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Rafael Maieiro: Epístola Pueril Sem Número 34 – Zeh Gustavo: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas” (M. A.)
Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
“(…) Não vai adiantar nada eles encostarem suas cabeças no chão e pedirem Volte para cá, querida! Vou simplesmente olhar para cima e dizer Então quem sou eu? Primeiro me digam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo; senão, fico aqui embaixo até ser alguma outra pessoa… Mas, ai, ai” exclamou Alice numa súbita explosão de lágrimas, “queria muito que encostassem a cabeça no chão! Estou tão cansada de ficar sozinha aqui!’” (C., L. Alice. Zahar: 2009)
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Porra, Zeh!
Está difícil. Qual o maior problema de um ouvidor: não ouvir ou não ser ouvido? Me encontro agora, em frente ao espelho, tateando estas linhas paralelas no celular. Não vou me estender por 34 minutos tentando criar, num velho passe de mágica, re-ReveladO por um youtuber-coach há 34 minutos atrás. Não, Zeh. Não vou, não quero. (Cantarole, deístico leitor).
Voltemos! Podia usar o nobiliárquico título de ombudsman para envenenar, mesmo com uma roupagem modernete, os leitores com uma cansativa leitura critiquíssima do RelevO. Mas aí, né… Que contratassem outro! Já faço o favor de escrever em linhas paralelas e outros formalismos: eu não uso blusa da Farm.
Não, Zeh. Não, não quero. Um jornal literário? Então, vamos lá, tentei fazer da tal da Ouvidoria um espaço da ficção. Narrar, não os fatos em si, mas a vida como ela é na sua lida — ficcionar, leitorzim, é muitas vezes mais realista do que a tentativa malfeita de descrever, detalhadamente, bobagens.
Tá, Zeh, vou. Tô te ouvindo aqui na minha cabeça. Mas por onde, pobre diabo? Merda! O espetáculo acontece a cortina, plateia apática. Fora do teatro alguém diz que não assiste a espetáculos sem banda. No fundão do teatro, quase anônima, uma moça bate uma palma como uma Deusa da Ironia e adia por alguns segundos o Apocalipse. Mas e a vaia? Cadê a vaia, o xingamento, alguma reação do Universo que não seja um xis na plataforma nazista?
Deixamos eles, Zeh?
Aguardo a sua resposta.
Beijo,
O Outro
Ainda: por enquanto, pulem esta coluna. O RelevO, este maço (martelo) de papel, pássaro voando pela rua sombria dos tempos de merda, faz algum sentido. Quem sabe ele não empastela os seus olhos para além das paralelas.
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Mês que vem voltamos? Aguardem! Provavelmente, não teremos novidades.
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Aguardando a resposta do Zeh:
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A imagem, o som e a letra impressa
Editorial extraído da edição de março de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Quando o RelevO surgiu, em setembro de 2010, éramos pura celulose e tinta, um amontoado de páginas que se recusava a obedecer a qualquer lógica que não fosse a nossa. A cada edição — com diagramação gradativamente melhor —, fomos desenvolvendo algumas linhas de certo humor caótico, ideias que se jogavam do penhasco sem saber se havia chão. Agora, estamos prestes a expandir nosso bestiário para o audiovisual. É um novo horizonte para esse modesto balcão organizado. Mas não se preocupe: ainda gostamos do cheiro do papel e da sensação reconfortante de que, mesmo se a internet cair, o impresso continua ali, firme, na gaveta, debaixo da mesa ou servindo de apoio para aquele pé de cadeira bambo. Mais: o impresso paga contas.
Nosso jornal sempre foi um convite à leitura torta, ao texto que parece errado. Agora, queremos experimentar o peso da imagem, o ritmo do som, as possibilidades do movimento — sem perder nossa veia seletiva, satírica e, acima de tudo, inquieta. Isso significa que [quem sabe] teremos vídeos desafiando a lógica do algoritmo e um conteúdo visual que, se bobear, poderá muito bem ser desenhado à mão. Vamos estudar as possibilidades, sem esquecer que nosso porto-seguro é de papel, dobra no meio e resiste ao tempo melhor que qualquer feed.
A expansão para o audiovisual nem tem como implicar um adeus ao impresso — longe disso! É só mais uma forma de provar que a palavra não precisa ficar restrita a um formato. Vamos testar novas formas de contar histórias e provocar. Quais? Ainda não sabemos; estamos apenas confabulando. Precisamos apenas continuar nos divertindo e desempenhando algo dentro do nosso limite técnico. Nosso singelo círculo de competência. Temos o mais difícil: anos e anos de conteúdo original, não necessariamente de qualidade.
Mas calma, para quem já estava preparando o textão, quem sabe alardeando que “o RelevO se vendeu para as telas”, fique tranquilo. Nosso maior sonho ainda é perder a alma para a Red Bull e virar um cone de arrancadão. Nossa tradição gráfica segue viva e forte. Continuaremos a estampar páginas com textos que desafiam padrões, referências que só três pessoas entendem e piadas que, às vezes, só fazem sentido três edições depois. A diferença é que esses mesmos devaneios febris poderão ganhar voz, trilha sonora e até dublagem dramática.
Portanto, revisem seus conceitos de Jornalismo sério e esperem por algo que nem nós sabemos exatamente como vai ser — essa sempre foi a nossa maior especialidade. O RelevO está ampliando sua bagunça organizada. A diferença é que, agora, talvez ela tenha vinhetas.
Edição de fevereiro de 2025
Rafael Maieiro: Sem ou com orelhão: Pule para o último parágrafo e descubra para que serve esta seção do RelevO
Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender.
O sentido da frase por vezes é difícil de atingir.Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
Uma orelha gigantesca. Você é um coelho cego andando com pressa no meio da Rua Riachuelo, na Lapa — se apoia (ou rodopia) na bengala e usa as orelhas em riste como um braço de chapeleira para manter a cartola no seu devido lugar —, desvia confuso de carros, motos e bicicletas ainda mais atordoadas. Buzinaço, caos, calor. E plaw! Olha lá você adentrando na dita-cuja, malandragem! Na orelha? Na cartola? Tanto faz. Bifurcação: orelha ou cartola? Sai do outro lado, dentro da sua própria…
p de…? São nove letras, amado e idolatrado leitor. Adivinha? Deixa de chatice!
…orelha e está sem ela. Não, calma, ela (elas?) está (estão!) aí. Então, esquece o Dedé, deixa de ser lelé, vem comigo, Zeh, e se liga no papo da presente ouvidoria. Faz algum sentido.
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— Sabe de uma coisa, meu irmãozinho, não leio um jornal impresso faz uns dez ou vinte anos — disse Diego Barboza, poeta e editor, convidado para comentar o RelevO de janeiro. — Na verdade, dou aqui meu testemunho, sou um leitor assíduo do Universal — conclui o raciocínio sem fazer nenhum tipo de ironia.
Foi logo dizendo antes de me cumprimentar ou qualquer coisa do tipo.
— Fale mais! — finjo não me surpreender e levanto a pelota.
Gosto muito de jornal impresso, continuava Diego, e tem sempre uns meninos da Igreja distribuindo o jornalzinho deles lá na entrada do metrô Maria da Graça. Aí vou, pum, meto o jornal embaixo do braço e sigo meu rumo pro trabalho. Ele puxa a cadeira, pede dois copos, uma cerveja e completa dizendo que é melhor mudar de assunto. O jornal é bonzinho, insistia, bem escrito. Eles lá com a fé deles sabem colocar palavra na frente de palavra, são jeitosos. Um dia desses vou pegar o RelevO e trocar com os meninos, aí veremos o cabrito que vai ser parido. O poeta, já sentado, acende um cigarro e abre o jornal. Fala do gosto de ler no papel e que nesses tempos parecem empedrar a aura de uma tábula. Só estamos no celular, né? Jornal, hoje em dia, precisa de porte? Aliás, é mais fácil você ver um fuzil do que um ser lendo uma jornaleta. Que doideira! E, olha, diz o nosso comentarista do mês, naturalmente, cagar lendo um jornal, na moral, não tem preço! De repente, ele pega um exemplar do Jornal que tinha deixado em cima da mesa, abre o jornal simulando um anjo terreno batendo as asas. Se levanta. Começa a discursar.
Estamos no Ximenes da Riachuelo, restaurante localizado na Lapa:
— Caros leitores, eventualmente presentes neste belo e bem frequentado restaurante, eis o jornal RelevO. Não, não é uma esquete. Estou aqui, de fato, apresentando um jornal de literatura, um impresso. Coisa boa, ficção fina, melhor que o seu maior concorrente no Brasil, o Universal. Conto, poesia, foto, artes plásticas, sem modorra de banqueiro playba, longe, bem longe da arte de cabelo bagunçado e à sombra do poder. Nessa edição, temos uma coletânea de poemas de Kay Sage. Primor! Bilíngue. Olha aqui: “cola de peixe / olhos em casas de vidro / atirando pedras.” Aqui também, na página 13, um desabafo do Sérgio Mallandro. Perdeu essa, Mad. E tem correio do amor um pouquinho pior que de festa junina. E nem me falem de aplicativo hoje, tá? Rodem este jornal por aí e vejam se eu estou mentindo!
Passou para a moça da mesa ao lado, que sorriu. Diego senta na mesa, Sou um ótimo jornaleiro, né?, ele não vai muito com o jeitão do Saramago. Mas, Maieiro, um jornal daquele, sem tirinha, é sacanagem. Tem que ter tirinha, irmãozinho!
Diego Barboza, segundo quase uma dezena de críticos do Rio, o que é uma multidão se tratando de poesia, é o poeta da geração.
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Jussara Lessa está certa, as letrinhas do jornal dificultam muito a leitura. Principalmente, dos textos em prosa. Na opinião deste ouvidor, o único defeito da diagramação do RelevO.
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Daniel Zanella, nobilíssimo editor, vou ser demitido?
Essa coluna serve como crítica aberta e sincera ao conteúdo e à forma do RelevO. O tal do ombudsman é um ouvidor, um representante dos leitores, o responsável pela crítica ao jornal dentro do jornal e sem interferência dos donos do jornal. O alvo sempre é a edição anterior. Assumi a tarefa de ser o ombudsman do jornal por um ano, comecei em janeiro. A escolha é fazer um mandato literário: de apresentar o jornal e narrar as impressões de novos leitores. Os escolhidos, em tese, serão escritores, editores ou qualquer coisa (viva, ou quase). Prometi o número de um orelhão – telefone público de rua, dá um Google aí, jovem guarda revolucionária –, mas ainda não consegui um em plenas condições de uso na Cidade Maravilhosa. Por enquanto, me xinguem, com o devido carinho, pelo e-mail contato@jornalrelevo.com. Sugiro ao editor do jornal que incentive a arte de Catarina: envie cola, tinta e canetas. Sem dúvida, Catarina vai compor uma bela colagem. Ah, por favor, mandem os jornais atrasados para o William Saab!
Rio, janeiro, dezenove do um
Sol, muito sol
Os rumos do impresso no país dos não leitores
Editorial extraído da edição de fevereiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Em um cenário saturado pelo digital, onde o scroll infinito domina as interações e o tempo livre, mudando a percepção de foco e derretendo nossa concentração, a alternativa do impresso justifica sua existência de formas cada vez mais lógicas. Na competição diária pela atenção e na macarronada de algoritmos moldando nossos interesses, o impresso oferece uma pausa intencional e menos fragmentada, algo que a experiência digital – cada vez mais como uma roda de hamster a serviço de anúncios – dificilmente consegue (ou tem interesse de) replicar.
A recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, trouxe à tona a grave realidade do desinteresse pela leitura no país. Mais da metade da população (53%) não leu sequer parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa, independentemente do suporte. Esse dado é comovente não só por demonstrar a desconexão com o hábito da leitura como um todo, mas também por revelar um sintoma mais profundo: uma sociedade em que não ler caminha para a norma, ao contrário do uso de tecnologias cada vez mais balbuciantes. (Convenhamos, não que antes da internet o Brasil fosse o Olimpo da intelectualidade…)
Outro dado merece atenção. A predominância do celular – 75% dos entrevistados afirmam passar mais tempo no dispositivo do que com um livro impresso –, quase uma platitude, traz uma ponderação acerca do impacto das telas em outros aspectos da vida. A hiperconectividade digital não afeta só os hábitos de leitura, uma vez que transforma o modo como nos relacionamos com o tempo e com o mundo físico. Atividades que dependem de presença, como caminhar, visitar amigos, ou até mesmo o estabelecimento de vínculos íntimos como… sexo, estão em declínio, substituídas por interações mediadas por telas.
Claro que estamos falando de uma generalização a partir de dados – e que temos, sim, zonas de respiro também nas gerações nascidas já com a internet em domínio. E não esqueçamos novamente da pesquisa: apenas 17% dos adultos acima de 40 anos têm o hábito da leitura. É uma geração pré-internet. O problema é muito mais antigo. Entendemos que o impresso, nesse cenário, pode se tornar, paradoxalmente, um ato de renovação, já que o formato não se limita somente à transmissão de informação; é um retorno à experiência tátil, visual e emocional. Livros, revistas e jornais oferecem um tipo de interação imersiva e não linear, permitindo ao leitor pausar, reler e contemplar, em oposição à efemeridade do conteúdo digital. Impresso não tem pop-up. Para além da nostalgia, o impresso encontra novas justificativas para sua existência: é um meio que incentiva o foco, a introspecção e o distanciamento saudável da saturação informacional.
Assim, o desafio não é resistir ao digital, tampouco introjetar leitura em dançarino do TikTok, mas construir uma cultura em que o consumo de conteúdo impresso seja mais presente. Chamamos isso de letramento analógico. Em um país onde a quantidade de não leitores supera a de leitores, fomentar o hábito de leitura é um passo vital para formar indivíduos menos… derretidos. Não que o RelevO, especificamente, vá salvar o Brasil de seu buraco quente (não o sanduíche), mas as redes dos bilionários malucos da ideologia californiana do Vale do Silício certamente não estão aqui para nos conduzir à evolução.
No dia a dia do Jornal, conversamos muito sobre o letramento para impresso. O que isso significa? É a nossa tentativa miúda de colocar mais leitores em contato com a nossa “plataforma”. Nosso plano logístico de distribuição, que dá acesso [grátis] ao periódico em mais de 400 pontos culturais do Brasil, tem como mote o contato com o impresso. O plano é todo financiado por nossos assinantes. Também pensamos no acesso do Jornal aos escritores. Janeiro, por exemplo, é o mês em que fazemos as devolutivas dos autores e autoras que mandaram materiais no último semestre. Acredite: muitos escritores nunca folhearam uma edição do RelevO (ok) ou sequer de outro impresso (aí complica). Mesmo entre aqueles que escrevem, as trocas de mensagens são estarrecedoras. “Olá, obrigada pelo retorno, mesmo que vocês não utilizem meu material. Quem sabe na próxima! O que é periódico? Gostaria de entender melhor” ou “Estava mais interessado na publicação do que na leitura do Jornal, não precisa mandar a edição de cortesia não”. “Mas como chega o jornal? Por email?”. Todos exemplos reais, ipsis litteris.
Em outra ponta, enquanto o Brasil vê regredir sua curva de leitura rumo ao grunhido, até mesmo gigantes do setor digital tomam ações na direção do impresso. A recente decisão da ByteDance, dona do TikTok, de expandir sua editora 8th Note Press para o mercado de livros físicos, é emblemática. A gigante chinesa aposta no crescimento da comunidade BookTok para lançar livros impressos voltados às gerações Millennial e Z. Paralelamente, revistas como Vox, Vice e Saveur retornam às bancas, ao passo que o mercado americano celebra o lançamento de mais de 70 novas publicações impressas apenas no último ano. Por aqui, temos o retorno ao impresso da folclórica Capricho.
Claro: em tempos de incertezas, a nostalgia desempenha um papel importante. Objetos físicos, como livros, vinis e câmeras analógicas, carregam uma carga emocional que os torna refúgios em meio ao barulho. Revistas impressas, muitas vezes transformadas em peças de decoração ou colecionáveis, ganham espaço pela experiência sensorial de folhear suas páginas e pelo valor estético de seus projetos editoriais minimalistas. Em muitos casos, isso não deixa de ser apenas um fenômeno de boutique.
De fato, o prazer do toque, da textura e do cheiro das páginas não pode ser replicado pelo digital. Não há interrupções irritantes, anúncios invasivos ou notificações que desviam a atenção. A leitura flui em um ritmo próprio, permitindo uma experiência limpa e imersiva. Além disso, o impresso resgata a noção de permanência. Enquanto plataformas digitais adicionam e removem conteúdos sem aviso, o que mantemos fisicamente em nossas mãos reflete nossa identidade e gera memória. Livros e revistas tornam-se extensões de quem somos, objetos que não só representam nossas preferências, mas também estreitam laços e promovem a troca de ideias. Impresso não pode ser editado a posteriori.
O milésimo renascimento do impresso não significa uma rejeição ao digital, mas sim uma convivência harmoniosa entre os dois formatos. Ambos têm seus méritos: o digital para a instantaneidade e o alcance global, e o físico para a profundidade e a conexão emocional. É nessa coexistência que leitores, criadores e editores encontram novas possibilidades: estamos falando de reimaginar o século 21 antes que ele se torne o ferro-velho completo dos bots.
Edição de janeiro de 2025
Rafael Maieiro: PALAVRÕES & DEMONSTRATIVOS: sobre outros assuntos e uma ouvidoria que não ouve conselhos
Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Saúde: Ladeira do João Homem, 65. Ali, nas encruzas da praça, é só descer a rua por alguns metros e estamos no Bar do Geraldinho. Cadeiras e caixas de cerveja coloridas na calçada (C5 – boom, manuais!). Ali está o Zeh Gustavo, o ex desta coluna, no seu habitat, brincando no copo de cachaça e abrindo um sorriso no rosto. Me aboleto na mesa, o encontro marcado é para falar sobre o RelevO de dezembro.
[Eis o método do mandato desta ouvidoria do jornal: conversar com leitores de alguns estados deste Brasil – em cafés, bares, livrarias ou, quem sabe, no ponto de ônibus. A ideia-chave do espaço, ora ocupado por mim, é narrar os encontros sem nenhum compromisso com os fatos, contudo assinando um pacto com a particularidade do real na poesia e/ou na ficção. Para abrir o caminho, escolhi o ex, o tal do Zeh, para a estreia].Zeh vira a Salinas, pede a minha cerveja gelada. Quase gargalha sei lá o porquê. Eu digo:
– Viu as ilustrações da Natalia Azevedo? A publicação é em PB, né? Olhe, são muitos olhos – faço um movimento com os dedos insinuando o trocadilho ridículo –, mas ainda não estou maluco: vi a oitava cor do arco-íris.
Zeh me despreza, o que não é incomum, e já fala que me fudeu na última coluna dele, justificando-se como ato de amor. E puxa um Aldir Blanc:
– Na Rua da Tijolo, bloco 5, aquela de esquina…
[Zeh, meu camaradinha, além de personagem e ex, você também é o revisor desta coluna. Qualquer erro aqui é culpa sua, por sinal é um ótimo lema do RelevO, porém não vá me encher o texto de referências bibliográficas e seus TOCs ABNT. Como disse Carolina Bataier, “Todo o resto, sim”].Fiquei ouvindo o ex acabar a cantoria, ainda afinada, um copo afina a voz, meti logo um porra e perguntei o que ele achou sobre a edição de dezembro.
– Os olhos, os barcos são quase uma bandeira. Sim, muita cor. Não somos dodóis da moleira, ainda, meu chapa. Natalia Azevedo…
Enquanto Zeh fazia seu solilóquio, ele ainda não estava bêbado, mas estava no modo falastrão, um gatinho fazia número pela rua, uma rua de pedras, uma rua de pedestre, no alto do Morro da Conceição. O gato me olhou – será que usar gatos em textos num impresso também chama atenção? –, fez um movimento que, à primeira vista, tomei por uma saudação carinhosa. Mas, quando o bicho repetiu a ação, percebi: ele estava me mandando à merda, me mostrando o famoso dedo. Olho para o ex, ele abre o jornal e me aponta uns versos de Bolívar Escobar. Leio. Faço um sinal de concordância misturando movimentos com os lábios e com a cabeça.
– Bom, né? Também gostei da nova seção, Discursos de ódio. Ali tem caldo, hein, o Antonio Paradisi deu uma boa de uma tapa. Finn plantou a semente do ódio de classe…
Bato palmas. Zeh volta a me ignorar, ele tá meio estranho hoje. Ergo o jornal tapando o meu campo de visão para além do jornal. O ex faz o mesmo. A cena tem algo de Magritte, ou, mais precisamente, uma versão impressa do ensimesmamento virtual. Janelas de papel e tinta; janelas de silício e petróleo. Quando partimos a fatia do tempo e baixamos as nossas armas, não estamos transtornados:
– Porra, Zeh, tô vendo aqui no Editorial. Eles estão saindo do preju. Acho que contrataram o ombudsman errado. Agora eles vão pro buraco! Literariamente falando, posso dizer, sou pior que uma pandemia.
Gargalhamos.
Aliás, leitores, ombudsman, em sueco, é ouvidor. Já que se trata de um impresso, tecnologia superada até para embrulhar peixes, a minha ouvidoria vai oferecer o número de um orelhão (telefone público, jovens, depois eu explico) para contato a partir do mês de fevereiro.
Aí, palavreiros rústicos ou eruditos, vocês poderão me xingar à vontade: isto, isso, aquilo.
(Outra) carta aos leitores em (outros) tempos difíceis
Editorial extraído da edição de janeiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Chegamos ao início de um novo ano carregando as marcas de 2024, quando conseguimos a façanha de fechar nove meses no vermelho – um recorde não atingido desde 2019. Os últimos meses exigiram de todos nós uma série de novas habilidades para enfrentar percalços que insistem em testar nossa capacidade de seguir adiante, não sem repensar o modelo de negócio e o próprio negócio em si. Será o momento de parar? O nosso corpo de assinantes finalmente… cansou? Em meio às incertezas, é reconfortante observar que, mesmo quando nosso pequeno mundo parece vacilar, o jornal impresso segue como um abrigo seguro, uma alternativa, uma ponte entre o caos e o repouso. Lembremos que 2024 foi repleto de intensos debates sobre os limites e os transtornos provocados pelo excesso de tempo diante das telas. Brain rot, de “cérebro apodrecido” ou “atrofia cerebral”, foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford.
Ao virarmos a página do calendário, refletimos sobre os desafios enfrentados e renovamos o desejo por um ano melhor. Todos os janeiros carregam em si essa promessa de recomeço, de página virada – para usarmos uma imagem gasta –, mas também nos lembram de que o ciclo de dificuldades faz parte da própria experiência humana. Talvez, soando um pouco como Osho (pronuncia-se Oxxo), ao reconhecermos a repetição desses padrões, podemos assumir tanto as dores como as possibilidades de transformação que elas trazem.
Para muitos de nós, escrever e ler não são apenas atos culturais, mas também atos de manutenção e de escape. É verdade que as crises têm cobrado seu preço também deste universo. Pequenas editoras lutam para lançar seus livros, livrarias de rua resistem ao fechamento e ao mercado predatório digital, e escritores enfrentam o dilema de criar em meio às pressões cotidianas, como pagar aluguel e tratamentos médicos. A vida custa – inclusive, está bem mais caro o cafezinho que acompanha a leitura habitual de jornal. Ao mesmo tempo, nesses momentos vemos nascer iniciativas coletivas, projetos colaborativos e movimentos que reafirmam a força da literatura como um bem comum. A produção literária se transforma, encontra novos meios, alcança novos leitores. Ou, então, assumimos de vez que a literatura é um privilégio e vamos todos assinar o streaming menos invasivo por R$ 59,90 ao mês.
Aos nossos leitores, queremos dizer: estamos aqui. O Jornal RelevO continua como um espaço para acolher vozes diversas, para impulsionar novos autores e praticar algum humor. Seja parte deste exercício de continuidade: leia, escreva, divulgue, compartilhe, assine.
Que 2025 seja um ano melhor.
Por uma boa leitura,
Equipe do Jornal RelevO
