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Zeh Gustavo: SOL DOS TRÓPICOS PRODUZINDO UM HOMEM PLÁSTICO: notas sobre a malversação do silêncio público e de como um alívio pode ser falso, dependendo do encosto
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Silêncio…
O sambista está dormindo
Ele foi, mas foi sorrindo…Geraldo Filme, “Silêncio no Bixiga”
Confesso: é armação para te pegar, mais uma vez! Tudo urdido e aloprado para terminar como não começou: título longo (comum à minha poesia de 23 leitores), ecos de falsete acadêmico (comuns ao nosso pícaro jornal), plágio de versejo da edição anterior (comum às demais colunas, mas ausente da inaugural – a que belo dum fdp sem originalidade o Conselho Editorial não negou o mandato!). Não se preocupe: não vai ficar tudo bem, ou até pode, mas esta porta se fechará (entreaberta), automecanicamente (afinal, trata-se de um impresso!), ao toque de algo próximo dos 2 minutos. Tum, tum, tum…
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Dizem que a saideira nunca termina. Ainda que acabe. É o que espera todo cantador e verseiro. Anormalmente, em vão.
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Com o “Sol sempre sobre a cabeça” escorrem os versos solturnos do tropical Daniel Anchieta Guimarães Lobo Pinheiro (quase dou cabo da cota de caracteres!), a nos dar a deixa, como a Enclave ao defenestrar o atual regime de abuso de telas: nem tudo que reluz é ouro. Esse é o ditado mais certo – até o próximo.
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Grita a Enclave (eu odeio CAIXA-ALTA , alô Desclassificados de janeiro): DIMINUAM O MALDITO BARULHO. Detalhe: sem exclamação! Como as telas “secam os olhos”, o barulho nos poda o alcance da voz.
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Nada está tão ruim que não possa piorar, mas pense pelo lado positivo como a Maria Rosa dos Extremos (eu que sempre considerei o RelevO como um auto da desajuda, viadamente mor-ri!, ao ler o texto dela): melhor manter o inimigo por perto. Apresentamos nosso sucessor em ombudsmância: Rafael Maieiro é botafoguense (eles apareceram!), escritor e, nas horas nem vagas, repórter das revoluções em reforma, com o perdão do tantão de erres (e erros). Bardo do caos bem editado, poeta profundo (sei lá o que isso quer dizer!), não o convide para beber: você sempre vai gastar uma baba e seu próximo sol não restará garantido.
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Em tempo, na falta dele: não que não existam sóis gelados, mas cá atacamos pelo flanco do lugar-comum com que arvoram sua imagem de inexpugnável lugar do recomeço radiante. Brilhando num imenso cenário, o sol também pode te enganar – mais uma vez! Sobretudo se você viajar naquela vibe de “quem depressa quis a superfície / tanto quanto o oceano fundo”; e deitou nas ondas sem discernir qual delas agarrar pelo rabo para ir à terra; e viu se perder “o mar nas mãos à deriva”, como nos diz Fernanda Nali de Aquino.
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Como o RelevO e a simpática Bladnoch (Zanella e eu estamos empenhados em ganhar um presentinho de Natal da miúda e tradicional fábrica escocesa de whisky!), Maieiro é daqueles empenhados em formular “uma resposta às engrenagens de um sistema que nem sempre reconhece o valor do peculiar e do pessoal, transformando tudo em opacidade linear”, como bem decantou o último Editorial.
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No sufoco, apelar à cadeira velha da guerra pode dar aquele alívio imediato, mas a coluna há de pagar alto preço, depois. Juro, não é etarismo: é tecnologia. Quando é mau o encosto, pior o desgosto! – é nóis, mano, na lida de legar às próximas gerações os nossos próprios ditados.
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Autocitação para disfarçar a ausência da requerida erudição para ocupar o espaço? Diga lá na edição que vem como o sol a tumultuar quem virou a lua na noite, ombudsmano Maieiro! Que fazer?! Nesta hora fatal, e na teima inconstante daquele negar-se a ser mera poeira, relembro mesmo é verso (im)próprio, como mais um desdito de pessoinha tão amorosa quanto à-toa: “Eu não aceito me despedir”.
Dobras de 2024: ventos contrários, páginas viradas, publicando sob sol e chuva
Editorial extraído da edição de dezembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
2024 foi e ainda é um ano que merecia virar personagem do RelevO: cheio de nuances, tropeços e desvios, daqueles que a gente acompanha com uma mistura de desconfiança, preocupação e esperança, torcendo para um bom ponto de virada, como se o arco narrativo estivesse próximo do final feliz. No limite, como todo bom personagem de humor caricato, 2024 conseguiu arrancar um sorriso de leve e alguma faísca de otimismo. Nos vemos na canção ‘Aprendizagem’, de Yamandú Costa (não confundir com o personagem Yamancu Bosta, que já constou em nossas páginas): “Quando lembro cada página do meu passado / Nunca me arrependo / Do que foi lembrado / Do que foi riscado / E dado pra viver”. Todos temos o nosso tempo de aprender.
No aspecto financeiro, foi especialmente desafiador. A instabilidade nos obrigou a fazer malabarismos que dariam inveja a qualquer trapezista. Mas sobrevivemos, sobreviveremos. Aliás, sobreviver parece ter virado nossa especialidade desde 2010 – e assim pensamos até quem sabe termos o mínimo controle dessa trama, apesar de não vivermos uma semana sem alguém sugerir que sejamos um periódico online.
Aprendemos muito. Descobrimos que consistência e teimosia são ferramentas indispensáveis quando os recursos estão em falta. Com mais coragem que precisão, seguimos publicando. Fomos em diversas feiras literárias independentes pela primeira vez – e não passamos vergonha. Aliás, até fizemos bonito, se nos permitem a modéstia de quem levou uns “não” educados antes de ouvir alguns “sim” pelo caminho. O RelevO tem 14 mil seguidores no Instagram e uma coleção de mais de 27 mil negativas ao longo de sua história. Somos especialistas em obter recusa. Outro número interessante: depois da assinatura, mais de 3.500 indivíduos desistiram de seguir conosco ao longo de quase 15 anos.
Outro marco importante foi ampliarmos nossa distribuição. Agora, temos leitores em lugares onde nem sabíamos que chegaríamos, além de estarmos cada vez mais próximos de chegar ao patamar logístico que tínhamos antes do início da pandemia. E sim, ultrapassamos a marca de 1.000 assinantes. Sabemos que isso não nos torna nenhum gigante do mercado, mas, para nós, é um feito enorme. A cada assinatura renovada, a gente festeja como quem desenterra um tesouro escondido no quintal. (Ok, sem exageros – é algo mais prosaico, como encontrar dinheiro esquecido no bolso do casaco.)
Queremos que 2025 seja o ano do Jornal. Nosso plano é participar ainda mais de eventos independentes. Queremos que a nossa lojinha finalmente saia do papel e comece a funcionar – e queremos lançar o livro dos 15 anos do RelevO, com os nossos melhores textos publicados de 2015 pra cá. Afinal, temos o RelevO 5 Anos, que, inclusive, pretendemos relançar no pacote de novos erros editoriais.
Também estamos de olho em algo ousado: ter menos prejuízo. Quem sabe até um dia chegar no tão sonhado “se pagou”. O breakeven constante. 2024 foi um ano de nove meses no vermelho. Mais que isso, queremos continuar nos divertindo. Publicar bons textos, seguir como um espaço onde leitores e escritores se sintam em casa, mas não a ponto de querer trocar assinatura por texto publicado.
Que venha 2025, portanto! Continuaremos aqui, materializando o calendário, rabiscando futuros, inventando projetos e provando que um jornal independente pode, sim, seguir em frente – mesmo com alguns descompassos. Quem sabe, no próximo editorial, estaremos comemorando não só a sobrevivência, mas também o encontro leve entre a incerteza e a nossa narrativa.
Edição de dezembro de 2023
Amanda Vital: Ombudswoman 12: é hora de dar tchau :(
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Car_s leitor_s, uma hora tinha que acabar, né? Quer dizer, ficar um ano aqui abancada no mesmo espaço, a bunda começa a doer, a perna prende a circulação, as costas começam a travar, essas coisas de velho.
Chega ao fim minha temporada enquanto ombudswoman do RelevO (e fiquei até um pouco mais do que o plano inicial, pela alegria minha — e espero que vossa também). Que os textos aqui publicados nesse período tenham divertido um pouco mais a rotina de vocês, querido leitor, querida leitora. Que me perdoem pelos textos ácidos a mais ou bonzinhos a mais (ou a menos, em ambos). Que me perdoem pelos textos mais fraquinhos, que sei que fiz. Que tenham sido úteis as pequenas anotações, os comentários, as resenhas, as opiniões. Obrigada pelos retornos, pelas mensagens enviadas inbox, pelas críticas & elogios & reclamações publicadas no correio dos leitores.
Não sei escrever despedidas, não. Hoje, por fim, não vai ter textão.
Eu só agradeço muito mesmo a oportunidade.
Ao Nuno Rau [ombudsman anterior], ao editor Daniel Zanella, à equipe toda do RelevO e sobretudo a vocês.
Obrigada pela estadia leve e muito querida.
Da redação: A partir da edição de janeiro, o espaço de ombudsman será preenchido pelo escritor, compositor, cantor e ativista cultural Zeh Gustavo. Também é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2020) e licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2000).
Inesperadamente, leitores
Editorial extraído da edição de dezembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Novembro foi um mês movimentado — e nem compramos um Playstation na Black Friday. Comparecemos à Flip com uma edição especial do RelevO, em parceria com a Casa Queer. Fomos — editor e editor-assistente — na noite da quarta-feira (22), incomodados por Fluminense e São Paulo na rádio. Entre a visão comprometida pela neblina e jatos de água proporcionados por caminhões, chegamos em Paraty na quinta de manhã, após nove horas praticamente ininterruptas de deslo(u)camento, um tanto anestesiados pela breve passagem por um Graal Route Café NYC Market, na Rodovia Presidente Dutra.
Logo ao entrar no Rio de Janeiro, amaldiçoamos Paraty com a energia soturna do RelevO, fazendo a luz da cidade (inteira) acabar na nossa primeira noite. Tentamos, em um ato de ligeiro desespero, ir para outra cidade em busca de suprimentos e de um pouco de energia elétrica (difícil ler jornal em uma noite sem luz…), porém apenas estendemos nosso contato com a chuva. Na sexta-feira, circulamos, distribuímos exemplares (mais de 5 mil) e experimentamos o café com whey gratuito na Casa Folha. E cachaça. Voltamos para casa projetando uma circulação mais pujante para uma edição 2024 na FLIP.
Para o futuro próximo, precisamos/queremos participar mais das feiras e festivais de literatura. Além da distribuição direcionada a bibliotecas, pontos culturais e espaços de promoção da leitura – hoje enviamos para cerca de 200 pontos de forma gratuita e financiada pelos nossos assinantes –, entendemos que o público-alvo de tais eventos pode alçar o RelevO a um novo patamar de envolvimento com seus leitores. [Quem é o nosso leitor ideal? Aquele que entra em um texto sem pré-julgamentos, potencialmente curioso, sobretudo, gosta de ler e se divertir.] Também acreditamos que a distribuição direcionada pode ser de alta valia para os nossos anunciantes, que demonstraram engajamento financeiro a ponto de pensarmos em novas edições temáticas, para desolação dos designers e diagramadores do periódico.
Feiras e eventos, em geral, são bastante benéficos ao RelevO (e a qualquer pequeno comerciante que descobre seu nicho). Afinal, a probabilidade é muito maior de encontrarmos interessados na assinatura em qualquer aglomeração de leitores, escritores e editores do que batendo de porta em porta (física ou digital). Para tanto, naturalmente, precisamos de orçamento, de ações regulares de captação de recursos e do posterior custeio da logística. Ao menos, temos uma certeza: o RelevO sabe ser regular (regular!) e certamente podemos interessar àqueles que queiram seus projetos, livros, textos, editoras circulando no público que está atrás de algo para dizer “fui”, entre uma estranha bebida láctea gratuita e uma queda de energia. Também não desconsideramos o Jornal como substituto (ineficaz) do guarda-chuva.
Uma boa leitura a todos.
Edição de dezembro de 2022
Nuno Rau: Ombudsman na pista pra negócio [ou: o fim pode não ser o fim]
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
A realidade é dura, car_s leitor_s, e eis que me encontrarei, depois do fechamento da presente edição, demitido de minha tão amada função de ombudsman do RelevO. E não me adianta vociferar contra os editores, brandir com virulência frases de efeito sobre as cruéis leis de mercado, a insensibilidade do capitalismo neoliberal: nada disso seria verdade. Eis que me encontro demitido porque essa é a beleza da função de ombudsman no RelevO: ela é rotativa, e no mês que vem outra cabeça virá dialogar com as páginas do jornal, suas qualidades, eventuais fragilidades, idiossincrasias, bem como com a voz de leitor_s que, pela natureza da mensagem, reclamam (e merecem) diálogo. As linhas acima, com certo quê dramático, são apenas pra ressaltar o gosto com que desempenhei essa função, aderindo ao projeto editorial com amor, e tendo percebido mais ainda, de dentro, a sua inteireza, seu compromisso, sua ética.
No entanto, a função de ombudsman também implicou no diálogo com o presente: o texto da edição de novembro foi escrito sob uma atmosfera carregada de angústia, às vésperas do segundo turno das eleições mais dramaticamente decisivas desde a redemocratização, todos nós atravessados por certo desespero diante do claro avanço do fascismo sobre nossas instituições, com apoio do mercado e das classes médias, essas em que vamos imersos. Provisoriamente vencemos, uma vitória por menos votos do que se esperava, até porque, pelo que soube no contato direto com diversos pontos de meu Rio de Janeiro — que continua lindo e selvagem —, o voto de cabresto foi ostensivamente remixado ao arrepio dos tribunais eleitorais, e de modo tão competente, capilarizado, fragmentado, que nos faz entender o motivo da decepção do candidato fascista e dos milicianos mais próximos a ele: as estratégias espúrias por pouco não deram certo, e eles esperavam realmente ganhar. Não fosse o Nordeste, teriam logrado êxito.
Emergimos do outro lado do túnel nutrindo grandes esperanças, e eis que escrevo esta última coluna sob o céu de Paraty, pedaço de território em que agora se movem escritor_s, poetas, editor_s, leitor_s e outr_s louc_s de plantão em meio a muitos exemplares das classes médias que vêm espargir seu brilho fátuo e fake, edulcorado pelo que capturam por osmose ao discurso da propaganda, enquanto provavelmente sentem um frisson percorrendo a espinha toda vez que os telejornais ou outros veículos mencionam a palavra “mercado”, posto que seus prazeres são profundamente integrados a ele, chegando a emular suas leis mesmo quando não haveria motivo razoável para que isso ocorresse. O pior: esse quadro inclui as parcelas há bem pouco tempo despauperizadas. As classes médias são um fenômeno complexo. Sempre que penso nelas me lembro, entre o riso e a tristeza, de uma reunião entre o centro acadêmico e a direção do IFCS — Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, onde puxei algumas disciplinas, por interesse pessoal (meu curso era Arquitetura), no começo dos anos 1980. No embate político que se dava, a imagem que um amigo empregou para representar os corpos discente e docente do IFCS foi simplesmente genial, pelo poder de síntese de sua metáfora, pelo aspecto inusitado e escatológico, alcançando grande impacto por força do choque (estamos falando de um momento em que a ditadura civil-militar ainda vigia, por mais que estertorasse), e para mim sempre representou também uma imagem fiel das classes médias, onde quer que elas vivam. Nas palavras dele, que tento escavar na memória, “nós somos como aquela parte da merda que, quando bate na água do fundo, espirra e se gruda pelo meio do vaso, e aí ficamos contentes de não estarmos no fundo, mas quando derem a descarga, nosso destino é o mesmo”. Este é o sentimento que guia as classes médias, e faz com que sejam aderentes aos fascismos de toda cepa, e é dessa parcela da sociedade que saem os intelectuais que, em percentual não desprezível — utilizando aqui a terminologia de Gramsci —, agem como prepostos do grupo dominante, comprometidos que estão em garantir que a visão de mundo e as práticas sociais do povo estivessem afinadas com o desenvolvimento da estrutura econômica daquele grupo. Foram intelectuais dessa espécie que emitiram, quase em uníssono, a frase “o mercado reagiu negativamente” quando Lula reafirmou seu maior compromisso de campanha que acabar com a fome é mais importante que respeitar o teto de gastos (que deveria ser entendido como teto de investimentos no bem-estar social). Para combater esse estado de coisas, temos outros intelectuais, dos quais Chico Science fez outra brilhante síntese: “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar”. Desorganizar a visão de mundo dominante, desorganizar as bases do capitalismo, que, em sua forma mais estrita, recende a fascismo.
A última edição é toda dedicada à Copa, ao futebol, à literatura dos países que estão na competição, e já vamos quase pela metade do texto sem nada falar sobre a relação entre a pelota e a pena. Pois aqui vamos, então, auxiliados por Pasolini, que, em texto descoberto por meio do livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik, fala do futebol como algo que oscila entre a poesia e a prosa. Pasolini acabara de ver o mundial de 1970, e estabeleceu uma relação entre o futebol-prosa da seleção italiana (alheio ao drible por preferir a “prosa coletiva” da construção da jogada ensaiada, o gol nasceria como a conclusão de um raciocínio tornado visível pela organização coletiva), e o futebol-poesia do escrete brasileiro (o drible, o toque de efeito, a alegria gratuita). Na verdade, levei o equivalente a duas odisseias (em tempo, sem dúvida, e parcialmente em atribulações) até começar a ver o futebol sem preconceito. Não estou muito mal acompanhado, tenho a meu lado Lima Barreto, “que viu na adoção do esporte inglês no Brasil a degradação da cultura intelectual, a afirmação de um poder tiranizador e truculento, e uma sobre carga racista que a abolição havia atenuado”, como nos relata Wisnik. Se o velho Lima não estava completamente equivocado, também não acertou em cheio, porque não supôs o que nossa permanente vocação antropófaga faria com o esporte bretão nos campinhos de várzea, de onde surgiram deuses como Didi “Folha Seca”, Garrincha, Tostão, Pelé e talvez o jovem Richarlison, de quem sei pouco mais do que ter vindo do Espírito Santo, e demonstrar uma ética bastante precisa sobre questões sociais. Na contracorrente da visão do futebol que levei anos pra construir, como uma realidade mais complexa e não redutível ao bordão “esporte-alienação”, a percepção de que o mercado (sempre o mercado) atua como um vírus se combinando com as entranhas do esporte, catapultando meninos despreparados ao patamar de milionários em geral deslumbrados que não têm nada a oferecer como modelos para meninos do futuro além da habilidade de seus corpos em campo — não falo aqui do futebol das mulheres porque segue, ainda, outras lógicas, espelho que é das estruturas da sociedade: mulheres executam as mesmas funções ganhando menos, e com menos visibilidade, mesmo apresentando, não raro, maior profissionalismo, desempenho, dedicação, talento.
Como nada é simples, o futebol é também um campo privilegiado de observação do social, reproduz suas grandezas, suas mazelas, as paixões, exclusões, e na literatura, assim como na canção popular, no cinema, nas telenovelas, e em todas as demais manifestações da arte e da indústria cultural, funciona como motor de obras fundamentais — o painel traçado por RelevO é um testemunho disso. Entre os 32 textos selecionados para a edição de novembro, alguns são a representação da complexidade que se move sobre o idioma de cada povo, e a espessura com que certos poemas e trechos de prosa capturam esses movimentos complexos sob os códigos da linguagem nos atinge como um dardo. Os poemas de Elke Erb, Ghazi Al-Gosaibi, Kim Chun-Soo, Akiko Yosano, Irit Amiel, sem falar no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, sua permanente investigação sobre o mar e a alma humana, e nos versos de Dylan Thomas, sobre seu/nosso ofício ou arte amarga, essa que nos traz aqui para indagar nos versos de tantos lugares do mundo a forma de nosso rosto.
Ao longo desses 12 meses penso não ter feito outra coisa senão perscrutar o que de nosso rosto fragmentário estava posto em cada página do RelevO, o quanto de nossa seiva comum percorria as fibras de celulose das páginas do jornal, imantadas pela tinta negra. O desenho desse rosto será cada vez mais importante como guia para fora do labirinto para onde nos vimos conduzidos, um pouco anestesiados que estávamos, talvez inebriados com as conquistas do campo progressista, parcas ainda, mas conquistas, relativas, mas conquistas, incompletas, mas conquistas distensionando relações, redimensionando estruturas, reelaborando percursos. Houve um lado positivo nesse habitar o labirinto: ao longo da dolorida estadia pudemos contemplar, ao menos parcialmente, a profundidade do abismo que existe quase em todo o entorno, como um fosso, e mesmo que ainda dentro dele conseguimos agora entrever a estreita passagem de volta, como um nada fácil contorno que teremos que cumprir até retomar o empuxo anterior, agora com certeza — sim, esperemos isso — com um sólido princípio de realidade. Queria deixar nessas palavras finais uma provocação aos editores do RelevO, e também a editor_s de todas os veículos de literatura, a escritor_s, poetas, leitor_s: que ações concretas podemos fazer, com ou sem apoio do Estado, para nos afastarmos cada vez mais do labirinto e do abismo que é seu entorno imediato? De que modos podemos sair em campo, mais ainda que antes, com mais força, mais assertividade, mais atenção e fúria, para fazer da literatura um instrumento ainda mais concreto e efetivo de transformação social, sulcando mais fundo a realidade desse presente conturbado?
Por fim, meu muito obrigado aos editores do Jornal pela parceria incondicional, a tod_s _s leitor_s pela interação possível, e que esta edição, que vocês têm em mãos agora, seja um sinal do novo tempo que devemos fazer com nossos corações, nossas mentes, nossas mãos, nossos corpos.
2023: logo ali
Editorial extraído da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.
Chegamos à última edição de 2022. Neste ano de pós-pandemia, eleições e Copa do Mundo (e do primeiro Encontro Ufológico de Joinville), o RelevO continua imprimindo ininterruptamente, seguindo sua sina de ser de papel e de literatura desde setembro de 2010. Provavelmente, quando esta edição chegar às suas mãos, já saberemos que fim teve o Brasil na maior competição monoesportiva do planeta. Em novembro, para lembrar, fizemos uma edição especial com a literatura dos 32 países que disputam a Copa do Mundo. Não é segredo que gostamos muito de futebol e, em dezembro, nos aproveitamos das analogias esportivas para refletir sobre os últimos 12 meses.
Se o Jornal fosse uma seleção, seria, quem sabe, o Irã – organizado e aplicado, mas limitado e distante de uma grande liga? Temos uma equipe de apenas seis pessoas. Ou então a Croácia, com um futebol equilibrado e rompantes técnicos, mas com poucos recursos humanos para dar aquele passo adiante e se tornar grande? Temos, como fonte de renda, apenas assinantes e anunciantes privados. Seria alguma seleção que não foi pra Copa? Nunca nos sentamos nas principais mesas do meio literário.
2022 foi um ano desafiador sob muitos aspectos, com aumento de 23% de custos operacionais em uma ponta, diminuição do nosso corpo de assinantes em 15% em outra ponta e aprimoramento da nossa comunicação interna, com a circular, a Enclave e a Latitudes unidas em uma única base de controle (Substack). Conseguimos, enfim, centralizar toda a nossa produção de conteúdo digital, ajustar questões estruturais tão importantes quanto entediantes do nosso site e deixar cada vez mais evidente as vantagens de alguém nos assinar por apenas 70 reais ao ano.
Buscamos convencer nossos novos e velhos assinantes pelo trabalho contínuo em prol do que consideramos o melhor da literatura brasileira contemporânea. Não conseguimos competir em preço, mas nos esforçamos editorialmente – e não devemos favores. Somos uma defesa forte que busca aproveitar suas poucas chances de gol. Se subirmos demais ao ataque, seremos amassados. Assim, crescemos lentamente, adaptando-nos às intempéries naturais da vida. Estamos distantes das maiores competições do planeta, mas sobreviveremos até a festa de encerramento.
Uma boa leitura a todos.
Edição de dezembro de 2021
Osny Tavares: Voz, posse e mandato
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O RelevO, em seu aparente compromisso com a autodesimportância, esconde de seus leitores o esforço de produção para cada edição. Parte desse corre foi relatado no editorial da edição anterior (novembro), longamente dedicado a uma reflexão logística.
Naquele texto, um elogio-desabafo, lembrou-nos que é jornal. Como tal, repete rotinas, consolida processos, assimila práticas. Em suma, cria trabalho pra si. E talvez por isso mesmo não fale disso.
A triagem de uma grande quantidade de colaborações é um exercício de disciplinado interesse pelos outros. É preciso lê-los e arranjá-los num todo coeso a cada mês. E assim repetidamente, nadando numa piscina de pautas frias.
Os colaboradores deveriam retribuir o interesse se fazendo um pouco mais claros.
Qual é o gancho?, como dizíamos na redação.
Pensando o jornal em uma articulação com o mundo, por que este texto deve ser publicado agora? Há uma justificativa na qual eu, o autor, não esteja incluído?
O que eu estou fazendo com o espaço que me foi cedido?
Quem cria, busca um ideal. Qual é o meu?
Edição de dezembro de 2020
Sandro Moser: Cartas na rua
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
No começo da carreira convivi com um jornalista da antiga que tinha fama (exagerada) de polemista e vivia em guerra aos leitores que escreviam cartas à redação. “Escrever para um jornal é a pior forma de solidão”, repetia. Sua rotina sadomasoquista começava com desaforos matinais aos críticos até o dia em que desafinou com a pessoa errada (“vá chupar o pau do Felipão”), o que lhe custou o emprego.
Em geral, os leitores são odiados pelas publicações. Em especial, quando cobram erros e posições. Não acontece neste RelevO, que, se pudesse, levava cada um de seus leitores para jantar fora. Aqui, não há a figura do editor que responde as reprimendas com ironia arrogante. A maioria das publicações que precisam de assinantes mantém um.
Em revistas como Mad, Placar e Piauí — para falar de tempos e públicos diferentes —, a voz que confrontava os leitores era uma das mais lidas. No Pasquim, Henfil e Jaguar, estrelas da companhia, faziam este trabalho.
O RelevO terceiriza a função ao seu ombudsman, órgão impessoal e transitório, que deveria fazer a defesa dos interesses dos leitores expressos principalmente em suas cartas, mas hoje falha por inépcia e preguiça.
Na edição de novembro, porém, uma carta se destaca. A leitora Rosilene Gomes, com a gravidade de sua prosódia lusófona, faz a pergunta fatal: “Boa tarde !! podes me dizer o que é o Relevo ?”
Que grande questão. Existencialismo no Estácio. Não pode ficar sem resposta.
Em parte, o editorial se ocupa de respondê-la: um jornal literário sem mecenas e que não encosta em dinheiro púbico. E que, portanto, não precisa lamber botas e puxar sacos. Nem se fazer de descolado para agradar ninguém. E que às vezes (pode, por que não?) é paneleiro, desagradável, pornochanchável. Abre páginas para quem não escreveria em nenhum outro lugar e fecha para quem mais queria aparecer.
É uma amálgama desigual que mistura textos de hierarquia como os de Ranieri Carli, Racuel de Queiroz e do grande Rodrigo Madeira a outras prosas mais juvenis. Assim é que deve ser à “moda do lobo, sem amigos, sem mulher e filhos”. Termino destacando as páginas das duas poetas Julia Raiz e Maria Luiza Artese, que me foram apresentadas aqui e torcendo para que este ano de merda termine sem matar mais amigos meus.
Edição de dezembro de 2019
Robson Vilalba
Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.