Swing de amor nesse planeta: os trinta anos da maior banda brasileira

Extraído da edição 115 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

por Marceli Mengarda, a Burocrata — publicado na edição de abril do Jornal RelevO, com diagramação especial (de Marceli Mengarda, a Burocrata).

Tem uma teoria sobre a popularidade do reggae em São Luís, capital do Maranhão e considerada por muitos a “Jamaica brasileira”, segundo a qual o ritmo emplacou especialmente nas periferias após chegar aos dials ludovicenses pelas ondas de rádio AM de estações caribenhas, que percorrem distâncias bem mais longas que a FM. Se foi isso mesmo ou se na verdade algum marinheiro só largou um vinil do Bob Marley ali no porto, pouco importa. Este texto é sobre o Skank, então uma imagem envolvendo reggae, rádios e situações em que ninguém apostaria serve bem demais para ser desperdiçada.

Se você tinha ouvidos funcionais e um aparelho de rádio nos anos 1990, é absolutamente impossível não ter ouvido a voz do psicólogo Samuel Rosa de Alvarenga em algum momento. O Skank é talvez a banda que chegou mais perto da unanimidade em território brasileiro e, enquanto comemora trinta anos do lançamento de seu primeiro disco, está fazendo uma turnê de despedida dos palcos. Antes de nos perdermos pensando em por que todas as coisas boas sempre têm um fim, cabe um exercício afetivo de elencar, com razões aleatórias e mais ou menos cronológicas, por que esta coisa (a banda Skank) é tão boa.

De início, bem, é uma banda mineira: Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti estavam todos em Belo Horizonte, o que já desperta a maior das simpatias. Impossível imaginar o pessoal comendo um espaguete no Bolão, em Santa Tereza, e não ser tomado por uma vontade de chegar junto, pedir uma dose de cachaça e perguntar se o Lô Borges não vai aparecer por lá nessa noite. A banda surgiu em 1991, mas o primeiro disco, Skank, saiu só em 1993. A ideia era trazer referências do dancehall jamaicano ao pop brasileiro, e o CD foi lançado e distribuído, no início, de maneira independente. Começou a fazer tanto sucesso que chamou atenção da gravadora Sony Music e o que se seguiu foi contrato, relançamento, tudo oficializado e nos conformes. Neste disco, tem uma versão de ‘I want you’, do Bob Dylan, com uma batida dub e uma letra muito bonita falando em realejos ancestrais e dândis de paletó chinês, que ficou melhor que a original – o prêmio para quem é ousado a ponto de unir os Bobs e colocar um pouco de Marley no Dylan. O som desse primeiro disco é cru e bastante regueiro, mas as letras estão vários níveis acima do que se ouve em música reggae normalmente: não há uma menção sequer à cor verde ou à planta que nasce da terra, e talvez esse seja exatamente o caminho. Emplacar uma banda cujo nome é uma variedade de maconha e não precisar mais tocar nesse assunto.

Em 1994, veio o Calango: uma capa com tipografia inegavelmente noventista e um pé ainda no dancehall, mas um pé que dança com muito mais desenvoltura, misturando com mais elegância as referências musicais (um dos melhores exemplos é juntar o tema do Peter Gunn a ‘É proibido fumar’, por sinal mais uma música que fala de maconha sem precisar falar de maconha). Discaço. Tem ‘O beijo e a reza’, que manda um “o sol na nuca e o corpo dela ofusca a luz do sol”, algo que o Milton Nascimento diria se tivesse escrito um reggae dub. Tem uma variedade musical mineira, o calango (han, han), que é recuperada em ‘A cerca’: o estilo é uma espécie de desafio verbal, um repente entre caipiras, mas musicalmente também vai até Recife, beija Chico Science e volta a Minas Gerais pelo Grande Sertão. No fim do disco, tem uma ‘Let ‘em in’ incidental em ‘Pacato Cidadão’ que já dá uma pista dos rumos McCartneyanos pelos quais a banda ia enveredar mais pra frente.

Calango tinha vendido um milhão de cópias e o Brasil todo dançava e cantava os hits dos mineiros, mas ainda não havia resposta para uma dúvida muito importante, que era a questão de a bola na trave alterar ou não o placar. Aí, em 1996, veio O samba poconé, começando com uma das dobradinhas de riff de guitarra + hey mais conhecidas da música brasileira em ‘É uma partida de futebol’, para responder: não, bola na trave não altera o placar. O disco de 1996 vendeu dois milhões de cópias e encapsula a Fase Seios do Skank: tanto na capa do disco quanto no videoclipe de ‘Garota nacional’, o mamilo feminino foi libertado sem reservas e sem incorrer em cancelamentos (sequer pelo revisionismo, o que é curioso). ‘Garota nacional’ foi a música mais tocada nas rádios brasileiras em 1994, liderou as paradas espanholas (!) por três meses e foi a única brasileira escolhida pela Sony Music para uma coletânea de comemoração do centenário da gravadora. A batida alegre e funky, aliada a um refrão chicletíssimo, é indefectível e explica o alcance inimaginável da canção – uma anedota bastante pessoal que ajuda a colocar as coisas em escala é a forte lembrança dessa música começando a tocar no som mecânico da festa de quinze anos de minha irmã mais velha, num salão de igreja de uma cidade do interior de Santa Catarina, e a emoção que tomou conta de todos os adolescentes noventistas lá presentes. Hoje, se você olhar em um serviço de streaming como o Spotify, vai ver que ‘Garota nacional’ tem menos da metade dos plays de ‘Sutilmente’, por exemplo, então entendemos o quão difícil é explicar esse tipo de coisa à juventude streamer, mas aconteceu demais.

Um videoclipe pra lá de seios.

Há quem, depois de fazer muito sucesso, não sabe direito o que fazer com isso e perde oportunidades, abandona a chance de alçar voos ainda mais altos e fica no patamar onde está (ou, pior, tropeça e cai). O Skank sempre bancou o sucesso de forma aparentemente muito tranquila e segura. O Samba Poconé já teve mixagem em um estúdio de Nova Iorque e parceria com Michael Fossenkemper (que divide os créditos por ‘Tão seu’), além de três músicas com feat de Manu Chao e uma viagem completa pela América, do funk norte-americano à já tradicional mistura caribenha ao pop-rock latinoamericano que estava quebrando tudo. Enquanto o trabalho e as parcerias se profissionalizavam cada vez mais, o produto permanecia acessível – pop fino, bem trabalhado e que respeita o ouvinte. Poucas bandas conseguem manter esse equilíbrio com essa consistência, e os três primeiros do Skank consolidaram tanto a proposta quanto o conceito. Acertadamente, em 2018 a banda lançou uma série de EPs ao vivo chamada Os três primeiros – com mais músicas dos dois últimos, como deve ser. Tática esperta, defendida por teóricos sérios da música e corroborada por aqui, que poderia ser aplicada até a um Black Sabbath da vida (mas, aí, contando os quatro primeiros).

Em 1998, no Siderado, a batida dub já é um eco distante, mas há grooves finíssimos e verdadeiras joias do ar soprado por entre tubos de metal, como ‘Saideira’, a música que encerra o disco (e que, depois, ganhou um cover de Carlos Santana). A cota de música de festinha é atendida com glórias por ‘Mandrake e os cubanos’ – canção que ensaiou um revival nos convescotes de jovens descolados no fim dos anos 2010, sendo interrompida abruptamente pelas restrições pandêmicas –, parceria de Samuel Rosa com Chico Amaral, saxofonista que divide a composição de tantas outras canções. Outra parceria que está ali e vai frutificar ainda mais nos anos seguintes é a de Nando Reis, que presenteou o Skank com ‘Resposta’, uma das mais lindas letras de término do cancioneiro popular, feita para Marisa Monte – a despeito de os Titãs todos ficarem de cara, porque a música fez um sucesso danado. Às vésperas do novo milênio, em 2000, Maquinarama vem para completar a transição do som que passou a ter referências cada vez mais britpop beatlemaníacas – anunciadas, de alguma maneira, com aquela parte do desejo e o destino brigando como irmãos em ‘Três lados’, um claro aceno ao Oasis que só não vê quem não quer. Sem brincadeira, essa letra: “somos dois contra a parede / e tudo tem três lados / e a noite arremessará outros dados”. Né. ‘Balada do amor inabalável’ completa a cota de música que tocou em novela – outra das bem-sucedidas táticas de distribuição da banda, que emplacou 23 músicas em trilhas sonoras de telenovela, oito delas só em Malhação. ‘Canção noturna’, quase o que seria uma saga de Castañeda mas com mais romance e num deserto um pouco mais andino, é outra das excelentes composições do disco (aliás, descobrindo agora: um dervixe é um tipo de monge muçulmano, seja lá o que isso signifique. A gente também acredita em tanta coisa que não vale nada).

O carinho da torcida com o cover guitarrado de ‘Saideira’

O disco Skank (ao vivo), gravado em Ouro Preto em 2001, conseguiu outro feito admirável: ‘Acima do Sol’, uma música ainda inédita (e que não foi lançada em nenhum outro disco posteriormente), alcançou o topo das paradas, porque o pessoal estava querendo diversificar essa coisa de topo das paradas para ganhar também de modos menos convencionais. Nesse disco, tem ainda ‘Estare prendido en tus dedos’, uma versão em espanhol de uma música do The Police, mais uma generosidade da banda em fazer um cover melhor que o original, seguida por um novo arranjo para ‘Tanto (I want you)’ bem menos dub que a do primeiro disco. O novo milênio chegou e muitas coisas estavam mudando com o advento da tecnologia e essas frases feitas para falar dos impactos da internet que se popularizava e da telefonia celular se imiscuindo sorrateiramente em nossos bolsos e em nossas vidas. O Skank conseguiu fazer uma boa leitura da conjuntura toda, talvez também por estar numa transição sonora muito particular e específica – e, claro, respaldados pela consistência de uma carreira de dez anos sendo honestos e, para usar uma expressão contemporânea, entregando tudo.

Um cruzeirense absolutamente transtornado na vitória do cabuloso sobre o Huracán. Sai daí, Samuel, é perigoso!

Cosmotron, de 2003, foi uma espécie de divisor de águas. Ricardo Alexandre, no livro Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar, de 2006, tem um capítulo dedicado às relações dos mineiros com os fãs, outros músicos e a imprensa musical brasileira. Uma reunião da banda com os executivos da gigante Sony durante a mixagem do Cosmotron fecha o capítulo e é ilustrativa dessa natureza muito particular do Skank. Por ter chegado na gravadora já com um disco independente que vendeu muito bem, e por ter somado a ele dois discos que venderam bizentos milhões de cópias, a banda pôde ocupar uma posição muito mais independente do que se acredita possível nesses contratos. Assim, enquanto o pessoal ouvia o disco, os integrantes defendiam (com ‘simpatia e cordialidade’, segundo Alexandre) que o primeiro single do disco, antes do inegável single ‘Vou deixar’, deveria ser ‘Dois rios’. Funcionou: a música mais pianera-Paul-McCartney – uma das músicas mais bonitas de todos os tempos, inclusive –, foi lançada como o primeiro single, fazendo muito sucesso, e logo depois deixaram que ‘Vou deixar’ chegasse varrendo o Brasil numa catarse que só os grandes hits enérgicos para cantar a plenos pulmões são capazes de suscitar.

‘Vou deixar’ inaugura também uma categoria muito específica de Efeito Mandela, que é o de estar nas lembranças de todo mundo tendo sido a trilha sonora de formaturas que aconteceram antes mesmo de seu lançamento. Apesar de ter tocado à exaustão, perigando enjoar todo mundo com tamanho alto-astral, é engraçado que ela só tenha surgido só no sétimo disco da banda, já que é um dos momentos mais enérgicos das apresentações ao vivo da banda. Outra questão importante sobre o Skank: há muitas bandas que entregam uma boa performance ao vivo, animando o mar de gente que se posiciona ali e espera pular, levantar os braços e dar uns gritos em algum momento. Há muitas bandas que entregam composições complexas, letras que te fazem refletir mas que não necessariamente te fariam pular. Uma coisa não tem que, necessariamente, pressupor a outra: dá pra pular com uma letra que diga apenas “vamo pular” e dá para sentar e ouvir as mais poéticas do Milton Nascimento sem que essas experiências sejam diminuídas. Mas, quando uma banda junta as duas coisas, é preciso reconhecer o quanto isso é especial. Não por acaso, o pessoal do fã-clube – um produto extremamente noventista, assim como a rádio FM – estará lá, em quantos últimos-shows-da-última-turnê houver.

Em 2004, veio Radiola, uma coletânea dos maiores sucessos focada em Maquinarama e Cosmotron, trazendo também ‘Vamos fugir’, versão da maravilhosidade de Gilberto Gil que, segundo consta nas fontes, foi gravada para uma campanha publicitária da Rider (não lembrava, mas então tá). Dois anos depois, foi lançado Carrossel, com hits como ‘Uma canção é pra isso’ e ‘Mil acasos’ e diferentes tentativas de incorporar as novas tecnologias. A melhor de todas talvez tenha sido a banda ganhar, após um sem-número de discos de ouro, o primeiro Celular de Ouro do Brasil, por ter lançado o álbum Carrossel em formato digital em parceria com a Sony Ericsson – o modelo W300 vinha com todas as músicas do disco (lembra quando o U2 fez isso e todo mundo odiou e só queria saber como fazia pra deletar aquele álbum do iTunes?). Na toada tecnológica, teve ainda votação para escolher single de disco no site da banda (no álbum seguinte, com ‘Sutilmente’) e asseguram eles que ‘Vou deixar’ foi o ringtone com mais downloads no país.

O disco Estandarte, lançado em 2008, trouxe os últimos grandes hits inéditos: ‘Sutilmente’, uma parceria com Nando Reis (e uma música inegavelmente nandorrêica), e ‘Ainda gosto dela’, com participação de Negra Li que, salvo engano, é a primeira contribuição feminina numa gravação deles (esperando ser um engano mesmo; de todo modo, apesar da demora, a escolha foi muitíssimo acertada). Em 2010, veio o Multishow ao vivo, gravado no Mineirão. Foi uma despedida do estádio antes da reforma para a Copa do Mundo, não sem antes Samuel Rosa chamar a Máfia Azul para sacudir o gigante da Pampulha durante ‘É uma partida de futebol’. Essa música, a propósito, já é uma parceria com Nando Reis – reza a lenda que eles se conheceram no Rock Gol MTV, onde o Skank participou uma porção de vezes, consolidando também a posição de banda mais boleira do Brasil. Outro destaque do Ao vivo no Mineirão é a capa do disco, a partir de uma foto real, antiga e lindíssima da inauguração do estádio, em 1965, feita pelo fotógrafo Paulo Albuquerque.

Um trem bonito desses rebenta com nóis tudo.

Em 2011, teve mais um disco ao vivo, agora no Rock in Rio; em 2012 teve um revival do reggae com o Skank 91 e, em 2013, uma compilação dos #1 Hits com 25 canções entre os maiores hits (o famoso ‘só as boas’). Velocia, o disco de 2014, tem um tanto de parcerias com Nando Reis e uma pedrada para tocar fogo em todas as Babilônias com a ajuda de BNegão. Dali até 2019, quando anunciaram um hiato por tempo indeterminado e uma turnê de despedida, teve ainda a supracitada gravação dos três primeiros. Muitas coisas complicadas aconteceram nesse tempo todo e a relação do Skank (e da música pop como um todo) com a rádio FM parece acompanhar essa dinâmica.

Uma busca pelas músicas mais tocadas nas rádios brasileiras a cada década dá uma boa visão do fenômeno. Nos anos 1990, havia um equilíbrio entre os artistas internacionais – um tanto de R&B, um tanto de pop pós-roqueiro – e bandas nacionais de estilos diversos, desde o próprio Skank e os outros mineiros ilustres do Só pra Contrariar ao pop-guitarrado-creuzebeck dos Mamonas Assassinas, com algumas aparições do sertanejo hoje clássico, com duplas como Leandro e Leonardo. Nos anos 2000, o pop seguiu dominando as listas, agora com alguma expressividade de divas pop internacionais e um ensaio do que aconteceria uma década depois no estouro do sertanejo misturado ao pop, com artistas como Michel Teló e Victor e Léo – nessa década, o Skank ainda seguia lá, com músicas como ‘Sutilmente’ e ‘Vou deixar’. De 2010 para a frente, é muito difícil encontrar qualquer música que não tenha menção a cerveja ou motel no título ou que não seja de um cantor com letra duplicada no nome (numerologia, a grande parceira do famoso brasileiro desde sempre); uma dupla usando chapéu e cinto com fivelas exorbitantes sobre calças skinny ou mesmo uma mulher, desde que esteja cantando também sobre litrão e adultério. O agronejo, popnejo ou funknejo (diferentes digievoluções, que requerem alguém mais estudioso do tema para explicar) tomaram de assalto os dials das rádios FM brasileiras, complementando locutores que ficaram cada vez mais confortáveis para falar todo tipo de descalabro e, hoje, têm como única disputa à altura as rádios evangélicas (embora a real salvação seja mesmo a Antena 1, mas isso não vem tanto ao caso agora).

Como acontece com tudo que é bonito e complexo, não dá para afirmar categoricamente se a onda chorumosa que tomou este país é uma causa ou uma consequência de não termos mais hits inéditos do Skank. O que dá para afirmar – e, caso não tenha ficado claro nessa exposição extremamente puxa-saco – é que a banda se despede consolidada com um trabalho que fala por si e a coloca em posição de destaque seja qual for o critério de comparação. Um ponto fora da curva na música popular brasileira (e na música pop brasileira também), elaborado e acessível, com a antropofagia de sons e referências que só o brasileiro é capaz de engendrar. Já sabemos que vai ter um lugar diferente lá depois da saideira; não sabemos se vai ser bom mas, por enquanto, nesta última rodada, vamos brindar ao Skank.

Passeio musical de Concorde

Extraído da edição 104 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há alguns meses, na Enclave #98, fizemos uma digressão a respeito do lançamento de um quarto filme Matrix (que, por sinal – e coincidência –, estreia hoje). Tratamos de “globalização e uma ideia otimista de mundo digital” por meio do músico japonês Towa Tei, mais especificamente na música ‘Technova‘.

Pois bem, achamos ou fomos achados pela globalização otimista absoluta em forma de disco. Refiro-me ao álbum Jet Sounds (2000), do italiano Nicola Conte.

Nele, testemunhamos um europeu fazendo seu acid jazz com influências do mundo inteiro, inclusive – e principalmente – do Brasil. Esse eletrônico suave resgata os anos 1960 (daí a clara influência da bossa nova) e os embebeda em doses eletrônicas de negroni, rusty nail e bloody mary.

Podemos falar em gêneros musicais (acid jazz? Future jazz? Latin jazz? Lounge?), mas é muito mais efetivo tratar de sentimentos.

  • Jet Sounds é uma festa na piscina com gente bronzeada, coquetéis irrestritos, sem celulares e sem fila para qualquer banheiro.
  • Jet Sounds é um clube sofisticado ao qual você não teria acesso na vida real.
  • Jet Sounds é um passeio de Concorde: um sonho encerrado; uma máquina do futuro vivendo no passado. (E adivinha o destino do primeiro voo comercial do Concorde…)
  • Jet Sounds é uma relação tão confusa quanto prazerosa entre espaço e tempo (“chegue antes de partir“).

Próximo dos 30 anos, naturalmente carrego alguma saudade do início dos anos 2000 – até porque, convenhamos, chega de resgatar absolutamente qualquer coisa da década de 1990; está na hora de o passado virar a página.

Esse zeitgeist pré-11 de setembro (de que tratamos na edição 98 e que agora encapsulamos na produção de Nicola Conte) também tem seu apelo por servir como oposto ao sentimento de fronteiras fechadas, desconfiança incessante, polarização política e mal-estar tecnológico com que nos habituamos nos últimos anos, por motivos diversos.

Jet Sounds é a nossa descoberta tardia de 2021 e uma recomendação sólida para o próximo ano. Obrigado por acompanhar a Enclave: nos reencontramos em algumas semanas!


Brazilliance: entrevista com Andreas Dünnewald

Extraído das edições de maio (parte 1) e de junho (parte 2) do Jornal RelevO: as duas partes foram agrupadas neste link. O RelevO pode ser assinado aqui. Também apresentamos o Brazilliance na Enclave, nossa newsletter, que pode ser assinada gratuitamente.

Brazilliance: o alemão por trás de um catálogo extraordinário da música brasileira

Descobrimos o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais, isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas. Há 167 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século XX, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes extraordinárias, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. A partir disso, um novo universo se abriu: no Brazilliance, editado pelo alemão Andreas Dünnewald, conhecemos e reconhecemos a música brasileira. Logo nos interessamos, portanto entramos em contato para entender quem (e o que) move um trabalho tão fino. Nesta e na próxima edição do RelevO, compartilhamos nossa conversa e incentivamos, convidamos, convocamos qualquer leitor com o menor interesse na música brasileira a acessar o Brazilliance, um verdadeiro baú boiando pela internet. Dünnewald também é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

JORNAL RELEVO: Nossa primeira pergunta é… por quê? Digo, por favor fale um pouco sobre quem você é e o que gerou esse seu interesse em música brasileira.
ANDREAS DÜNNEWALD: Nasci em 1964 e moro em Frankfurt am Main (Alemanha). Em uma vida passada estudei design de moda, gráficos de moda, design de estampas e alfaiataria em Viena (Áustria). Apesar de certo sucesso inicial depois de retornar, eu não gostava da indústria e a deixei após três anos. Na minha vida atual, trabalho em escritório, o que não era exatamente o plano, mas foi apenas uma das voltas e reviravoltas.
Foi no verão de 2007 que eu, enquanto procurava algo que não ouvia havia muito tempo em minha coleção de discos, deparei com um disco de João Gilberto (que, depois descobri, era uma compilação de seus três primeiros álbuns). Eu conhecia a bossa nova que os brasileiros haviam gravado com músicos de jazz nos Estados Unidos, mas – subitamente me dando conta de que aquele era o som original – me perguntei: como a bossa nova soava no Brasil? Como era o resto da música [brasileira] naquele tempo? Quem eram os músicos e cantores?

JR: O que veio primeiro, sua curiosidade pelas capas de discos brasileiros ou pela música?
AD: Procurando na internet, me surpreendi ao encontrar sites cujos donos investiam horas intermináveis digitalizando discos esgotados e suas capas – e disponibilizando-os aos fãs para download. O melhor deles era o Loronix, do Zecalouro, um músico do Rio de Janeiro com uma rede que incluía alguns artistas da época. Loronix era um paraíso musical formativo, embora tenha existido por apenas três anos. Por muitos anos, o número desses sites cresceu constantemente, mas hoje há apenas alguns ativos, como o Parallel Realities, de Milan Filipović, na Sérvia, e o Toque Musicall, de Augusto TM, no Brasil. Eu tive a sorte de procurar exatamente na hora certa.
Aqui na Europa, existia (e existe) só um repertório curto disponível em CD, mas os downloads de vinil ofereceram a verdadeira extensão. Foi assim que descobri cantores e músicos que amei desde então, como Elza Laranjeira, Miltinho, Edison Machado e Moacyr Marques, bem como músicas cuja beleza eu não sabia que existia, como ‘Não Me Diga Adeus’, ‘Derradeira Primavera’, ‘Você Passou’ e ‘Murmúrio’.
Um amigo – que havia ficado igualmente impressionado com o que encontrei – me pediu para discotecar em sua festa de Ano Novo, e projetamos um slideshow com 300 capas de discos na tela para que os convidados pudessem ver aquilo que escutavam. Enquanto ajeitávamos o projetor e a tela, ainda em cima de uma escada, tive a ideia de fazer um livro sobre essas capas deslumbrantes. Foi assim que o Brazilliance começou como livro – apenas para mim e um público privado. Conforme o primeiro rascunho tomava forma, entrei em contato com uma gráfica recomendada por um amigo que trabalhava nessa área. Quando viajei os 200 quilômetros para visitar a gráfica e discutir a escolha de papel e a capa, para minha surpresa, eles me informaram que também tinham uma editora e que queriam publicar meu pequeno livro. Precisei de três anos e meio para, a partir daquela ideia na escada, segurar o livro em minhas mãos.

JR: Sobre o livro… Brazilliance é muito mais focado no design, certo? De que forma ele levou ao trabalho no site?
AD: Considerei acrescentar texto no livro, mas decidi que ele deveria consistir puramente em uma galeria visual. Há alguns livros semelhantes, mas (considerando que o meu seria meramente privado àquela altura) eu não tinha qualquer intenção de competir com eles. Bossa Nova e Outras Bossas, de Caetano Rodrigues e Charles Gavin, foi o primeiro e ainda é o melhor. Infelizmente, trata-se de uma edição limitada, publicada em 2005, que logo se esgotou. Ao menos consegui uma cópia usada, ao contrário do livro seguinte de Gavin, 300 Discos Importantes da Música Brasileira, publicado em 2008 e também esgotado rapidamente. Ademais, há o Bossa Nova and the Rise of Brazilian Music in the 1960s, lançado em 2010 pela Soul Jazz Records, em Londres, com uma diagramação adorável, mas bem menos completo e com alguns erros editoriais.
Enquanto finalizava meu livro, passei a construir meu site, afinal de que outra maneira o mundo saberia sobre o Brazilliance? Além disso, o site nos permite experienciar a música contida dentro dessas capas fabulosas. Para combinar os dois, eu baseava os artigos em páginas duplas selecionadas do livro, de cujas capas escolhia os cantores e músicos para os retratos e as playlists. Naturalmente, esse conceito não poderia continuar para sempre, por isso encerrei depois de 45 artigos e iniciei as páginas de músicas.

JR: Você já esteve no Brasil? Além da música, você mantém algum tipo de relação com a cultura brasileira?
AD: Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros, embora cerca de seis mil morem na minha região.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Você havia comentado que não fala português. Como isso afeta sua pesquisa? Você tem algum amigo brasileiro (ou português) para te ajudar – ou sequer precisa?
AD: Ao longo dos anos, aprendi algumas palavras das letras, assim como aprendi algumas das óperas italianas. Falar a língua certamente ajudaria com a pesquisa – e talvez algum dia eu comece a aprender –, mas ela funciona bem com os tradutores online.
Quanto às páginas das músicas, para mim é importante incluir as letras, e por sorte a maioria está disponível na internet. Nem sempre certas, no entanto. Por isso eu sempre as comparo acusticamente com as gravações originais antes de usá-las em um artigo.
Porém, traduções para o inglês [das letras] que refletissem precisamente a dicção e o estilo – portanto, expressão e emoção – seriam a conclusão perfeita para essas páginas. Sem saber as letras, nós (não brasileiros) definitivamente estamos perdendo algo. Traduções automáticas não compreendem as complexidades de uma língua, e muitos dos meus acessos vêm da América do Norte, Europa e Ásia – pouquíssimos entendem as palavras originais. Seria incrível se essa parte artística das músicas pudesse ser compreendida por todos, mas isso demandaria alguém disposto a traduzi-las, o que seria uma tarefa literária.

JR: Em todos esses anos, qual é sua maior surpresa ao lidar com a música brasileira (incluindo as capas)? No sentido de “meu Deus, isso é um tesouro escondido!”.
AD: Nos primeiros anos, claro, qualquer nova música, cantor, banda e arte gráfica parecia uma caça ao tesouro que desenterra joias. Entretanto, a maior surpresa foi quando o neto e o filho de Eddie Moyna me escreveram em questão de dez minutos.
Nos anos 1950 e 1960, designers gráficos sequer eram mencionados pelas gravadoras, e as grandes, como a RGE, não mudaram isso depois. Portanto, infelizmente pouquíssimos nomes são conhecidos. Cesar G. Villela aparentemente foi o primeiro a conseguir fazer um nome para si (que então passou a ser impresso nas contracapas), mas nada pode ser encontrado sobre outros, como Joselito, Maurício, Moacyr Rocha, Mafra – ou Eddie Moyna. Então foi um prazer muito especial – e completamente inesperado – escrever [o artigo] A Special Feature on Eddie Moyna depois que seu filho Carlos me providenciou algumas informações. Porque, até onde eu sei, trata-se do único retrato desse artista gráfico.

JR: Você é um colecionador de discos? Tem os discos físicos dessas capas que chamaram sua atenção?
AD: Alguns anos atrás, reduzi substancialmente minha coleção física, mas minha coleção digital consiste em cerca de 50 mil músicas, das quais cerca de 15 mil são brasileiras. Definitivamente corro risco de me viciar, mas hoje defino o HD do meu laptop como limite. Além de cerca de 80 CDs e 20 discos de vinil, minha coleção brasileira é digital porque é difícil comprar os vinis originais na Europa. Então, aprecio especialmente meu exemplar de Convite ao Drink (1960), de Djalma Ferreira, com seu fabuloso encarte de Joselito e fotografia de Mafra.
Como não falo a língua, não faria sentido abrir uma conta em um portal de sebos brasileiro, onde há muitas opções de escolha. Comprar discos internacionalmente ainda pode ser caro em razão de possíveis taxas alfandegárias. Mas o Youtube também pode ser uma grande fonte de gravações antigas. Eu até encontrei algumas joias em um portal romeno de mp3.

JR: Você já leu Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer? [Nota: livro em que o autor, um alemão, vem ao Rio de Janeiro obcecado para encontrar João Gilberto. Fischer se matou antes do lançamento.] Em termos de livros, especificamente, sei que parte do trabalho de Ruy Castro foi traduzido para o inglês, mas realmente não tenho ideia do que mais pode ter chegado à Alemanha vindo daqui. O que você me diz?
AD: Chega de Saudade, de Ruy Castro [ed. Cia. das Letras; na Alemanha, Bossa nova – The Sound of Ipanema: Eine Geschichte der brasilianischen Musik], é um livro excelente, escrito de maneira muito cativante, com grandes histórias de fundo. Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, vale a pena por sua perspectiva muito pessoal. Além deles, li alguns livros publicados em inglês no Brasil e nos Estados Unidos, mas não me lembro deles, então evidentemente não foram muito instrutivos para mim. Antonio Carlos Jobim: um homem iluminado [ed. Nova Fronteira], de sua irmã Helena Jobim, ainda está na minha lista.

JR: Brasileiros entram em contato com você por conta do Brazilliance?
AD: Ocasionalmente. Seja para elogiar — o que, obviamente, é sempre um prazer —, seja porque estão procurando algum disco ou música. Mas de vez em quando algo especial acontece.
Certa vez, alguém entrou em contato a respeito do disco Orquestra de Danças (1957), da Orquestra do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro. O tio dessa pessoa havia composto três das músicas e participado das gravações. O sindicato em questão estava preparando seu aniversário de 50 anos, mas não tinha uma cópia do disco — que não estava disponível em lugar algum. Claro que foi um prazer lhes providenciar, ao menos de forma digital.
Outra vez, um casal me escreveu dos Estados Unidos indagando se João Gilberto e Tom Jobim tinham tocado no cruzeiro que eles fizeram do Rio de Janeiro a Nova York em 1962. Eles me perguntaram se isso poderia ter acontecido. Depois de alguma pesquisa, tive de responder que isso seria muito difícil, tendo em vista que à época ambos estavam tocando em seu famoso espetáculo no Au Bon Gourmet, no Rio, quando ‘Só danço samba’, ‘Garota de Ipanema’ e ‘Samba do avião’ estrearam para o público. Mas foi uma pergunta absolutamente comovente.

JR: O que você geralmente escuta? Em geral, não só de música brasileira. Aliás, você toca algum instrumento?
AD: Cresci escutando discos de jazz e a música pop da American Forces Network (AFN) [serviço governamental de mídia das forças armadas americanas], porque minha mãe não gostava da rádio alemã. Meu programa favorito quando adolescente eram as paradas dos Estados Unidos de 1935 a 1950, todos os domingos de manhã na AFN. Nelas, descobri as orquestras de Tommy Dorsey e Harry James e cantoras como Billie Holiday e The Pied Pipers.
Quando comecei a pintar e desenhar, aos 14, passei por várias fases, e uma delas foi a da Ásia Oriental. Enquanto alguns compravam discos do Abba, eu comprava swing music, música japonesa de koto e óperas chinesas, que eu ouvia alto, muitas e muitas vezes. Isso me levou à [ópera] Turandot, de Puccini (a gravação definitiva, com Birgit Nilsson, 1966), e ao mesmo tempo eu ia de ‘Mirage’, de Stan Kenton (de seu disco Innovations in Modern Music, 1950), direto para A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
No início dos anos 1980, o pós-punk e a new wave se tornaram meu universo musical, mas também o pop e o soul dos anos 1960 — e mais jazz (hardbop e cool jazz), além de cantoras como Sarah Vaughan e Nancy Wilson. Eu não sobreviveria na tão falada ilha deserta sem New Order/Joy Division, Siouxsie and The Banshees, Chris Connor, Dusty Springfield e tudo que soa como Wall of Sound, de Phil Spector, e Motown. Óperas, principalmente as de Puccini e Verdi, têm um lugar especial no meu coração, tal qual cantoras como Renata Tebaldi.
A música mais tocante já escrita, na minha opinião, é ‘Ich bin der Welt abhanden gekommen’, de Gustav Mahler, principalmente quando cantada pela inigualável Christa Ludwig. Qualquer um que não seja duramente afetado pela beleza e pela verdade dessa música provavelmente está morto.
O que torna a música tão incomparável é seu efeito imediato e livre de influências. Podemos ter nossas preferências e achar outras coisas absolutamente detestáveis, mas nunca conseguimos escapar dos efeitos inconscientes da música. Nesse sentido, para mim, essa é a mais emocionante das artes, talvez até a mais humana.
Não sei tocar nenhum instrumento, não sei ler partituras e, infelizmente, também não sei cantar, embora eu creia que a voz seja o instrumento mais belo. Mas isso não me impede de me ver como um indivíduo musical, porque não limito meu gosto e tenho a necessidade de adquirir conhecimento a respeito da música de que gosto — conhecimento que me permite compreendê-la melhor.

JR: Na primeira parte da entrevista, perguntei por que razão você começou o Brazilliance. Agora te pergunto: por que você o mantém? 
AD: Conhecedores do jazz estão familiarizados com o Great American Songbook, uma coleção de standards de jazz e música popular que se estendem aproximadamente de 1920 até 1960. Mas a ideia de cânone das músicas mais importantes e influentes, cujo legado resistiu ao teste do tempo, aplica-se igualmente ao Brasil, porque inúmeras músicas, principalmente dos anos 1930 até os anos 1960, tornaram-se standards por direito próprio. Elas foram gravadas muitas vezes, suas letras são conhecidas e elas ainda são amadas e tocadas. Gosto de pensar nelas como o Brazilian Songbook, embora ninguém o chame assim. E porque aparentemente ninguém tentou juntar tal coleção — que apresente as diversas gravações e tente informar algo sobre as composições —, fiz isso com o Brazilliance desde 2014.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

JR: Por fim, de que maneira você compila e organiza as informações do Brazilliance? (Percebi que boa parte das páginas da seção de referências, por exemplo, já nem é mais atualizada).
AD: Até o momento, o Brazilliance tem cerca de 170 páginas de músicas de 1937 até 1970; a cada dez, uma é uma versão brasileira de uma música internacional. ‘Manhã de Carnaval’ é a mais extensa, com 75 gravações. Geralmente apresento todas as versões que tenho ou consigo encontrar. Apenas em listas longas eu retiro uma ou outra, quando estas não acrescentam algo em relação às adicionadas. Ainda resisto à tentação de publicar músicas que, incompreensivelmente, foram gravadas apenas uma vez, então é necessário haver ao menos duas gravações para eu criar uma publicação. Idealmente, músicas do mesmo ano de origem não seguem uma à outra, e a ordem de publicação também deve alternar entre gêneros e velocidade, bem como em número de gravações.
De acordo com os anos de origem, o foco provavelmente se concentra por volta de 1960, mas esses anos foram obviamente muito criativos, com um número impressionante de grandes composições. Gosto particularmente das orquestrações e dos arranjos daquele tempo, e, estilisticamente, essa época também foi bastante diversa. Sou especialmente apegado ao [gênero musical] sambalanço, por exemplo. Apesar de sua popularidade, ele só corresponde a um período muito curto.
A pesquisa muitas vezes é difícil, porque as fontes não são tão extensas quanto as de gêneros dos Estados Unidos e da Europa. Os arquivos mais importantes são o Instituto Memória Musical Brasileira e o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Contudo, nenhuma fonte é livre de erros e, para conseguir fornecer uma informação confiável, preciso comparar muito conteúdo on-line com criticidade. Muitas vezes é como um quebra-cabeças em que você tem de organizar as peças enquanto as agrupa. Ainda assim, meu próprio conteúdo dificilmente é livre de erros.
Não cito as fontes porque isso aumentaria meu empenho enormemente. Mas verifico tudo — tanto quanto é possível — por precisão e, quando em dúvida, me abstenho de fornecer informações. Minha página de referências lista de forma incompleta os sites que lidam com a música sobre a qual escrevo, ainda que alguns deles tenham sido descontinuados.
Além das páginas de músicas, outros capítulos adicionaram facetas ao longo dos anos:
From the Vault, em que ofereço minhas compilações pessoais. Comecei em 2017, quando tinha pouco tempo para as páginas de músicas. Como essa série parece ter tido alguma popularidade, porém, decidi continuar.
Em 2020, comecei o Reutilisation, uma série sobre gravações nas quais arranjos e outras faixas foram reaproveitadas. Na maioria dos casos, a gravação original continha um vocalista, ao passo que a segunda era instrumental. Um olhar mais atento revela que, em cada caso, ambas as gravações foram lançadas pela mesma gravadora (ou por uma de suas subsidiárias), o que claramente indica que elas apenas queriam reduzir os custos de produção ou aproveitar-se de músicas populares uma segunda vez. Mas os resultados geralmente são muito válidos. Além disso, é a perfeita trivia de colecionador.
Em 2021, comecei o Pseudonyms, uma série sobre músicos que utilizaram pseudônimos para além de seus nomes reais. Como é uma série nova, ainda há apenas um artigo até o momento — sobre Ed Lincoln, que certamente teve mais [pseudônimos] que qualquer um, com ao menos 18 —, mas outros virão.
E quem sabe, numa dessas invento outra coisa. O Brazilliance se tornou meu bebê (enquanto escrevo isso, minha gata, Elza, subitamente olha fundo nos meus olhos, mesmo que ela parecesse estar dormindo) e ainda é divertido. Então, definitivamente pretendo continuar… Bem como meu segundo site, KEUP — My Favourite Things, que comecei em 2019. Quase se poderia pensar que o Brazilliance não é o suficiente para mim.

Brazilliance, por Andreas Dünnewald.

Brazilliance

Extraído da edição 87 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Páginas do livro Brazilliance (2011), de Andreas Dünnewald (Fonte: Brazilliance).

Existe um repositório extraordinário da música brasileira no século 20 alimentado, catalogado e conduzido por um alemão – há praticamente dez anos. Trata-se do Brazilliance, trabalho realmente inacreditável de Andreas Dünnewald.

Descobri o Brazilliance por acaso, parando em uma página que fornecia o histórico de lançamentos da música ‘Lamento no morro’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com artistas, capas e tudo. Dois pontos chamaram atenção de imediato: a catalogação impecável da informação e a acessibilidade aos materiais. Isto é, além de informação, é possível escutar cada uma das versões elencadas.

mais de 170 páginas como a de ‘Lamento no morro’, encorpando o mapeamento da música brasileira no século 20, principalmente no que tange ao samba-canção e à bossa nova. Também há 13 mixtapes finíssimas, separadas por tema (From the Vault), e índices de artistas e músicas. Ademais, Dünnewald é autor de Brazilliance (2011, ed. Conte Verlag), livro que compila 1.111 capas de discos brasileiros lançados entre 1952 e 1977.

Subitamente hipnotizado pela iniciativa, entrei em contato com o responsável pela proeza, tentando compreender quem é ele e o que impulsiona uma atividade tão cuidadosa, precisa e completa. Consegui entrevistá-lo: a primeira parte da interação foi publicada na edição de maio do RelevO (já enviada pelos Correios); a segunda estará na edição de junho.

Uma vez em circulação, não deixaremos de juntar ambas as partes nessa grande rede. Brazilliance é o tipo de projeto maluco que merece todo tipo de atenção possível, e a Enclave humildemente sugere que qualquer indivíduo com o mínimo interesse pela música brasileira o confira e invista um tempo percorrendo seu acervo.

E o que, afinal, haveria de mover tamanho empenho advindo de Frankfurt? Um fascínio pela cultura local, algum grande contato pessoal, alguma memória interligada ao nosso país? “Não, nunca fui ao Brasil e quase nunca conheci brasileiros”, disse-me Andreas Dünnewald. Por isso mesmo, Brazilliance não parece explicável. Que saibamos aproveitá-lo!

Baú: Marc Fischer

Extraído da edição 82 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Começo de imediato com meu interrogatório:
— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?
— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.
(…)
— E como era quando João ligava?
— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.
— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?
— Uns quarenta minutos.
— E assim foi durante cinco anos?
— Assim foi durante cinco anos.
— Você nunca viu João pessoalmente?
— Não, nunca vi.
— O entregador chegou a ver ele?
— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.
— Mas isso é piração, Garrincha.
— Isso é João Gilberto, meu senhor.

***

Depois, [Roberto Menescal] põe de lado o violão e diz:
— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.
(…)
— Você parece ser imune a ele. Por quê?
— Eu me afastei na hora certa. Contato mesmo, a última vez que tivemos foi em Nova York, em 1962. Na época do concerto no Carnegie Hall.
— E o que aconteceu em Nova York?
— Olha, eu simplesmente me cansei do tipo. Estávamos circulando por Manhattan, porque João queria comprar um chapéu, um daqueles chapéus típicos, com uma pena do lado. Assim sendo, fomos a uma chapelaria. Uma chapelaria muito boa, com paredes de quatro metros de altura e um gigantesco sortimento de chapéus, que os vendedores foram trazendo para João, um atrás do outro. E João dizia: “Este é bonito, mas não tem esse modelo num cinza um pouco mais claro?”. E o vendedor: “Sim, podemos fazer”. João: “Não, não, melhor não. Gosto daquele ali em cima, se bem que… a pena deste aqui é muito mais bonita”. “Podemos trocar”, disse o vendedor, “fazemos o chapéu como o senhor preferir.” João: “Não sei… Não, me traga aquele outro ali, o da prateleira”. Passamos quatro horas naquela chapelaria, sem que ele comprasse o tal chapéu. Assim é João. Como uma criança. E nem vou contar a você quantas vezes ele já me telefonou no meio da noite, pedindo que eu levasse um violão para ele, um violão que nunca devolvia ou dava de presente a alguém, como se fosse dele, sem me agradecer, sem nem mesmo abrir a porta para apanhar o instrumento.
— Ele sempre foi assim ou ficou desse jeito?
— É assim desde que conheço ele.

Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto, 2011 (Companhia das Letras).

Baú: Sérgio Cabral

Extraído da edição 76 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

(…) Assim, no dia 10 de julho de 1958, João Gilberto estava no estúdio gravando Bim-bom e Chega de saudade. Ou melhor, terminava, finalmente, a gravação, pois os depoimentos do pessoal envolvido no disco só discordavam sobre o número de dias que os músicos tiveram de voltar ao estúdio para que tudo saísse exatamente como João Gilberto queria. Para o baterista Juquinha, a gravação durou um mês. Começou pela insólita (para os padrões da época) exigência de ter um microfone para a voz e outro para o violão. O arranjo de Tom Jobim para Chega de saudade, embora bem mais leve do que o que escrevera para o disco de Elizeth Cardoso (a partir da introdução, com o predomínio da magistral flauta de Copinha), foi “aparado” diariamente por João Gilberto. Vários compassos de violino, viola e celo desapareceram do arranjo. Mas João não ficou satisfeito nem com o pouco que restou: quando entravam as cordas, ele fazia aquela cara típica de quem ouve, por exemplo, o som de uma faca afiada tentando cortar uma pedra. Tudo indicava que se arrepiava todo. Para Tom Jobim foi um exercício de paciência muito importante para as gravações que estavam por vir. Mas, para João Gilberto, o que ficou foi uma lembrança cheia de ternura, como revelaria à revista Veja, logo depois da morte de Tom: “Lembro-me dele na gravação de Chega de saudade. Ele estava na cabine e eu no estúdio. Tom estava olhando. Tinha os olhos emocionados, entusiasmados”.
O disco foi lançado pela Odeon no suplemento de agosto de 1958. Algumas versões do lançamento são bastante conhecidas, como a reação de Osvaldo Guzonni, chefe de vendas de São Paulo, que convocou os demais vendedores para ouvir o disco de maneira pouco ortodoxa: “Ouçam a merda que o Rio de Janeiro nos manda”. Depois da audição, espatifou o disco no chão. O curioso é que foram feitas tentativas para desmentir o fato, mas o próprio Guzonni se encarregou de confirmá-lo inúmeras vezes, sempre rindo muito da gafe que cometera.

Sérgio Cabral, Antonio Carlos Jobim: uma biografia, 2008 (Ed. Lazuli; Companhia Editora Nacional).

Brasil 1970-75, um guia musical

Extraído da edição 70 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Que a música brasileira é mundialmente reconhecida, qualquer um sabe. Mas nós nunca tínhamos nos dado conta da proporção de qualidade concentrada na década de 1970, especialmente até 1975.

Havia uma mistura bastante talentosa de talentos e contextos: veteranos da bossa nova; herdeiros da bossa nova; gente de saco cheio da bossa nova; tropicalistas; clássicos do samba; samba rock; geração dos festivais televisivos de música; guitarra elétrica; passeata contra a guitarra elétrica; eruditos; empíricos; gente que viajou pelo mundo; gente que nunca saiu do Brasil; repressão e tensão política; cultura hippie; o Hermeto Pascoal.

Os frutos são incríveis. A partir deles, concluímos que, àquela época, o Brasil dispunha do apogeu da música mundial. Sem nenhum traço de saudosismo – porque não vivemos essa época –, tampouco de ufanismo – porque é brega. Trata-se de uma afirmação bastante razoável de defender.

Pensando nisso, listamos todos os álbuns de que gostamos após ouvir, pesquisar e reescutar. Não são todos extraordinários, o que seria impossível, mas há discos soberbos entre eles. Todos têm pontos altos; nenhum é fraco. Ficam as nossas sugestões para que esta lista seja lida e relida (como uma porta de entrada ou fonte de discórdia).

Todos os álbuns mencionados estão disponíveis no Spotify, exceto quatro, que sinalizamos e apontamos para o YouTube. No Spotify, você também pode acompanhar nossa playlist querida, melhor degustada na ordem aleatória – exatamente como o Brasil.


Playlist: Brasil 1970-1975 era o apogeu da música mundial [Spotify]

1970
Antonio Carlos & Jocafi – Mudei de Ideia
Egberto Gismonti – Sonho 70
Elis Regina – …Em Pleno Verão
Gal Costa – Legal
Jorge Ben Jor – Força Bruta
Milton Nascimento – Milton
Os Mutantes – A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado
Paulo SérgioPaulo Sérgio vol. IV
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1970)
Rosinha de Valença – Rosinha de Valença apresenta o Ipanema Beat
Taiguara – Viagem
Tom Jobim – Stone Flower
Tom Jobim – Tide
Toquinho – Toquinho (1970)

1971
Chico Buarque – Construção
Erasmo Carlos – Carlos, Erasmo
Evinha – Cartão Postal
Jorge Ben Jor – Negro é Lindo
Maria Bethânia – A Tua Presença
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1971)
Sílvio César – Sílvio César (1971)
Vinícius de Moraes – Como Dizia o Poeta
Wilson Simonal – Jóia, Jóia

1972
Caetano Veloso – Transa
Elis Regina – Elis
Gilberto Gil – Expresso 2222
Hermeto Pascoal – Hermeto [YouTube]
Jards Macalé – Jards Macalé
Luiz Bonfá – Introspection
Maria Bethânia – Drama
Milton Nascimento & Lô Borges – Clube da Esquina
Novos Baianos – Acabou Chorare
Paulinho da Viola – Dança da Solidão
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1972)
Tom Jobim – Matita Perê
Toni Tornado – Toni Tornado (1972)

1973
Arthur Verocai – Arthur Verocai
Eumir Deodato – Prelude
Eumir Deodato – Deodato 2
Eumir Deodato – Os Catedráticos 73
Hermeto Pascoal – A Música Livre de Hermeto Pascoal [YouTube]
Ivan Lins – Modo Livre
João Donato – Quem é Quem
João Gilberto – João Gilberto [YouTube]
Luiz Melodia – Pérola Negra
Marcos Valle – Previsão do Tempo
Milton Nascimento – Milagre dos Peixes
Nelson Cavaquinho – Nelson Cavaquinho (1973)
Novos Baianos – Novos Baianos F. C.
Raul Seixas – Krig-Ha, Bandolo
Secos e Molhados – A Volta de Secos & Molhados
Sérgio Sampaio – Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua
Taiguara – Fotografias
Tim Maia – Tim Maia (1973)
Tom Zé – Todos os Olhos
Trio Mocotó – Trio Mocotó

1974
Adoniran Barbosa – Adoniran Barbosa
Airto Moreira & Eumir Deodato – Deodato/Airto in Concert [YouTube]
Benito Di Paula – Um Novo Samba
Cartola – Cartola
Egberto Gismonti – Academia de Danças
João Donato – Lugar comum
Jorge Ben Jor – A Tábua de Esmeralda
Jorge Mautner – Jorge Mautner (1974)
Martinho da Vila – Martinho da Vila
Nelson Gonçalves – Passado e Presente
Raul Seixas – Gita
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1974)
Vinícius de Moraes & Toquinho – Vinícius & Toquinho

1975
Airto Moreira – Identity
Alcione – A Voz do Samba
Azymuth – Azimüth
Bebeto – Bebeto
Clara Nunes – Claridade
Di Melo – Di Melo (1975)
Hyldon – Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda
Lula Côrtes & Zé Ramalho – Paêbirú
Nelson Gonçalves – Nelson de Todos os Tempos
Tim Maia – Racional (vol. 1)
Waltel Branco – Meu balanço

Vamos lá. Listas, assim como goleiros e revisores de texto (e os Correios), são avaliadas a partir de suas falhas: o que esquecemos?

Ademais, quais são os melhores, mais influentes, mais marcantes, crème de la crème, apogeu do apogeu? Quais são seus favoritos? Se o editor tivesse de morrer abraçado com um, seria o Clube da Esquina.


  • Em 1976, já temos África Brasil (Jorge Ben Jor), Cartola (1976), Estudando o Samba (Tom Zé) e Alucinação (Belchior), entre outros. Mas quem sabe uma segunda lista…
  • Já a década de 1980…

Não creio em mais nada

Extraído da edição 65 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Minha mãe provavelmente se envergonharia, mas apenas no último fim de semana conheci quem foi Paulo Sérgio (1944-1980) – o músico, não o atacante. (O atacante jogou com o Totti.)

A Enclave, como já reconhecemos, não escapa à sua natureza millennial. Há vantagens, como saber desinstalar tudo o que desacelera um Windows praticamente por instinto. E há desvantagens, como a falta de contato direto com elementos culturais renegados pela crítica.

Volta e meia, elementos assim – como o cantor Paulo Sérgio – são redescobertos pela internet, e então novas gerações se surpreendem, resgatam e reinterpretam o adormecido. Tratamos de algo parecido quando escrevemos sobre o city pop.

Em uma dessas mixtapes difíceis de mapear por que exatamente surgem nas recomendações do YouTube, conheci Paulo Sérgio, o cantor. Brega, romântico, popular. Morreu precocemente, aos 36, vítima de um derrame cerebral – há exatos 40 anos e 10 dias de quando escrevemos este texto. Tinha lá suas polêmicas.

Inegavelmente parecido com Roberto Carlos, foi comparado com o rei e tachado de imitador. Quando finalmente se conheceram, em 1973, deram-se muito bem – ao menos na frente das câmeras.

Mas o que impactou foi ‘Não creio em mais nada‘, do disco Paulo Sérgio Vol. 4 (1970, Spotify). Arranjos, batida, letra, melodia e até um certo groove: esse manifesto de fatalismo, aparentemente composto por Totó, é uma bomba da mais atemporal resignação.

Não sei o que faço
Se volto agora ou continuo a seguir
Eu sinto cansaço
E já não sei se vale a pena insistir
(…)

Não creio em mais nada
Já me perdi na estrada
Já não procuro carinho
Me acostumei na caminhada sozinho
A vida toda só pisei em espinho
Já descobri que o meu destino é sofrer

Os remixes contemporâneos já começaram a pipocar – aqui e aqui, por exemplo –, e Fernanda Takai, pescando o zeitgeist, lançou uma versão da música em junho.

Para você que está desanimado, soque o play e complemente seu drama existencial com esses 140 segundos de cinismo: hoje não será melhor do que ontem, e sigamos em frente! Boa segunda-feira e uma grande semana para todos nós.