluiu o Passaúna e havia sido fechado anos antes. Apenas observamos de dentro do veículo, e fiz minha única pergunta durante o passeio. “O que são aquelas casinhas? Tem gente morando lá?” Eram estações de controle da decomposição, explicou o guia, “porém mais acima é possível observar áreas de invasão”, apontou. Terminamos o trajeto no mirante da barragem, observando de Curitiba o entardecer sobre a cidade de Araucária, ao longe.

No dia seguinte, Dirlei, nossa professora, pediu um trabalho sobre a excursão. Tínhamos de escolher um dos pontos visitados e construir uma maquete ou elaborar um cartaz explicativo. Por motivos que até hoje me são obscuros, escolhi o pinheiro, que havia sido amplamente apontado como o momento menos interessante do passeio, e o cartaz, sempre menos atrativo quando colocado ao lado das maquetes. Apenas um outro colega escolheria o pinheiro, mas optando pela maquete. Tinha, portanto, um material exclusivo a exibir. Comprei uma cartolina verde, desenhei o pinheiro a lápis Nº 2 de alto a baixo da folha e o colori com lápis de cor. Pintei de leve para que a ilustração funcionasse como marca d’água para o texto que viria por cima. Usando uma régua, risquei pauta e margem na cartolina. Escrevi o texto também a lápis, em letra grande, cuidando para que tivesse o tamanho da cartolina. Concluído o esboço, contornei o texto com caneta e apaguei a versão a lápis junto com as linhas-guia. O que sobrou era uma redação retilínea, uniforme e livre de erros.

A sala de aula tinha uma longa bancada em imitação de granito, que se estendia desde a porta de entrada até a parede dos fundos. Num dos cantos ficava a pia em que bebíamos água e lavávamos a mão. As maquetes foram colocadas sobre a bancada e os cartazes, afixados na parede acima, na altura da visão de um adulto. Encerrada a montagem, a professora Dirlei foi convidar a orientadora educacional da escola para ser a visitante inaugural. Clélia era o nome dela. Lembro que era uma educadora com o raro dom de inspirar respeito e temor entre as crianças sem precisar jamais levantar a voz ou fazer qualquer tipo de ameaça. Se havia alguém que procurávamos agradar, e cuja aprovação nos envaidecia, era a professora Clélia.

Quando as duas professoras entraram, a turma imediatamente fez silêncio. A professora Clélia nos cumprimentou e começou a visitação a partir da porta. Em um ou outro trabalho fez alguma observação. Duas vezes perguntou quem era o autor e o questionou sobre alguma escolha ou objetivo do projeto. Meu cartaz estava pouco depois da metade. Clélia parou diante dele. “Você conhece o Pinheiro Araucária?” era o título (num lapso de interpretação durante o passeio, havia entendido que Araucária era um nome exclusivo daquele exemplar). Abaixo, uma esforçada redação quarto-anista: “O Pinheiro Araucária fica perto da nascente do Rio Passaúna. […] Sua idade é contada pelos anéis no tronco. […] Esta árvore é tombada, ou seja, ninguém pode cortá-la […].”

Enquanto lia meu cartaz, Clélia tirou os óculos e mordeu a ponta de uma das hastes. “Quem fez esse daqui?”, perguntou ela. Levantei a mão meio assustado.

“Está muito bom. Bem escrito mesmo, né, Dirlei?” Nossa professora aquiesceu, ambas olharam para mim e senti o rosto pegar fogo enquanto permanecia em pé, imóvel e mudo. “A gente pode mimeografar e distribuir pro quarto ano, que tal?”, sugeriu Clélia a Dirlei. “Ah, claro”, respondeu minha professora.

Clélia me conduziu até a “Direção”, a construção na entrada da escola que concentrava todo o departamento administrativo. Abriu um armário com a chave e retirou uma folha de matriz para mimeógrafo. Para os ainda mais jovens que eu, o mimeógrafo é uma maquineta de impressão manual. Escrevia-se numa folha matricial, chamada estêncil, que continha a tinta. Colocada numa manivela, passava o texto para folhas de sulfite com o auxílio de álcool, que soltava o pigmento no papel. Era uma forma de impressão mais barata que o xerox numa época em que não existiam impressoras a laser (e nem de cartuchos de tinta). As provas recém-impressas exalavam álcool, e quando cheirávamos a página éramos imediatamente repreendidos pela professora. Cléria me orientou a levar a folha de estêncil para casa, transcrever meu texto e trazê-la no dia seguinte. Aquele era um material relativamente caro, e jamais havia sido visto nas mãos de um aluno. “Você sabe usar isso, Osny?”, perguntou a professora Dirlei quando me viu entrar na sala com o estêncil na mão. Perto do fim da aula, retirei meu trabalho da parede, deixando banguela a fileira de cartazes. Enrolei-o e coloquei debaixo do braço.

Eu era o único a levar o trabalho de volta no mesmo dia da entrega, o que me deixou muito exultante. Entendi aquilo como uma distinção rara, até então a maior de minha carreira acadêmica. Até aquele momento eu era um aluno sem grande destaque entre os colegas. Na pré-escola, sentávamos em mesinhas de quatro ou cinco alunos e, ao nos chamar para atividades em grupo, a professora costumava dizer “mesinha do fulano” ou “mesinha do sicrano”. Para nós a preposição indicava predominância, posse, liderança, em vez de simplesmente se referir à mesa em que fulano ou sicrano estava sentado. A professora sabia disso, pois quando dizia “a mesinha do…” os alunos gritavam a sugerir os próprios nomes. Ela inclusive estimulava a competição, esticando a última vogal em tom de suspense. Eu jamais gritava meu nome. Era um aluno quieto, desconfortável na turma e com dificuldade de entrosamento. Naquele ano (meu único pré-escolar, pois fui matriculado tardiamente), lembro-me de haver ocorrido “mesinha do Osny” apenas duas vezes, por iniciativa espontânea da professora. Ainda guardo certa mágoa de sua falta de generosidade.

Por isso, o texto do pinheiro me permitiu degustar uma recém-adquirida vaidade intelectual, objetificada na folha de estêncil que eu levei para casa e na qual transcrevi meu elogiado texto, desenhando lentamente cada letra com o máximo de atenção. Ainda assim cometi um lapso num fim de linha, esquecendo-me de hifenizar um verbo antes de chegar à pauta que delimitava o fim da mancha. A alternativa foi espremer o “R” no milímetro que havia sobrado.

No dia seguinte, fui sozinho à Direção (outro privilégio) entregar a matriz para a professora Clélia. Ela não estava, então a deixei aos cuidados de uma secretária, fazendo questão de ressaltar que “a professora Clélia sabia do que se tratava”. “Você conhece o Pinheiro Araucária?” teve uma tiragem única de 120 exemplares, o suficiente para as três turmas da quarta série. O lançamento teve lugar dois dias depois. Clélia foi me buscar na sala de aula. Bati o olho na folha impressa, maravilhado com minhas palavras reproduzidas no azul claro da tinta de mimeógrafo. Percebi então que sob a assinatura no rodapé (Osny L. Tavares Jr.) havia sido escrito “4ª série A” numa letra bem mais bonita que a minha. “Você esqueceu-se de colocar a turma”, justificou ela.

Na 4ª A bastava distribuir a redação, pois os colegas estavam inteirados do contexto. Na B e na C, entretanto, Clélia me levou para uma rápida apresentação. Lembro pouco do que ela disse sobre mim ou meu texto, congelado por quarenta pares de olhos que se fixavam nos meus. Não sabia se sorria ou ficava sério. Dei tchauzinho para os colegas que conhecia, tentando me divertir com o inusitado da situação. As duas turmas ouviram em silêncio, efeito da presença sempre imponente da orientadora educacional. Mas para mim aquele mutismo significou algo distinto. Estavam me avaliando, me desafiando, me julgando, como adversários de pôquer que, em sua imobilidade, transferem a tensão ao apostador na esperança que ele se traia e revele sua mão.

II

Estava guardando essa história para um momento mais nobre. Caso a minha decisão de escrever profissionalmente venha a obter algum êxito, certamente serei chamado à aceitação de alguma honraria advinda dessa produção. Então usaria o episódio para insinuar uma autoentrega à predestinação, a forma mais fácil e socialmente aceita de legitimação de status. As pessoas adoram histórias de predestinação. Incapazes de viver com a aleatoriedade da sorte, talento, condição financeira e oportunidade para dedicação, encontram nas forças ocultas o único senso de justiça para o lugar de cada pessoa no mundo, incluindo o próprio. Se leem uma biografia de John Lennon, haverá comoção no trecho em que o menino aparece brincando com um violãozinho, ainda que milhões de outras crianças tenham batido cordas de nylon e jamais composto uma “A Day in The Life” (se este ensaio fosse escrito em inglês, aqui estaria um divertido trocadilho).

A história do pinheiro seria minha pequena contribuição a esse autoengano coletivo. Mas recentemente percebi o quanto ela é banal e, por isso, incapaz de produzir o resultado pretendido. Vamos retirar da análise as questões de memória afetiva, cujos efeitos se reproduzem apenas no autor-confessor. O que sobra é um “craft” lúdico que se decanta na passagem dos anos, sem peso para marcar um estágio de formação ou estabelecer um início de rota, um relato nostálgico de trabalhos manuais e tecnologias obsoletas. Perdi o timing da história. Se os mimeógrafos ainda existissem e, com o poder odorífico da impressão a álcool, tivessem bloqueado toda possibilidade de inovação, a publicação de “Você conhece o Pinheiro Araucária?” teria mantido a força. Mas publicar, transformado em “postar” na sociedade 2.0, se tornou um ato corriqueiro. Todos os dias, porcentagem relativamente grande do planeta Terra desenha em cartolinas virtuais e as prega nas paredes virtuais, por onde algumas dezenas de pessoas virtualmente passarão e se deterão por alguns segundos. E começam bem antes dos nove anos. Que pais resistem a tirar foto do filho recém-nascido e postar nas redes sociais, onde provavelmente receberão uma enxurrada de cumprimentos? O ser humano do século 21 não apenas nasce publicado, como estreia best-seller.

Pertenço à derradeira geração que nasceu sem internet, o que me coloca, junto com meus pares, em posição ideal para observar a perda gradual dos referenciais analógicos. Somos a era da transição, e devemos encaixotar nossa coleção de experiências para a necessária mudança. Recentemente, a Apple atualizou seu sistema operacional para celular e tablet. O iOS 7 estreou sob uma chuva de críticas quanto à aparência, tachado de feio e infantil por diversos usuários, uma suposta falha grave para a empresa que se vangloria do design de seus produtos. Os aplicativos de leitura e escrita do iPad foram os alvos principais. Um usuário reclamou que o bloco de notas virtual perdeu a referência a seu correlato físico. A tela não imita uma folha amarela com pauta e margem, a fonte não é cursiva e foi embora a decoração de fundo que simulava uma capa de couro marrom-escuro a sustentar as “folhas”. Outro se frustrou ao abrir o iBooks e não encontrar a tela em forma de prateleira de madeira, com os livros enfileirados com a capa para frente.

Esses consumidores têm razão em sua revolta. Ao modificar a diretriz estética do aparelho, a empresa quebrou um pacto assumido no momento da venda, evidenciado no próprio nome do produto. Brincando de etimologistas, podemos dizer que a junção de “i” (internet) e “pad” (bloco de notas, em inglês) estabelece comercialmente um hibridismo analógico-digital, tendo no produto o melhor dos dois mundos. Esse é um tipo de interface pensado especialmente para os usuários de transição. A experiência analógica da formação é simulada e melhorada aos poucos no novo ambiente. À medida em que a faixa etária da transição vai encolhendo entre a clientela da Apple (e de todas as outras empresas), a interface de transição vai se extinguindo em igual medida. No Windows a transição é mais serena. Ainda temos as pastas, mas as gavetas dentro de outras gavetas dentro de porta-arquivos, comuns na versão 95, foram substituídas por uma organização mais horizontal. Nós, da transição, somos tratados como pessoas que acabaram de acordar de um longo coma e precisam ser informadas sobre o mundo atual em pequenas doses, que começam com a queda da União Soviética e se encerram com a morte dos pais.

Como jornalista, também pertenço a uma geração de transição. Sou membro da última turma de estudantes a almejar a mídia convencional como possibilidade maior de realização profissional, projeto de carreira e incubadora criativa. Entrei na faculdade em 2003. A imprensa sofria os primeiros abalos provocados pela revolução digital. Mas os profissionais da área, o que inclui os professores, viviam num estado de negação. O individualismo típico da classe, somado ao discurso do triunfo da competência em um meio que se entende quase artístico, nos fazia conservar um romantismo meio ingênuo, meio ignorante, que já naquele momento não encontrava respaldo nas redações e que dali a alguns anos se transformaria num ectoplasma, a lembrança de um tempo mantida viva por aqueles que jamais o haviam vivido.

A safra seguinte está se formando sob novo pensamento. A crise do mercado, o fim da obrigatoriedade do diploma e a ascensão da internet como plataforma principal do debate público criaram uma geração de alunos de jornalismo conscientes da necessidade de inventar o próprio emprego. Estão surgindo, com frequência cada vez maior, iniciativas arrojadas, maduras e criativas, concebidas por estudantes que entendem as plataformas, sejam elas novas ou antigas, como ferramentas e possibilidades complementares, em vez de raias a delimitar seus espaços na corrida. Dentre eles está o criador e editor deste RelevO, o recém-formado Daniel Zanella, e, acredito eu, diversos de seus colaboradores de primeira hora. Volto a eles em breve.

III

Existe no palco uma espécie de altivez intrínseca. É para onde todos os olhos devem convergir. Nivelado acima das cabeças da plateia (mesmo em teatros com inclinação, essa é a impressão que causa), sua arquitetura é um argumento de autoridade a defender a arte como uma manifestação do sublime – uma ideia, aliás, bastante ocidental e contemporânea. O “espírito do palco” imiscui-se a artistas experientes e novatos de formas distintas. Àquele que logrou formar uma plateia, atrair constante interesse, ser reconhecido pela crítica e admirado pelos pares, a presença no palco está socialmente legitimada e dificilmente gera contestação. O novato precisa marcar posição à força. Antes que a multidão aceite carregá-lo nos ombros, deve gerar em si o manifesto e militar por ele. Mais arte (e mais um artista) significa para o público um passo a mais na jornada de sofisticação intelectual. Quando o repertório cultural se amplia, amplia-se também a densidade do mundo. Uma pequena revolução, e como todas as revoluções, necessita do germe da mobilização social. Em condições de relativa paz, ninguém sai de casa rumo à batalha ou ao teatro.

É uma analogia que serve para quase toda vida intelectual. Na literatura, a representação do palco é a prateleira da livraria (quem trabalha no mercado editorial conhece o sem-número de filtros para se chegar ali) e, depois, a estante da sala do leitor. A frente da sala de aula é um palco e o professor, o intérprete de um monólogo compulsório. Por isso, no momento em que parei diante das turmas com meu texto do pinheiro, senti-me invadindo um espaço que não me pertencia. Claro que meu escrito nada tinha de artístico ou literário, nem os minutos de apresentação substituíam uma aula. Mas ocorria ali uma singela provocação. Naqueles instantes a ordem convencional de emissor receptor havia sido quebrada, obrigando os alunos a recalibrarem o eixo de atenção. Quando o professor apresenta seu conteúdo, o estudante comodamente se submete à autoridade. Mas o colega que levanta e se coloca à frente, que intenciona o palco, rasura o contrato social. Exige daquele que permanece sentado uma reinterpretação da história. Aquele texto do pinheiro foi a lição de iniciação artística mais importante de minha vida. Descobri que escrever é um ato de provocação. Não estaria aqui se não fosse por ele.

No início de 2013, uma ilustrativa polêmica se deu em nossa gleba cultural. O jornalista Guilherme Voitch, da Gazeta do Povo, escreveu uma crítica amplamente negativa ao clipe “A gente não tá de brincadeira”, de autoria do músico curitibano Alexandre França e interpretado com participação de Uyara Torrente e Luiz Felipe Leprevost. Na canção, os artistas prestam tributo aos colegas locais e tentam circuscrevê-los ao panorama histórico-cultural da música brasileira. Para Voitch, o produto era uma tentativa de autolegitimação ante certa irrelevância artística diante do público amplo. “O clipe só escancara o que essa geração realmente é: autorreferencial, culturalmente domesticada, dona de um discurso bom-moço que não incomoda ninguém”, escreveu o jornalista.

Dentre reações oficiais ou oficiosas, ponderadas ou agressivas, na própria Gazeta ou em mídias sociais, foi Leprevost o responsável pela réplicasíntese, publicada no jornal dias depois. O músico defendeu a qualidade da produção local, suas opções estéticas e delimitação de público. Comparou a postura a outras supostamente semelhantes e que alcançaram valoração histórica (Paratodos, de Chico Buarque, é a alusão mais forte). Por fim, questionou: “se Voitch deu-se ao trabalho de escrever sobre o cenário, que para ele é irrelevante, por que então se deu ao trabalho?”

Essa é uma pergunta interessante. Somos uma sociedade do descarte. Produzimos muito mais do que somos capazes de consumir. Nossa principal tarefa cotidiana é refutar tudo o que não nos cabe. O ato de preterir peneira à individualidade da massa de significados que a indústria tenta atrelar a nós. A compra é a assunção final de um projeto de conquista que começa na fábrica e testa sua eficiência no soft power do mercado (não apenas do supermercado). Já a recusa é imediata. Sabemos que algo nos é estranho e/ou inútil no momento em que batemos o olho nele, sem contar aqueles produtos que jamais tiveram a chance de entrar em nosso raio de visão.

A maior parte da produção cultural pertence a esse segundo grupo de preterição. Um cenário que se expandiu em tempos de democratização dos meios de produção cultural e perda de referenciais críticos. Sem grandes gastos de divulgação, o artista novo está dependente do boca a boca virtual, onde a influência dos opinadores é, de certo modo, planificada. Claro que alguns perfis são mais “seguidos” que outros, mas estão mais próximos entre si do que o colunista do grande jornal comparado ao seu vizinho, nos tempos pré-internet. A mídia que possibilita a qualquer aspirante os meios de criação é a mesma que o joga no caldo comum da cultura. Irônico, porém justo.

Na Rússia stalinista, a produção literária foi tomada sob o controle do estado. Os escritores ganhavam um dia para se dedicar à arte a cada tantos trabalhados. As “folgas” se tornavam mais frequentes à medida que o autor se popularizava conforme os interesses estatais, que tomou para si não somente o controle sobre os meios de distribuição ou censura das obras, mas também a tarefa de atribuir valor e legitimação aos artistas. Dentro do contexto da ideologia socialista, portanto, torcer o nariz para determinado escritor era um ataque à própria base política e social que o empoderava. O autor assimilado se investia do poder estatal, impingido como poder popular. Ser um escritor russo era ser um escritor da Rússia, com todas as benesses semânticas advindas do rótulo. Claro, havia a dissidência de Soljenítsin e alguns outros.

Guilherme Voitch não teria bom fim na Rússia comunista. Sua proposta crítica é o oposto de tudo o que a cartilha pregava: individualista, globalista, estetizante, meritocrática. Mas, sobretudo, é democrática em sua recusa, por dispender tempo para analisar a produção e situá-la numa escala de valor, por acareá-la com sua própria experiência e repertório, e por usar a canção como elemento de alteridade no refilamento de seu gosto. França, Uyara e Leprevost provocaram nele a mesma inquietação que, imagino, meu texto do pinheiro ao pousar na carteira dos colegas. Nos dias seguintes, não recebi qualquer crítica de conteúdo, infelizmente. O único colega a comentar o texto apenas destacou que, devido àquele “R” esmagado no canto da página, a professora foi obrigada a interromper a leitura em grupo para tentar decifrar a letra.

O papel que antes era do estado totalitário hoje foi assumido pelas grandes corporações de tecnologia. Ao fornecer os canais e plataformas de comunicação, condicionam o consumo a um padrão que passa necessariamente por si, uma influência galgada a partir da empatia sobre o indivíduo, esse ator máximo da contemporaneidade. A Apple busca oferecer uma experiência sensorial tão intensa e satisfatória que se antecipa ao conteúdo puxado da rede, e vende essa ideia com fôlego de mascate: “vejam como isso é bonito, como desliza suavemente, como é o programa mais eficiente que você já viu”.

Enquanto isso, o mercado da informação perde a verticalização que sempre lhe ajudou a se manter forte e influente. As editoras de jornais e revistas, incapazes de competir no mercado global de tecnologia, deixam de ser as detentoras de todos os processos da cadeia (produção, impressão e distribuição) para se vocacionar como empresas de “conteúdo”, enquanto suam para desenvolver apple-jornais e apple-revistas, seguindo bovinamente as tendências de uma companhia centralizadora a ponto de tentar mudar a representação de objetos como uma estante ou um bloco de notas. Steve Jobs, ao apresentar o iPad, se vangloriava: “você tem a internet em suas mãos”. E você, Jobs, onde quer que esteja, tem os seguradores de internet nas suas.

 

Como lembrou Jonathan Franzen em um ensaio recente, a Amazon adota agenda semelhante. O objetivo final é que a indicação de leitura mais aceita seja a dos algoritmos do site, baseado nas compras prévias, e corroborado pelas opiniões de usuários publicadas também no site. O consumidor de cultura fica isolado numa bolha de referências laterais. O único movimento possível é dar uma volta ao redor de si.

IV

Então o tal do Zanella resolve criar um jornal de literatura, impresso e gratuito, distribuído em diversos pontos, tendo como público-alvo qualquer um que queira pegá-lo. Os autores são, em grande parte, jovens aspirantes que encontram no veículo um espaço livre para imprimir (o que, sabemos agora, é diferente de publicar) suas primeiras experiências. A novidade veio de Araucária, do outro lado do rio Passaúna, e veio dar na praia sem mar da Praça da Espanha. O jornal está rodando, primeiro na gráfica, depois de mão em mão, há três anos, o que já o caracteriza como uma publicação longeva, levando-se em conta o período de vida médio desse tipo de publicação.

Toda produção colaborativa inicialmente sofre com a falta de uma linha de atuação executável ao longo dos textos. Sem a pressão coercitiva de um patrão remunerador, via de regra o responsável último por “pensar” o produto, cada autor se encarrega de implantar a própria visão. A liberdade é a contrapartida da falta de dinheiro. O único agregador é a proximidade cultural estabelecida pela idade, formação, local de residência, transformando em produto uma convergência estética inconsciente. O pauteiro chama-se Ethos.

Essa é a impressão de quem lê. Para os que escrevem, o veículo aparece como possível trampolim para o mercado estabelecido, “profissional”, digamos. A preocupação primeira do autor é a impressão de si que irá causar nas pessoas. Ainda sem uma obra que venha à frente do nome e sirva de escudo, o aspirante busca na escrita uma aproximação do próprio nome com a produção artística. A cada frase, clama desesperadamente pelo direito de subir ao palco, sem perceber que aqueles olhos fixos da plateia não necessariamente o estão reprimindo. Apenas adotam a postura defensiva de quem se vê na iminência de ser provocado. Subir ao palco requer tão somente a impetuosidade de se assumir artista.

A provocação, no entanto, raramente acontece, o que inexige do leitor aquele estado de atenção constante próprio dos ameaçados. No lugar, existe uma tentativa de contemplação do leitor para o autor que, apesar de servir ao interesse do aspirante, é culturalmente irrelevante, principalmente se centrifugada de ativismo intelectual. O leitor longe do centro, distante do alvo, jamais terá a oportunidade de ver retratado e questionar: “por que se deu ao trabalho?”

Esse é um dilema estampado na capa do jornal, que se recusa a estampar chamadas de capa. Aparenta certa timidez, como se incapaz de fazer um transeunte parar para ver o que o jornal tem a oferecer. RelevO se recusa a seduzir, esperando que o leitor tome a atitude. Talvez a proposta seja acompanhar a tendência de algumas publicações com leitores fidelizados, da qual a revista The New Yorker é o exemplo imediato. Convém lembrar que mesmo a publicação octogenária percebe a necessidade de se anunciar. A capa limpa é exclusiva para assinantes, enquanto a edição de banca tem uma sobrecapa destacável para as chamadas que se estende sobre metade da ilustração.

Numa produção colaborativa, a circulação local acaba por se tornar uma vantagem. Melhor que cabresto, é um estabilizador de foco. Jornais convencionais que, apesar da circulação geograficamente limitada, se propõem a abraçar o mundo com seus braços curtos têm fracassado sistematicamente. The Daily, um jornal para tablet supostamente direcionado a todo o mundo, naufragou justamente por não encontrar um receptor específico. Quem fala a todos não fala a ninguém.

O jornal e a revista são experiências de rua. Precisam do espaço público físico para atacar o leitor de chofre e conquistá-lo. Sabemos o que acontece se o veículo resolver transferir essa responsabilidade para os portais de tecnologia. Publicações como o RelevO têm a oportunidade de forjar uma comunidade, mas para isso precisam da coragem para provocar e retirar o leitor do tédio no qual está imerso. Não é apenas uma questão de mercado, mas um projeto artístico e intelectual.

Refleti sobre isso recentemente, durante os dias finais de um relacionamento afetivo. Minha então namorada e eu estávamos indo a um bar onde encontraríamos alguns amigos. Fomos os primeiros a

chegar, ao ponto de o estabelecimento ainda estar fechado. Resolvemos esperar no antessala de um espaço cultural vizinho. Em um expositor diante das poltronas, repousavam diversas publicações, RelevO dentre elas. Escolhemos duas revistas, sentamos e começamos a ler, sem trocar palavra. Nossa narrativa como casal havia terminado. Queríamos outras. É nesse espaço de solidão, por vezes esquecido, mas jamais extinto, que nós autores devemos atuar.

V

Por muito tempo esqueci completamente da publicação do texto do pinheiro. Passados vários anos, estava morando em outra região da cidade, em meio a outro círculo de amigos. Não havia nenhum ponto de contato a me aproximar desse período da minha vida, um distanciamento que eu conscientemente havia buscado. A história estava toda lá, porém, soterrada em meio a outras lembranças.

Numa das vezes em que fui visitar minha mãe, encontrei no terminal de ônibus um dos colegas, André Gomes é o nome dele, e resolvemos desistir de esperar pelo ônibus alimentador e caminhar até o bairro. Eu já estava formado e começava a atuar na área; André estudava à noite enquanto trabalhava como representante comercial de uma indústria de ferragens. Outrora havíamos sido amigos próximos, mas o fluxo de afastamento a que me submeti o levou junto para longe.

Durante o trajeto, começamos a relembrar causos da infância. Então ele ressuscitou a publicação do texto do pinheiro. Toda a primeira parte deste ensaio descarregou-se em meu lobo frontal como num jorro. Poucas vezes me senti tão feliz e melancólico.

“Sabe, eu acho que ainda tenho esse texto guardado lá em casa”, disse ele. Fui tomado de susto, mas tentei não reagir de forma efusiva. Seria provavelmente a única cópia a ainda existir. André de fato era um arquivista, mas provavelmente estava enganado. Confundiu “Você conhece o Pinheiro Araucária?” com alguma prova ou trabalho do nosso velho Santo Antonio.

André é o que hoje eu chamaria de leitor qualificado. Além disso, ele é importante na minha formação moral. Era a 5ª série e estávamos uma vez mais na mesma sala. No entanto, meu comportamento estava diferente. Havia passado da timidez à expansividade. Me tornara inquieto, desrespeitoso e barulhento. Fosse hoje, seria imediatamente diagnosticado como hiperativo. O casmurro da sala agora era outro. Este garoto era tão tenso que certo dia chegou a morder a caneta até que a tinta azul lhe manchasse toda a boca. Assim que o primeiro aluno viu e apontou, começaram as chacotas e gargalhadas. Eu era um dos que mais o achincalhava, provavelmente reconhecendo nele a criança que eu havia sido anteriormente. Me vingava de mim mesmo. Em meio à balbúrdia, André levantou-se, pôs a mão no ombro do menino e o acompanhou até a pia no canto da sala. apontava os pontos do rosto que ainda precisavam ser lavados. Jamais havia visto atitude tão digna e madura vinda de alguém da minha idade.

Conversamos poucas vezes desde o dia em que ele relembrou o texto do pinheiro. Jamais pedi que ele o procurasse, sequer toquei novamente no assunto. Quero conservar o prazer de imaginar que, em algum lugar em meio a uma pilha de papéis, uma folha de papel permanece intacta. E nela, uma brincadeira de criança.